Por OLGÁRIA MATOS*
Palestra no seminário em homenagem ao centenário do geocientista
Antes de mais nada, queria agradecer o convite do Sesc, ìcarabe da Cátedra Edward Saïd de Estudos da Contemporaneidade, com a proposição ativa dessa homenagem a Aziz Ab’Saber, por tudo o que ele significa para nós, para a Universidade, para os estudiosos de geociências, no Brasil e no exterior, o quanto está e estará sempre perto de nós e de toda a sociedade.
Só poderia aqui expressar a imensa felicidade e gratidão ao feliz acaso de tê-lo em minha vida, pela convivência na Universidade de São Paulo, em sua casa ou na minha, na Secretaria da Cultura do Município, na gestão de Marilena Chaui.
Minha razão de ser aqui é a de falar da amizade, não como alguém que analisaria seu pensamento e sua incomparável obra. Gostaria apenas de mencionar alguns momentos preciosos que permanecem na memória e que nos acompanham como um talismã, como proteção e esperança que sua presença e conhecimentos nos traziam. E isto por que Aziz Ab’Saber era um narrador, um artesão das palavras que, duradouras , fizeram da ciência geográfica um conto encantado, deixando em cada um, como professor ´único, uma marca, como “ as mãos do oleiro em um vaso de argila”.
Por isso, lembro agora, em particular, do Seminário “Cidade-Cidadão-Cidadania”, da Secretaria da Cultura do Município, que teve por tema geral “Da Polis grega à Metrópole moderna”. Nele, Aziz Ab’Saber discorreu sobre as paisagens urbanas , enfatizando a de São Paulo, em suas camadas geológicas, geográficas, históricas e por isso humanas. Discorreu no sentido preciso de generosidade pessoal e responsabilidade institucional de quem transmite conhecimentos e experiências como um cronista que “narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, que leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”.
Assim, Aziz Ab’Saber não separa as disciplinas científicas em suas análises geológicas, geográficas, históricas, a história da natureza constituindo “uma obra de arte total”,dando voz a pedras, rochas, rios, mares e direção dos ventos. Com isso Aziz constrói, simultaneamente, uma epistemologia segundo um materialismo antropológico que é um saber e um saber-viver.
Aziz Ab’Saber assim o expressou: “ A ciência é feita para o conhecimento de todas as coisas. O conhecimento do universo, da estrutura da matéria, da estrutura da vida, da origem da atmosfera, da origem dos organismos vivos[…] é feito em um nível de potencialização do “bom senso”[…]. Porém, potencializar o ‘ bom senso’ sem método não adianta nada para qualquer tipo de ciência.Então […] para potencializar o bom senso no conhecimento das realidades físicas, das realidades físico-químicas, das realidades ecológicas, das realidades sociais, está no método”.[i]
Quando apresentava a cronologia geográfica da cidade, era a do planeta e a do universo que se manifestava, como a Paris da belle-époque surgiu inteira do fundo de uma chícara de chá. E Ab’Saber Aziz anotou em seu ensaio “Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo”: “A originalidade geográfica principal do sítio urbano de São Paulo reside na existência de um pequeno mosaico de colinas, terraços fluviais e planícies de inundação, pertencentes a um compartimento restrito e muito bem individualizado do relêvo da porção sudeste do Planalto Atlântico Brasileiro. De tal forma o esqueleto urbano e suburbano da aglomeração paulistana se justapôs à bacia sedimentar do alto Tietê, que o estudo do sítio atual da Metrópole equivale, sob muitos aspectos, a um estudo da própria região fisiográfica, restrita e individualizada, conhecida pela designação de bacia de São Paulo. Forçado por essa circunstância, o presente trabalhado compreenderá o estudo daquele patamar do Planalto Atlântico que se estende desde os ‘altos’ continentais da Serra do Mar até os 202 sopés da Cantareira, do Jaraguá e do Itapetí, envolvendo a bacia sedimentar pliocênica e uma boa parte da bacia hidrográfica do Alto Tietê”.[ii]
Essa descrição douta possui um sentido acadêmico pleno, é a de um fisionomista do genius locci, que abrange os estudos documentais, de campo com tradições escritas e orais, o conhecimento que nos vêm de todos, não sendo exclusividade dos intelectuais, pois Aziz Ab’Saber elabora seus conhecimentos com os saberes daqueles que vivem a geografia e a habitam, saberes presentes nas práticas culturais das diferentes comunidades.
