Por BERNARDO BORIS VARGAFTIG*
Caetano Veloso revelou de forma simpática e modesta, sua, eu diria quase, conversão a uma forma de socialismo, veiculada por Domenico Losurdo, que desagradou a Calligaris
Num tom jocoso, Contardo Calligaris se interessa pelo debate em curso sobre a mal nomeada “conversão” de Caetano Veloso ao socialismo (Folha de S. Paulo, 17/11/2020), durante seu encontro com Jones Manoel, jovem membro do PCB, que lhe recomendou a leitura das obras do escritor Domenico Losurdo.
O caráter confuso do artigo não surpreende. O bom amigo de Caetano Veloso que Calligaris afirma ser, mantém um tom familiar, ameno, um pouco entristecido pela evolução supostamente negativa do cantor. De fato, Caetano Veloso revelou de forma simpática e modesta, sua, eu diria quase, conversão a uma forma de socialismo, veiculada por Domenico Losurdo, que desagradou a Calligaris.
Estranho destino o de Domenico Losurdo, escritor e político comunista italiano, a quem é atribuído o mérito desta adesão ao socialismo.
Losurdo escreveu alguns livros bem interessantes sobre o liberalismo do século XIX, o bonapartismo e o colonialismo, pouco lidos na Itália, onde floresce a literatura marxista analítica.
Enveredou por um caminho danoso para o objetivo que proclamava, o socialismo.
Defendeu o stalinismo (o dito socialismo “real”), atribuindo-lhe o imenso avanço que foi o estabelecimento da economia estatizada na época, que permitiu, como na China, transformar países semi-feudais em países de economia avançada, mesmo se socialmente deformados pelas burocracias dominantes.
O stalinismo foi uma tendência contra-revolucionária, responsável por derrotas essenciais da esquerda internacional e, in fine, pelo retorno ao capitalismo da URSS, dos países de sua zona de influência e da China.
Esta foi a conclusão lógica da degenerescência do Estado operário soviético e não seu mérito.
Extraordinário observar que os epígonos do stalinismo pretensamente renovado defendem transformações que, nos anos 1930, eram justamente combatidas pelos oponentes ao stalinismo, os trotskistas e associados, que pagariam um preço alto ao se oporem às transformações retrógradas impostas por Stalin e sua clique.
Losurdo tornou-se um promotor de uma antiga-nova tendência da esquerda, o neo-stalinismo, tendo se preparado para tal papel com um anti-trotskismo histérico.
Procurou entender a crise do stalinismo sem reconhecer a tendência que a ele se opôs o mais vigorosamente, a do trotskismo, que caluniou como pode.
Não se trata de defender uma tendência política somente, mas de revelar que, quando era meia noite no século, como dizia Victor Serge, havia militantes que procuraram denunciar a mentira e assim, resguardar as ideias do marxismo revolucionário para o amanhã, ou seja, para hoje.
Nesta situação aparecem intelectuais informados e confortados no sistema capitalista reinante, a explicarem que no fundo, o melhor mesmo é deixar como está para ver como fica.
É o caso de Contardo Calligaris e de Pablo Ortellado.
Pretende Callagaris que os liberais eram antifascistas irredutíveis, enfrentando o “totalitarismo”, conceito confortável que inclui tanto os fascistas quanto os marxistas.
Para tanto, Calligaris leu um dos livros de Losurdo, sobre a falsa consciência do liberalismo – livro que desmascara os liberais escravocratas, mas Calligaris, numa tentativa de ser divertido, os compara a Engels, cujos rendimentos capitalistas financiaram os trabalhos de Marx.
Losurdo tem razão em denunciar a cumplicidade dos elegantes liberais do século XIX, que traficavam com a escravidão no escondido e Calligaris não a tem quando, para minimizar o papel reacionário dos liberais clássicos, os compara a Engels, que teria participado da exploração de mão de obra operária o que permitiu-lhe auxiliar seu companheiro político e intelectual, Karl Marx.
Engels herdara a propriedade, casou-se com uma das operárias e assegurou assim que a humanidade se beneficiasse dos trabalhos de Marx.
Isso leva Calligaris a atribuir aos chamados socialistas o conceito como que haveria uma violência benéfica, aquela que por exemplo assegurou a libertação dos escravos no Haiti, e uma maléfica, a colonial.
A violência provém da luta pelo poder de classe, assim as burguesas parisienses matavam os comunardos parisienses de 1871 enfiando-lhes nos olhos a ponta de seus elegantes guarda-chuvas ou o rei da Bélgica, que se apoderou pessoalmente de amplas terras congolesas, cortava as duas mãos dos congoleses rebeldes (o parlamento belga acaba de retomar os trabalhos de uma comissão sua para clarificar esta situação. Levou um bom tempo para tanto e nada garante sua sinceridade e continuidade).
A história da sociedade de classes está repleta desses horrores, cujas vítimas se vingavam com frequência e por vezes em vítimas inocentes.
Como sabe Calligaris, a bomba atômica e os bombardeios americanos no Vietnam mataram centenas de milhares de pessoas e foram aqueles que o bizarro folclore linguístico americano denomina “liberais”, que nada têm do sentido liberal usual, que se opuseram violentamente a este brutal conflito colonial.
