Caetano tardio

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Por FERNÃO PESSOA RAMOS*

Ensaio sobre a obra de Caetano Veloso a partir da análise do filme “Narciso em férias”

O último documentário sobre Caetano Veloso tem sido motivo de polêmicas. Muito se falou das opiniões que Caetano, ‘en passant’, desenvolve na obra, mas nem tanto se escreveu sobre o filme propriamente.

Narciso em férias é um documentário, um filme documentário, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, autores que possuem filmografia conjunta havendo assinado igualmente um documentário sobre Carlos Imperial (Eu sou Carlos Imperial) e outro sobre os festivais de música da Record, o bem sucedido Uma noite em 67.

Ambos são roteiristas e escrevem em periódicos como Folha de S. Paulo e Piauí. Renato parece ser o mais voltado para a “mise-en-scène” e é quem interfere, com falas, na cena de Narciso em férias. É ele que entrega para Caetano no filme a famosa revista Manchete com “as tais fotografias” da Terra coberta de nuvens que, anos mais tarde, inspirariam o poeta – retornando de uma sessão de Star Wars e embalado por seus personagens errando em galáxias distantes, longe do planeta mãe – a compor uma das canções mais conhecidas e bem sucedidas de seu repertório (“Terra”).

Como documentário, Narciso em férias é particularmente bem-sucedido. Renato Terra e Ricardo Calil possuem a qualidade dos bons roteiristas que é saber se deslocar de longas e complicadas histórias para se fixar no ponto que possa render audiovisualmente para a linguagem dramática da narrativa cinematográfica. No caso dos documentários, ao modo dramático da ficção é sobreposta uma camada enunciativa de asserções em ‘voz over’ (fora de campo), ou então a fala do ‘eu’ que enuncia em depoimentos ou entrevistas.

Estas incidem sobre o universo exterior ou sobre o ‘si próprio’ que fala. Em Uma noite em 67 os diretores haviam conseguido recortar com sucesso, numa noite, o clima efervescente da época, representando um estimulante painel do mundo acontecendo na intensidade de sua indeterminação.

Uma noite… é de 2010 e nesta época o documentário brasileiro descobria o potencial da utilização de imagens de arquivo (imagens de época) para narrar. A forma já está presente com maturidade pelo menos desde os trabalhos pioneiros de Silvio Tendler na década de 1980 (Os Anos JK, uma trajetória política/1980; Jango/1984) e nos quatro longas de Eduardo Escorel sobre o contexto da emergência histórica de Getúlio Vargas, série dirigida a partir de 1930 – Tempo de Revolução’/1990 (produção e pesquisa de Claudio Kahns e André Singer).

Uma noite em 67 é um dos momentos altos deste estilo. Possui uma narrativa ágil, farta em material de arquivo, depoimentos contemporâneos e o foco preciso na ‘noite em 67’, a partir da qual as mãos seguras dos roteiristas conseguem contar tanta coisa. Isto é cinema, cinema documentário, que tem especificidades e singularidades que o diferenciam da forma ficcional do filme.

Narciso em férias, enquanto documentário, se constitui de modo diverso. Em seu centro está o depoimento de Caetano Veloso que adquire uma dimensão própria. A narrativa se debruça na intensidade de sua expressão corporal (fisionomia e gestualidade), explorando a performance que o modo de locução da fala instaura. Renato Terra declara haver pensado inicialmente em trabalhar com material de arquivo para retratar a prisão de Caetano, mas ter mudado de ideia durante o processo e se focado no depoimento quando percebeu a riqueza do material que tinha em mãos.

Na mudança (imagens de arquivo pontuam somente os créditos finais), revela-se o talento do artista cinematográfico, aproveitando criativamente as reviravoltas do contexto de produção que sempre envolvem e determinam a arte do cinema. Nesta trilha, o documentário contou, entre outros (o cinema é uma arte autoral, mas de criação coletiva), com a participação de João Salles na Videofilmes, provavelmente palpitando na edição e no modo de aproveitamento do material tomado para composição da unidade fílmica.

A participação neste processo de composição é brevemente mencionada pelo irmão de João, Walter Salles, em uma entrevista sobre a produção de Narciso em férias à revista Variety, publicação ligada aos estúdios hollywoodianos. A produção propriamente foi de Paula Lavigne, que teve a sensibilidade para iniciar a concepção do projeto, com as tomadas realizadas logo antes das eleições de 2018. A exibição/distribuição no Brasil ficou a cargo da Globoplay que certamente teve neste filme, e na repercussão que causou, um ponto de referência para a afirmação de seu streaming.

