Brasil na encruzilhada

Imagem: ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARJORIE MARONA e FÁBIO KERCHE

Estamos diante da difícil tarefa de afastar um presidente da República – o que em regimes presidencialistas se supõe deva ser mesmo um movimento excepcional – em meio a uma pandemia, o que traz condições ainda mais adversas

Chegamos a um ponto em que a sustentação do governo Bolsonaro tornou-se muito difícil, embora a saída também não seja simples. A crise sanitária, de proporções mundiais, ganha ares de genocídio diante da completa falta de capacidade do governo para enfrentá-la: mortos são empilhados em valas comuns. E Bolsonaro fez da pandemia de COVID-19 seu campo de batalha: em guerra declarada com atores políticos fundamentais, atira contra governadores, prefeitos, ministros do STF e congressistas. Os crimes de responsabilidade do presidente se acumulam quase no mesmo ritmo que as suspeitas de crimes comuns. Um país à deriva e um governo que compromete as possibilidades de manutenção do próprio regime democrático. Diante deste cenário, a grande questão que se coloca hoje é a de como encerrar o mandato de Bolsonaro, salvando o que restou da democracia.

Com exceção da renúncia, que seria um ato unilateral, todas as outras possibilidades de fim deste governo envolvem atores diversos e graus de complexidade significativos. São quatro os possíveis caminhos:

O primeiro é a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão via Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Atualmente tramitam oito ações de investigação judicial eleitoral (AIJE), em estágios processuais diferentes e mobilizando acusações de diversas modalidades de abuso. Em fase de instrução, as AIJE’s que lidam com o suposto uso indevido de comunicação e abuso de poder econômico podem se aproveitar do inquérito das fakenews, que tramita no STF, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes. O caminho parece simples, quando se considera que bastariam 4 dos 7 votos no TSE para afastar o presidente e seu vice. Esta saída, caso o julgamento fosse concluído com condenação ainda este ano, resultaria em uma nova eleição presidencial. E mesmo que o TSE avançasse de forma menos ágil, a cassação da chapa levaria à eleição indireta, pelo Congresso, até que se restabelece, em 2022, a escolha direta pelos eleitores. Esta é a via menos politizada de construção de uma saída, por envolver, quase exclusivamente, atores judiciais, ainda que, num segundo momento, a soberania popular, direta ou indiretamente, fosse restabelecida.

Contudo, e justamente em razão do objeto que tutela juridicamente – a soberania popular -, a justiça eleitoral adota um padrão de julgamento ancorado na cautela probatória. Ou seja, a prova precisa ser farta e sólida para que a justiça avance para uma condenação por abuso de poder político ou econômico, resultando na cassação da chapa. Esse caminho é tão delicado que nem durante a crise do governo Dilma – cuja popularidade atingiu patamares irrisórios e a imprensa, empresários e a maioria da classe política formou um consenso em torno da necessidade de sua saída – se ousou dar esse passo. Outro agravante aqui é que seria ingênuo supor que os militares, depois do espaço que ocuparam na cena política nacional, não reagiriam diante de um desfecho que atingiria Mourão, tanto quanto Bolsonaro. O TSE afastaria dois militares dos cargos mais importantes do país e as Forças Armadas aceitariam a decisão pacificamente? Mesmo depois de mais de 30 anos de democracia essa possibilidade, infelizmente, parece pouco provável.

O segundo caminho é via STF, onde o inquérito aberto a partir das denúncias de Moro, coloca o governo Bolsonaro sob suspeição. Nesse processo o presidente poderia, em tese, vir a ser condenado por crime comum vinculado ao cargo, o que anteciparia o fim do seu mandato. Esta possibilidade traz dificuldades tanto do ponto de vista jurídico quanto do ponto de vista político. Juridicamente a questão de fundo envolve a discussão sobre os limites do controle judicial sobre atos políticos discricionários: o STF não tem posição clara sobre isso e a gramática penal não oferece muitos subsídios para o enquadramento dos atos de Bolsonaro nos crimes de advocacia administrativa ou obstrução de justiça. Isso sem mencionar as dificuldades relacionadas à obtenção e avaliação probatória. Do ponto de vista político, o processo envolve inúmeros atores, com destaque para o procurador geral da República, Augusto Aras, que tem poder de veto. Findo o inquérito, ele poderia decidir se continua o processo ou o arquiva. E, ao que tudo indica, Aras tem poucos incentivos para seguir adiante. De olho em sua recondução ao cargo no próximo ano ou buscando ser indicado ao STF por Bolsonaro, por que o procurador geral iria descontentar justamente quem tem a caneta na mão?