Pouco convincente, Calligaris quando discute a violência reativa no Haiti, vivendo num país que massacrou parte enorme dos povos originários.
Mesma coisa no que diz respeito a violência institucionalizada em nossos dias, que mata diariamente jovens negros nas periferias, para garantir a perenidade do capitalismo e a “boa disposição” dos capatazes, pobres que compensam sua frustração matando outros pobres.
Calligaris utiliza sem a menor critica o termo “socialismo real”, o igualando ao stalinismo, assim promovido a uma alternativa realista.
Ora, o stalinismo tem uma origem, uma história, um desenvolvimento e terá sua morte.
Não por acaso Calligaris, que enverada pela interpretação histórica sem conhecê-la, não cita Trotski, que certamente não leu.
Esse fez análises inigualáveis das condições sociais e políticas que levaram ao surgimento e ao fortalecimento da casta que conseguiu, em circunstâncias históricas bem definidas, se apossar do poder que a classe operária russa havia conquistado, mas mantendo a propriedade social dos meios de produção.
Esta contradição justificou a definição da URSS como Estado operário degenerado, que, no processo dialético forçosamente instável, não poderia senão bascular para o socialismo ou para a reconversão ao capitalismo, que ocorreu.
A causa primária, seguida evidentemente de outras, desta degeneração do Estado dito operário, em oposição ao Estado burguês querido dos liberais, foi o isolamento da revolução russa e o fracasso das revoluções no restante da Europa, a começar pelas três revoluções alemãs, de 1919, 1921 e 1923.
Foram elas esmagadas pelos chamados corpos francos (as milícias desse pessoal), agrupamentos de soldados soltos no espaço e no tempo pela derrota militar e manobrados pela extrema direita e futuros nazistas, com o beneplácito dos liberais, que pensavam poder conte-los após terem prestado o assassino serviço.
Os corpos francos foram sustentados pela associação da cúpula militarista derrotada, que como é habito, acusava os civis de tê-la traído, com os proprietários de terra e a cúpula dos social-democratas, que tudo fizeram, e conseguiram, para que o movimento spartakista de Rosa de Luxemburgo e de Liebknecht fosse massacrado, inclusive com o assassinato de ambos.
O resto foi de uma continuidade lógica.
Instalou-se uma coalizão de liberais e de social-democratas de direita na chamada República de Weimar, que levou em circunstâncias que não cabe discutir aqui, à vitória dos nazistas em janeiro de 1933 – com o apoio de liberais e do conjunto das burguesias europeias.
Não por acaso os liberais conservadores franceses diziam: “Plutôt Hitler que le Front Populaire”, “Antes Hitler que a Frente Popular”, coalizão impotente entre socialistas e comunistas e os chamados “radicais”, que disso nada tinham, sendo a ala direita da heteróclita coalizão que governou a França entre 1936 e 1938.
Quando a burguesia sentiu que não era mais útil, a despediu – como fizeram com Dilma, apesar de seus esforços conciliadores, como sua aprovação da lei anti-terrorismo.
Trotski e outros mostraram que o stalinismo exprimia não o socialismo, mesmo “real”, mas a ideologia de uma casta burocrática, que encampou o poder construindo conceitos gerados por um pseudo-marxismo mitológico.
Esta explicação, evidentemente discutível, oferece novos subsídios para a compreensão da crise mundial do stalinismo que não resultou, contrariamente ao que muitos de nós prevíamos, num movimento revolucionário homogêneo e radical.
A parte final da rubrica de Calligaris mostra plenamente sua incompreensão da dinâmica de luta de classes.
Mistura um conceito como “totalitarismo” com o integralismo, variante brasileira do fascismo pré-guerra, sem explicar suas razões, se é que existem.
E seu desejo expresso de se associar a uma matriz libertária do liberalismo, “organizado pelo medo da liberdade individual” marca sua posição psicologista, sem aliás mencionar as explicações relacionadas à psicologia do fascismo, de Fromm, Reich, Adorno etc.
Finalmente, os cães ladram e a caravana passa.
Os refúgios mentais de Calligaris foram superados há muito tempo, as calúnias anti-trotskistas e o ocultamento de sua mera existência, para evitar de consigo polemizar, não podem esconder os fatos.
Uma análise mais detalhada da obra de Losurdo por Mário Maestri (“Domenico Losurdo, um farsante no país dos papagaios” Editora FCM, Porto Alegre, 2020) merece ser lida, assim como documentos ordenados por Jean-Jacques Marie em “Les cahiers du mouvement ouvrier”, 82, 84-98 – segundo trimestre de 2019.
A juventude atraída pelo PCB, eventualmente e infelizmente pela leitura de Losurdo em vez de Marx, Lenin e Trotski, forma um capital revolucionário importante, que precisa ser respeitado através da aplicação do preceito de Lenin que diz “somente a verdade é revolucionária”.
*Bernardo Boris Vargaftig é professor titular aposentado do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Publicado originalmente no site Viomundo.