Narciso em férias é obra que mostra o documentarista em sua lide com o mundo, conforme este mundo deixa seus traços, pela tomada, no maquinismo da câmera. Assim, é um filme de mise-en-scène, de direção de cena. Terra e Calil merecem os créditos por saberem abrir as portas da cena e por colocarem lá a ‘fera’ Caetano– dentro da ‘jaula’ da encenação.

Encenação que conduzem num modo claramente minimalista, face a intensidade da performance. A dimensão do talento está presente exatamente no recuo com que deixam respirar a expressão do corpo e da fala de Caetano, conforme progressivamente se configuram diante de si, diretores. Deixar respirar em seu ritmo próprio é um modo de desdobramento daquilo que, como memória da experiência, esteve contido, velado, e agora se revela através da performance para a câmera na circunstância da tomada.

As tomadas foram feitas por duas câmeras simultâneas articuladas sem hierarquia (fotografia de Fernando Young), aparentemente em duas sessões, misturadas de modo sutil na edição da obra, assinada por Jordana Berg (montadora preferida de Coutinho) e Henrique Alqualo, que seguem um rumo de cortes leves, respeitando a continuidade, embora bastante recorrentes.

O tipo de documentário que explora a matéria do corpo, particularmente rosto e fala, tem tradição forte no Cinema Brasileiro, sendo, certamente, Eduardo Coutinho sua maior figura. Coutinho descobriu o veio na segunda fase de sua carreira e a ele se dedicou nos últimos 20 anos de vida, com um talento que o levou a ser considerado um dos principais cineastas do cenário mundial neste início de século XXI.

No eixo de seu cinema, ao menos a partir dos anos 2000, está a expressão da personalidade-personagem pela face/fala, com continuidade e organicidade retirada da unidade da tomada. Terra e Calil, respirando em sua herança e influência, inclusive pela produção no ambiente ‘Videofilmes’ que abrigou Coutinho, souberam canalizar o modo fílmico para as particularidades de Narciso em férias.

Caetano Veloso parece ter sido composto, na gestualidade de seu corpo e nas tonalidades de sua fala, para este tipo de cinema. Bastante lúcido e com a memória bem articulada, percorre em galope as principais etapas de seu périplo por cárceres da ditadura militar, sem se ater em atitudes choramingas às vezes tão ao gosto do público em busca de catarse mais imediata. O próprio Gil, em entrevistas que acompanharam o lançamento do filme e que pedem também as suas memórias do evento, revela espanto coma límpida estrutura cronológica da memória de Caetano, qualificando suas próprias lembranças de mais impressionistas e afetivas, em torno de episódios singulares.

Caetano dá um colorido particular à sua experiência, pontuando-a com a intensidade da fala e a constelação de afetos, que sua fisionomia – a nós familiar – direciona para circunstâncias que pesca em sua imaginação. É neste ponto que realço a direção de cena de Terra e Calil, por saberem extrair de seu sujeito a forma parece transbordar naturalmente nesta direção. Mas a naturalidade não existe aqui, tratando-se não só de cinema, mas da cena cinematográfica.

De todo modo, a expressão fisionômica de Caetano para a câmera (ele possui este dom) pode assustar e sua fala é lapidar, corta como navalha. Há uma conhecida foto de Bob Wolfenson de Caetano com as sobrancelhas arcadas em posições opostas e que resume bem esta força fisionômica-corporal que o filme capta através da inteligente escolha do cenário: o paredão com as placas de concreto e a cadeira isolada onde ele pode entrecruzar as pernas sobre si mesmo, formando a centralidade de uma figura à vontade para sustentar a fala.

É esta composição cênica, e o olhar de Terra e Calil dirigindo o ‘ator’ Caetano, que estão no núcleo da força do filme. A entrega da foto da Manchete, gerando certa surpresa, no momento certo; o recuo preciso numa intervenção mais forte para ceder lugar à fala de Caetano; a opção pela leitura dos autos do processo na parte final do filme; são todos elementos que compõe a construção da cena na qual a expressão de Caetano se efetiva.