Mesmo que o chefe do Ministério Público Federal denunciasse o presidente, a Câmara dos Deputados precisaria autorizar, por maioria qualificada de 3/5, o processamento e julgamento de Bolsonaro. Se isto acontecesse, o presidente seria afastado para aguardar o resultado. Essa é uma das razões, aliás, do porquê Bolsonaro está negociando apoio junto ao Centrão – eufemismo para deputados de direita que buscam cargos e influência no governo, em qualquer governo. Aos limites que esta via apresenta para antecipar o fim desta administração, somem-se os custos que traz para a própria democracia. A saída jurídico-política amplia a já hipertrofiada posição institucional do Supremo Tribunal Federal e reabilita uma narrativa de criminalização da política que reforça a deslegitimação generalizada do sistema político.

O impeachment é a via política, por excelência, para antecipação do fim de mandatos. É um instrumento pensado para ser excepcional, mas cujo desvirtuamento tingiu de golpe seus contornos. Eis o terceiro caminho para substituir Bolsonaro por Mourão. O presidente seria julgado por crime de responsabilidade. O que faltou à Dilma sobra em Bolsonaro. São inúmeros os atos do presidente da República que atentam contra a Constituição Federal. Muitos são os pedidos que atualmente aguardam manifestação de Rodrigo Maia. O presidente da Câmara de Deputados é quem tem competência para aceitar a denúncia, dando o pontapé inicial em um processo que segue para tramitação em comissão criada para este fim e, posteriormente, para o escrutínio do Plenário, onde é preciso 3/5 de votos favoráveis para que se possa afastar o presidente temporariamente. A etapa seguinte é a do julgamento final no Senado, novamente por maioria qualificada. As dificuldades aqui também são diversas. Há um certo consenso de que ainda não se formou a “tempestade perfeita”, o somatório de fatores necessários para o impeachment: crise econômica, política, baixa popularidade e algum nível de adesão do vice-presidente, que assumiria o mais alto posto político do país.

Embora a aprovação a Bolsonaro venha se deteriorando, o resiliente apoio ao seu governo não sinaliza claramente o repúdio da população – o que mobilizaria amplamente os congressistas. Mesmo as medidas de isolamento dificultam sobremaneira as grandes manifestações públicas – eventos que comumente marcam processos deste tipo. Tentando evitar o avanço da erosão de sua autoridade, Bolsonaro tem buscado negociar com partidos mais conservadores, procurando assegurar votos suficientes para impedir a conformação da maioria qualificada necessária para seu afastamento. Além disso, como alertaram Fernando Limongi e Argelina Figueiredo (Folha, 30/04/20), parece não haver disposição do vice em sinalizar à elite política que ela pode avançar, deixando-a “no escuro” quanto a aspectos importantes sobre como seria um futuro governo Mourão. O impeachment, embora tenha uma dimensão jurídica (o presidente do STF preside o julgamento no Senado, por exemplo) constitui a saída mais politizada para uma crise da magnitude da que enfrentamos. Isto porque envolve fortemente a atuação de parlamentares, eleitos pelo voto popular.

Por fim, existe a possibilidade mais canônica em democracias liberais, que envolve a derrota do governo nas eleições em 2022. O presidente sairia candidato à reeleição e os eleitores teriam a oportunidade de pôr termo à era Bolsonaro. Paradoxalmente, a possibilidade de uma disputa eleitoral está, ela mesma, ameaçada por este governo – que não poupa em ataques às instituições democráticas. O tempo é dimensão fundamental aqui.

O Brasil está diante de uma encruzilhada e seja qual for o caminho que decidir trilhar, este envolve processos complexos. Os líderes políticos e seus partidos são atores fundamentais, mas sua associação com atores jurídicos e alguma adesão da ala militar do governo parece incontornável. Estamos diante da difícil tarefa de afastar um presidente da República – o que em regimes presidencialistas se supõe deva ser mesmo um movimento excepcional – em meio a uma pandemia, o que traz condições ainda mais adversas. Este é um mapa para democratas – aqueles que se arriscam no front de batalha com a clareza da responsabilidade que têm de garantir que o ocaso do governo Bolsonaro não signifique a derrocada da democracia brasileira.