Em seus estudos geográficos, Aziz Ab’Saber reconhecia todas as idades da Terra, presentificando seu passado, mas isso por que não é o passado que explica o presente, mas o contrário. Nessa reversibilidade temporal, tudo se passa como se o efeito precedesse a causa. E Aziz Ab’Saber escreve : “As aplainações dos fins do Terciário pouparam massas de rochas resistentes, dando origem a inselbergs (serrotes) e cristas alongadas, algumas das quais cruzadas por gargantas (boqueirões). Esses, aliás, os únicos remanescentes a quebrar a monotonia relativa do vastos estirões das colinas sertanejas. Alguns agrupamentos de inselbergs, como os Patos (PB), os de Quixadá (CE), os de noroeste do Ceará ou ainda os de Milagres (no município de Amargosa, BA), constituem paisagens monumentais, dotadas de marcante individualidade[…] De certa forma os inselbergs são parentes dos pães-de-açúcar: nos períodos de incidência de climas secos em áreas hoje muito úmidas, sendo que os atuais pães-de-açúcar foram inselbergs. Por oposição, em velhas fases úmidas que precederam às aplainações dos fins do Terciário, alguns dos atuais inselbergs que pontilham os sertões secos podem ter sido pães-de-açúcar”.[iii]
A plasticidade da paisagem e seus devires encontram-se tanto nas reflexões de Aziz Ab’ Saber como na amabilidade e delicadeza moral que constutiem nos grandes humanistas. Por isso, quer nas discussões técnicas sobre a Amazônia, como nas questões do sofrimento de populações inteiras em regiões hostis, como os sertões, Aziz Ab’Saber teve a integridade de sua lucidez nas políticas púbicas, ecológicas, sociais, culturais, contra a usura da natureza e dos indivíduos pelos dominantes.
Aziz era grande em seu tamanho, é verdade, mas grande no sentido que Burckhardt compreendia a palavra “grande”: “grandeza é a soma global da personalidade de um indivíduo que nos parece grande, que continua a exercer influência mágica sobre todos nós através dos séculos [ …], muito além das fronteiras da simples tradição. Ao afirmarmos que a grandeza é algo único e insubstituível não resulta disso um esclarecimento. Um grande indivíduo é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só poderiam ser possíveis por ele, no interior de seu tempo e de seu ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. Há um provérbio que diz ‘ nenhum homem é indispensável’, mas, justamente, os poucos que o são, são grandes”.[iv]
*Olgaria Matos é professora titular de filosofia na Unifesp e do Departamento de filosofia da USP. Autora, entre outros livros, de Palíndromos filosóficos: entre mito e história (Unifesp) [https://amzn.to/3RhfKz9].
Notas
[i] A’Sabr, Azizz, !” O Conceio de espaço total e a problemática da reorganização dos espaços regionais”, org Ruth, Lochs e Campos, Nazareno, Imprensa da UFSC, 1995, p 97-98.
[ii] Ab’ SABER, Aziz Nacib. Geomorfologia do Sitio Urbano de São Paulo. São Paulo, Ateliê Editorial, p. 13 2007
[iii] Ab’SABER, Aziz Nacib. Entrevista ao Programa Roda Viva da TV Cultura, em 08 de Junho de 1998., p. 15 e 16.
[iv] Burkhardt, 3, p. 215, apud Ernani Chaves, “ Cultura e Política: o jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt, Cadernos Nietzsche 9, 2000, p 46
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