Big Brother Brasil

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DENNIS DE OLIVEIRA*

Neoliberalismo e cenário da destruição da esfera política

Apesar do Brasil estar vivenciando uma das maiores crises sociais da sua história, com episódios trágicos como a falta de oxigênio para portadores de Covid-19 no Amazonas, desemprego e miserabilidade crescentes, mais de mil mortes por dia por coronavírus e um governo que está mais preocupado em liberar armas, atender as demandas do mercado especulativo do que enfrentar a pandemia – que, ao contrário do que muitos afirmam, não atinge todos de forma igualitária, pretos e pobres são os mais vitimados – o debate racial imposto pela atual edição do programa global Big Brother Brasil 21 ganhou repercussão.

Comentei em minha rede social que se há um aspecto positivo neste episódio é o fato de desmascarar de vez a ideia de que visibilidade midiática é representatividade e o “emponderamento” (conceito que ganhou força com a sua apropriação pelos estrategistas da corrente chamada de “neoliberalismo progressista” no final dos anos 1980) individual são os caminhos para enfrentar a dinâmica das opressões e explorações (de raça, classe, gênero).

Não vou repetir os bons argumentos da minha colega Rosane Borges de que o espaço midiático não é o lugar adequado para se pensar a representatividade (confira aqui). Mas quero aqui propor uma reflexão sobre como este fenômeno – que tende a se repetir em outros momentos – é produto da apropriação de determinadas cepas do pós-estruturalismo dos anos 1960 (que teve um papel importante particularmente nos movimentos contraculturais daquele período) por parte do capitalismo da acumulação flexível gerando isto que alguns autores chamam de “pós-modernidade”.

É fato que quando se fala em “cultura do cancelamento”, ela não é um fenômeno que surgiu agora. Na constituição do Estado brasileiro, negros, pobres, mulheres, indígenas sempre foram “cancelados”, suas vozes desconsideradas no debate público seja por meio do racismo e machismo estruturais, seja pela democracia parcial, na qual a ideia de cidadania universal sempre foi uma ficção. Basta ver que um país com mais da metade de negros e mais da metade de mulheres, teve apenas uma mulher na presidência da República, a participação negra e feminina nos espaços de poder é ínfima e só recentemente adotou ações afirmativas para negras e negros nas universidades.

Esta voz calada historicamente encontrou uma possibilidade de se expressar por meio de uma sociedade mediada pelas tecnologias da informação e comunicação. O capitalismo na sua forma da acumulação flexível que estabelece um controle nos processos distributivos e tecnológicos, joga no terreno da competitividade as possibilidades que os excluídos deste poder possam ter uma janela aberta para a visibilidade – desde que, evidentemente, não se contraponham ao sistema.

Assim, ao lado dessas possibilidades de expressão de vozes historicamente caladas, há uma lógica da competitividade extrema e é justamente aí que a ideia de empoderamento individual cumpre o papel ideológico de interditar a discussão do enfrentamento das opressões por meio de ações coletivas e também de construir uma visão crítica do que são estas estruturas gerenciadoras deste espaço. Não se trata de ficar ao lado de Karol Conká ou de Lucas, mas de ter uma postura do que é a Rede Globo – a emissora que tem o seu departamento de jornalismo dirigido por uma pessoa que escreveu um livro Não somos racistas, cujo programa de reality show no qual deu esta polêmica é mediado por um dos seus profissionais mais despolitizados e que expressa este perfil de uma pequena burguesia alheia a tudo a sua volta (“as pessoas da Sala de Jantar” como diz a letra da música Panis et Circenses, dos Mutantes) cuja lógica não é definir quem vai vencer, mas quem vai ser “excluído”.

Paul Valéry fala das chamadas “profissões delirantes”, aquelas atividades que dependem da opinião dos outros. Delirante porque o exercício desta atividade está diretamente ligada à capacidade de construir personagens que confortem os sofrimentos psíquicos de grupos sociais submetidos a uma sociedade da insegurança. O problema é que o capitalismo da acumulação flexível impõe uma total desregulação dos processos de sociabilização do trabalho e, por tabela, da própria vida. Como resultado disso estes sofrimentos psíquicos são flutuantes, deslocam constantemente como animais perdidos.

É o que Lacan fala quando define o sofrimento psíquico não como a ausência de um objeto de desejo, mas a falta de uma estrutura que constitui este Outro – em outras palavras, o desejo sequer pode ser nominado. Os delirantes então atuam em comportamentos-flashes, de gerar impacto, a tal “lacração” que substitui o algo desejado mas distante (ou o que podemos chamar de utopia).

De tudo isto, a estrutura de poder político-econômico sai intacta. A polêmica fica entre defensores de Karol Conká, Nego Di ou Lucas. A Rede Globo sai impune e, inclusive, tem espaço para tomar a atitude demagógica de propor uma “ajuda” ao Lucas. Da mesma forma que a Globo critica asperamente a figura de Jair Bolsonaro, mas defende a autonomia do Banco Central e a política de ajuste fiscal que é a principal responsável pela ausência de políticas públicas eficazes para enfrentar a pandemia e a crise social.