Os autos de seu depoimento na época, aparentemente, foram conseguidos por um membro de sua família alguns meses antes da filmagem. O cantor teria percorrido de modo casual as páginas, mas foi nas tomadas do documentário que se entregou a ‘encenar’ (no modo ‘direto’) sua reação, a partir de proposta da direção de cena. Cercando e dando norte à performance de sua memória, a direção utiliza-se destes dois motivos exteriores (Revista Manchete e autos do processo) para enquadrar e dar ponto de gravidade à fala,de maneira que esta não se perca numa maneira centrífuga.

Há de se destacar também a interpretação da canção ‘Hey Jude’ na intensidade do fluxo unitário do depoimento na encenação, mas inserida de modo ilustrativo à memória de sua audição na prisão. O fluxo do depoimento, segundo os diretores, foi tomado em dois momentos distintos principais (Coutinho, no mesmo tipo de cinema, caracteriza-se por buscar, no limite, a síntese absoluta, não admitindo a ilustração motivada).

A expressão de um corpo e sua fala traz uma intensidade ampliada quando este corpo é de um personagem público, uma ‘estrela’. Sua configuração, para nós, adquire a inevitável particularidade que a encenação de fisionomias anônimas não possui. Os trejeitos fazem parte de nosso repertório comum. A voz que conhecemos na modalidade canção é a mesma fala que ouvimos no depoimento, compondo indiretamente recordações que podem ser acionadas como afetos em nossa memória. Some-se a isto a presença do Caetano-corpo falando na duração do presente da tomada, e em nosso tempo espectatorial, num modo de discurso com retórica forte, articulado na maneira incisiva que é uma das características do poeta.

Caetano diz não gostar de perder o controle e se ver tomado pela ira. Que se sente muito mal quando isto acontece. Vendo sua personalidade, imagem fílmica da cena no modo de um comportamento, podemos imaginar esta ira atrás da doçura que estampa. Em alguns momentos mais sérios, o jogo de sobrancelhas mostra a penetração do temperamento forte. Mas quem sustentou o discurso lúcido de improviso, sem perder a toada, face a plateia revolta no evento ‘É Proibido Proibir’ (‘É esta a juventude que quer tomar o poder …’), não deveria ter receio de se perder na exaltação, tragado pelo descontrole da ira. Num momento similar, Sergio Ricardo acabou jogando o violão na plateia.

Além da fala musicada, Caetano tem este dom do discurso do entendimento e da explicação, na boa tradição da retórica baiana, ou brasileira, e não se faz de rogado quando solicitado. Depois de iniciado na exposição, Caetano vai como um trem, ou uma cachoeira (definições de François Truffaut e Humberto Mauro para cinema) em direção a seu destino. Este movimento de fazer transcorrer um relato na duração, inexorável como uma flecha para o fim, encenando para a câmera, é também o movimento do filme.

Narciso em férias é a expressão da memória conforme ela emerge pelo presente da fala, transcorrendo da fisionomia e da gestualidade. Traz o homem velho que relembra a vida, mas ainda não a consegue deixar para trás, como exalta a canção. Está imerso no presente dos homens, inteiramente à vontade na espuma do burburinho, oscilando no prazer e na ira das polêmicas. Ainda é o homem velho, mas os ares carregados certamente o rejuvenescem.

E no homem velho Caetano Veloso assistimos uma guinada, senão na obra, nas falas explicativas deste ‘entendimento’ do mundo que o acompanha desde a juventude e agora forma algo como um ‘Caetano tardio’. Um poeta tardio que continua narciso, na naturalidade entusiasmada que olha a si mesmo no espelho da câmera, saboreando a explicação, mas que abandona a espontaneidade que um dia teve no presente do passado.

Traz antes uma posição reflexiva de raiz, uma sobre-camada intrínseca sobre a camada original. Desperta já na própria memória do mundo para se debruçar na reflexão do outro, citação originária que tem prazer em levar pela mão ao exibi-la para épater, chocar. Há claramente um impulso passadista e retrospectivo neste movimento do último Caetano.

O estilo tardio é aquele que, antes de tudo, pode estampar o desleixo e a liberdade do narciso seguro de si, estampando o ‘poder da subjetividade’, no ‘gesto irascível com o qual se despede das próprias obras’ (Adorno). É quando, de algum modo retornando, o artista consegue dar densidade suficiente à camada original refletindo-a sempre em abismo a ponto de poder nela se deter, para lembrar ou estraçalhar.

‘Estilo Tardio’ foi um conceito criado por Theodor Adorno, em sua juventude, num escrito sobre o velho Beethoven. Entre outros, o intelectual palestino Edward Said publicou um livro (póstumo) sobre o tema, Estilo Tardio (Companhia das Letras). O livro de Said é uma coletânea de ensaios reunidos por amigos após sua morte e trabalha a última obra de Beethoven, Strauss, Visconti, Jean Genet, Glenn Gould, Eurípedes, Benjamin Britten e outros, além do próprio Adorno.

O ensaio de Adorno, ‘O Estilo Tardio em Beethoven’, inicia-se com um belo parágrafo estabelecendo relação entre frutas maduras e a maturidade do artista: “A maturidade dos trabalhos tardios dos grandes artistas não se assemelha aquela que encontramos nas frutas. Eles são, em sua maioria, rugosos e irregulares, mesmo decompostos, estragados, ruinosos. Desprovidos de doçura, amargos e espinhosos, não se oferecem a mera degustação. Falta-lhes a harmonia que a estética clássica tem o hábito de demandar aos objetos de arte e eles mostram mais traços de história que de crescimento”.

É neste escrito de sua juventude de 34 anos (1937) que Adorno define a percepção do tardio na arte. Depois, ele mesmo se enredaria nos meandros deste mesmo tardio na introspecção meio retorcida e no rebuscamento oscilante da escrita (e do pensamento) em Dialética Negativa, obra derradeira lançada três anos antes de sua morte, ocorrida em 1969.

Também Gilles Deleuze, no apagar das luzes, já com a falta de fôlego que o levaria ao suicídio três anos depois, escreve, em 1992, num de seus últimos ensaios, L’Épuisé, sobre a sensação de esgotamento nos trabalhos audiovisuais do Beckett tardio (ver Larissa Agostinho. ‘O Estilo Tardio: Deleuze e Beckett’).

O esgotamento é uma das marcas deste estilo tardio, quando o artista (e também o pensador) se ergue como leão faminto sobre a própria obra ‘deixada para trás’ e a sacode em plena irresponsabilidade criativa, impedindo que o ruminar ciente da sociedade repouse na boa consciência da interpretação. A obra esgotada, a obra que carrega sobre si o esgotamento tardio, é aquela que, no limiar da representação, encara de modo afirmativo a parte do fim que lhe cabe. É testemunho, ainda segundo o Adorno jovem, da ‘finita impotência do eu confrontado com o ser’.

Se há uma guinada em Caetano, sua base original sempre foi a de um estilo libertário, provocador, que, num primeiro momento, trouxe para o Brasil o inédito diálogo sem fronteiras com os produtos culturais do capitalismo avançado. A interação criativa do Tropicalismo com o lixo e o luxo da indústria cultural, num viés ‘pop’, lhe valeu uma prolongada polêmica com o crítico marxista Roberto Schwarz que, dentro da coerência de sua posição, não poderia ver com bons olhos a aproximação, ainda que de caráter deglutidor, com o arcaico alienado e outros ‘estilhaços’ hipermodernos que, na época, explodiam ‘sobre Copacabana’– num modo ‘superbacana’.

Nem a exaltação criativa de outros produtos por excelência desta mesma indústria cultural, como a Jovem Guarda de Roberto Carlos (‘ouvir, aquela canção do Roberto…’), os fragmentos da publicidade nas bancas de revista, a guitarra elétrica, o rock alienado dos Mutantes, a cultura alucinógena, o ‘desbunde’, o marginalismo hippie, etc., etc.

Momento tropicalista que veio a ter uma espécie de obra de coroação, como fôlego de um período, em ‘Araçá Azul’ (1973). Na evolução, ou na sequência numa nova direção, a cultura do corpo e do naturalismo, o horizonte paz-amor, marcam o segundo momento da carreira de Caetano a partir dos LPs gêmeos ‘Jóia’ (1975) e ‘Qualquer Coisa’ (1975).

Nestes, o deslocamento das bandeiras tropicalistas fica claro na nova sensibilidade naturalista (particularmente intensa em ‘Jóia’), voltada para o deslumbramento com a revelação do mundo da natureza, onde habita aquele deus pequenino, o deus das avencas, o ser panteísta ‘que mora na proximidade do haver-avencas’ (‘Pelos Olhos’). Mundo à imagem do cosmos, já descrito como ideal orgânico no qual vigora ‘toda a pureza, da natureza, onde não há pecado nem perdão’.

O Caetano tardio de Narciso em férias e do pós Narciso em férias’ (as cenas do filme foram ‘tomadas’ há cerca de dois anos), carrega este passado mas o faz girar pela lente da polêmica, que parece ser um móvel oculto constante de sua obra, seja no tropicalismo, seja no naturalismo cosmológico, seja agora no viés político com recorte mais tradicional dentro do campo da esquerda.

O motor libertário da postura ‘Caetano’ de ser, que ele construiu como identidade para toda uma geração, se sobrepõe neste modo da polêmica, fazendo um fundo que dá as costas para a substância do embate. A face libertária já ensejava o lado polêmico, mas na época colocava-se nele como decorrência, dando gravidade e motor. No espírito tardio, Caetano permanece vibrando neste ponto, mas superado pela demanda e pelo gosto do choque que no final adquire giro próprio ao rodopiar solto.

Gosto que é acentuado pela configuração de nossa atualidade, com um campo à direita, de cunho autoritário, conseguindo ocupar espaço na farsa histórica daquilo que ressurge – num movimento similar ao detectado originalmente pelo velho Marx em Napoleão III, o ‘pequeno’, no Segundo Império francês. Movimento que mostra, entre nós, a força política da intuição marxista do retorno dialético (que não é o eterno retorno), agora às voltas com os generais liderados pelo pequeno capitão.

Afinal, o crime de cantar o hino nacional sob ritmo de Tropicália, ainda que imaginado pelo delator (mas particularmente bem imaginado), tornou-se novamente bem real e novamente contestador, podendo servir de ressurgimento da matriz polêmica para o campo arcaico que a Tropicália, em sua época, havia pensado ter engolido e regurgitado para sempre.

O modo da ironia e da paródia alegórica estilhaçando a representação, que um dia teve lugar como imagem pertinente, no momento da farsa perde seu impulso. Eles, os generais, a família na sala jantar, voltaram, mas a intensidade primária daquele deslocamento súbito, que deu massa crítica à imagem original do tropicalismo, claramente não existe mais. O verde-amarelismo copiado da farsa perdeu a graça que tinha na primeira sensação de deslocamento, quando a convivência súbita do arcaico e do hipermoderno lançava o estilhaço alegórico.

Em outras palavras, não há uma Tropicália dois, uma Tropicália bis, mas existe o nacionalismo verde-amarelo retornando como um afresco farcesco, vibrando nisto que é a atualidade de sua reposição. Deslocado, então, o Caetano tardio encontra a resposta à farsa não no lado libertário da contracultura, nem na deglutição debochada das relíquias do Brasil e seu ‘monumento papel crepon e prata’.

Ao sentir a necessidade de continuar respirando a plenos pulmões, já como homem velho, encontra nova verve no oxigênio da polêmica e se depara, como norte, na constituição de uma oposição simétrica e desafiadora, no pelo a pelo, no olho a olho, à realidade paralela fantasista dos velhos generais que retornam das catacumbas.

Houve aqui um nítido rebaixamento do argumento (não estamos falando da criação artística) no discurso do entendimento esclarecido que tanto gosta de empreender Caetano. No embate frontal dos opostos busca-se uma polêmica que possa ser a tal ponto desafiadora que dê vazão à indignação que todos sentimos, mas sob o modo nivelador da verve iracunda, diretamente para atingir o ponto mais baixo do inimigo, disputando no próprio espaço de sua lógica.

Assim, deixando cair o campo libertário do pensamento crítico não conciliado, no qual sempre se fixou, o troca pelo lançar da polêmica e nela se balança sozinho. Neste ponto, fica também sobrando toda a tradição do socialismo que possui o recorte libertário e que esteve na raiz da formação, a partir de meados dos anos 1970 e início da década seguinte, com a derrota da luta armada, das novas agremiações na esquerda brasileira contemporânea que, de alguma forma, incorporaram este espírito – e que se arrepiam com a ressurgência de valores ‘zumbis’ que se acreditava definitivamente enterrados.

Desalento ainda mais forte ao trazer a chancela de uma figura livre como Caetano Veloso, presente na tradição que sempre soube sobreviver sem o ‘resquício da síntese’. A resposta ao discurso alucinado à direita não deve ser o ‘épater le bourgeois’ na lavanderia de roupa suja do outro lado, principalmente quando a máquina de lavar pode estourar, se arremeter sem controle e em algum ponto coincidir na barbárie.

*Fernão Pessoa Ramos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de Mas afinal… o que é mesmo documentário? (Senac-SP).

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