*Marjorie Marona é professora de ciência política na UFMG. É coorganizadora do livro Justiça no Brasil: às margens da democracia (Arraes)

*Fábio Kerche é professor de ciência política na UNIRIO e no IESP/UERJ. É autor de Virtude e Limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil (EDUSP)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ricardo Antunes Elias Jabbour Walnice Nogueira Galvão Gerson Almeida Ricardo Fabbrini Marjorie C. Marona Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Roberto Alves Daniel Afonso da Silva José Micaelson Lacerda Morais Renato Dagnino Ricardo Abramovay Luiz Carlos Bresser-Pereira José Luís Fiori Caio Bugiato Antonio Martins Dênis de Moraes Manchetômetro Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marilia Pacheco Fiorillo João Feres Júnior Marcos Aurélio da Silva Dennis Oliveira Lucas Fiaschetti Estevez Lorenzo Vitral Leda Maria Paulani Alexandre de Lima Castro Tranjan Henry Burnett Armando Boito Luis Felipe Miguel Ronald Rocha João Carlos Loebens Mário Maestri Fernão Pessoa Ramos João Sette Whitaker Ferreira Daniel Costa Yuri Martins-Fontes Fernando Nogueira da Costa Valerio Arcary Luiz Werneck Vianna Érico Andrade Mariarosaria Fabris João Paulo Ayub Fonseca Luís Fernando Vitagliano Tadeu Valadares Francisco Pereira de Farias Eduardo Borges Fábio Konder Comparato Paulo Martins Luiz Renato Martins Ronald León Núñez Berenice Bento André Singer Claudio Katz Rafael R. Ioris Daniel Brazil Eliziário Andrade Anselm Jappe Tales Ab'Sáber Airton Paschoa Juarez Guimarães Marilena Chauí Heraldo Campos Alexandre Aragão de Albuquerque Bruno Machado Paulo Capel Narvai Igor Felippe Santos Alexandre de Freitas Barbosa Lincoln Secco Michael Löwy Boaventura de Sousa Santos Ari Marcelo Solon Vladimir Safatle José Machado Moita Neto Celso Favaretto Remy José Fontana Luiz Eduardo Soares Matheus Silveira de Souza Jean Marc Von Der Weid Leonardo Boff João Adolfo Hansen Kátia Gerab Baggio Sandra Bitencourt André Márcio Neves Soares Eleutério F. S. Prado Alysson Leandro Mascaro Chico Whitaker Otaviano Helene José Dirceu Paulo Nogueira Batista Jr José Raimundo Trindade Rubens Pinto Lyra Benicio Viero Schmidt Eleonora Albano Antônio Sales Rios Neto Antonino Infranca Osvaldo Coggiola Julian Rodrigues João Carlos Salles Flávio R. Kothe Everaldo de Oliveira Andrade Vinício Carrilho Martinez Annateresa Fabris José Geraldo Couto Luiz Bernardo Pericás Jorge Luiz Souto Maior João Lanari Bo Samuel Kilsztajn Marcos Silva Luiz Marques Chico Alencar Michael Roberts Milton Pinheiro Jorge Branco Paulo Fernandes Silveira Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Musse Maria Rita Kehl Luciano Nascimento Carla Teixeira Leonardo Avritzer Salem Nasser Andrew Korybko Denilson Cordeiro Andrés del Río Michel Goulart da Silva Slavoj Žižek Sergio Amadeu da Silveira Thomas Piketty Gabriel Cohn Valerio Arcary Carlos Tautz Gilberto Lopes Manuel Domingos Neto Bento Prado Jr. Bernardo Ricupero Ladislau Dowbor Priscila Figueiredo Jean Pierre Chauvin Celso Frederico Afrânio Catani Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Costa Júnior Gilberto Maringoni Marcus Ianoni Francisco Fernandes Ladeira Leonardo Sacramento Tarso Genro Vanderlei Tenório Henri Acselrad Liszt Vieira Rodrigo de Faria Atilio A. Boron Marcelo Guimarães Lima Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Trivinho Flávio Aguiar Eugênio Bucci Marcelo Módolo

NOVAS PUBLICAÇÕES