Não se trata de mera estratégia discursiva para esconder a essência, mas fruto do que Zygmunt Bauman chama de divórcio entre poder e política. O poder está nos territórios invisíveis, distantes, dos centros gerenciadores das corporações transnacionais que podem num apertar de botão retirar recursos milionários de um país e mandar para outro. É este poder que está sendo preservado com a “autonomia” do Banco Central. A política, ou o que resta dela, fica restrita as disputas performáticas de personagens (alguns canastrões) construídos a partir dos padrões de referência midiáticos – como as “lives” do presidente da República andando de jet-sky ou as polêmicas do BBB-21. Este é o resultado da plena midiatização da sociedade.

*Dennis de Oliveira é professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Marques Ladislau Dowbor Valerio Arcary Slavoj Žižek Igor Felippe Santos Marilia Pacheco Fiorillo Osvaldo Coggiola Elias Jabbour Renato Dagnino Tales Ab'Sáber Valerio Arcary Boaventura de Sousa Santos Chico Alencar José Micaelson Lacerda Morais Maria Rita Kehl Francisco Pereira de Farias Ronald León Núñez Rafael R. Ioris Heraldo Campos Francisco Fernandes Ladeira Tarso Genro Dennis Oliveira Annateresa Fabris Jorge Luiz Souto Maior Alexandre Aragão de Albuquerque Salem Nasser Daniel Brazil José Luís Fiori Michael Löwy Érico Andrade Mariarosaria Fabris Marcelo Módolo Jorge Branco Andrew Korybko João Carlos Salles Bernardo Ricupero Daniel Afonso da Silva Carlos Tautz João Lanari Bo Bento Prado Jr. Gilberto Maringoni Luis Felipe Miguel Benicio Viero Schmidt Paulo Fernandes Silveira Ronaldo Tadeu de Souza Lincoln Secco Alexandre de Freitas Barbosa José Raimundo Trindade Ari Marcelo Solon Matheus Silveira de Souza Gabriel Cohn Michael Roberts Henri Acselrad Marilena Chauí Alexandre de Lima Castro Tranjan Bruno Machado Fábio Konder Comparato João Adolfo Hansen Rubens Pinto Lyra Marcelo Guimarães Lima Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Renato Martins Otaviano Helene Juarez Guimarães Anderson Alves Esteves Marcos Aurélio da Silva André Singer Henry Burnett Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Antunes Eugênio Bucci Luiz Eduardo Soares Sergio Amadeu da Silveira Remy José Fontana Kátia Gerab Baggio Liszt Vieira Airton Paschoa Eduardo Borges Manuel Domingos Neto Lucas Fiaschetti Estevez Jean Marc Von Der Weid Samuel Kilsztajn Ronald Rocha Luís Fernando Vitagliano José Dirceu Marjorie C. Marona Berenice Bento Celso Frederico Chico Whitaker Fernão Pessoa Ramos Fernando Nogueira da Costa Roberto Bueno Gilberto Lopes Paulo Nogueira Batista Jr Luiz Bernardo Pericás Leonardo Boff João Carlos Loebens Leonardo Sacramento Eleonora Albano João Paulo Ayub Fonseca Ricardo Abramovay Ricardo Fabbrini Jean Pierre Chauvin Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bruno Fabricio Alcebino da Silva Anselm Jappe Afrânio Catani Atilio A. Boron Tadeu Valadares Antonino Infranca Luiz Werneck Vianna Leonardo Avritzer Luiz Roberto Alves Eugênio Trivinho Armando Boito Sandra Bitencourt Milton Pinheiro João Feres Júnior André Márcio Neves Soares Carla Teixeira Daniel Costa Denilson Cordeiro Dênis de Moraes Paulo Capel Narvai Paulo Martins Eliziário Andrade Flávio R. Kothe Claudio Katz Celso Favaretto Thomas Piketty Eleutério F. S. Prado Walnice Nogueira Galvão Priscila Figueiredo Flávio Aguiar Vladimir Safatle Gerson Almeida José Geraldo Couto Vinício Carrilho Martinez Manchetômetro Mário Maestri Marcos Silva Luciano Nascimento José Costa Júnior Ricardo Musse Roberto Noritomi Luiz Carlos Bresser-Pereira Rodrigo de Faria João Sette Whitaker Ferreira José Machado Moita Neto Yuri Martins-Fontes Vanderlei Tenório Leda Maria Paulani Lorenzo Vitral Caio Bugiato Julian Rodrigues Antônio Sales Rios Neto Antonio Martins Francisco de Oliveira Barros Júnior Alysson Leandro Mascaro Marcus Ianoni

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada