Por JOSÉ DE PAULA RAMOS JR.*
Reflexão para o discernimento da escolha entre civilização e barbárie
Não creio que o ser humano seja intrinsecamente mau ou bom. Não creio que ele possa ser totalmente mau ou bom. Essas tendências se misturam no comportamento das pessoas. Ora aflora um lado, ora se manifesta o outro. No entanto, é possível observar nos indivíduos uma maior propensão para um desses polos. Ao longo de suas vidas o caráter das pessoas vai sendo moldado de acordo com o meio em que se desenvolvem. Família, escola, amigos, classe social, religião, ambiente e outros fatores influem e favorecem a tendência predominante quanto a ideias e ações.
Com canalhas, eticamente pervertidos e fanáticos não há conversa possível. Não há fatos ou argumentos que os convençam e demovam de suas posições deletérias, funestas e empedernidas. Infelizmente os idiotas, como disse Nelson Rodrigues, são muitos e podem empolgar o poder, pela quantidade e não pela qualidade.
Eis um risco e um perigo real, como o resultado do primeiro turno das eleições de 2022 demonstra. Cerca de 50 milhões de votos favoráveis a Jair Bolsonaro tem algo de monstruoso. Como pode tanta gente depositar suas esperanças de futuro próximo e promissor naquele que em seus quase quatro anos de (des)governo tantos males trouxe ao Brasil?
Nunca houve tantas queimadas e incêndios criminosos que devastam a Amazônia e o Cerrado; o garimpo ilegal prospera, poluindo os rios de mercúrio, com o olhar indiferente do (des)governo; madeireiras clandestinas agem impunemente, com o beneplácito de um ministro; quase 700 mil brasileiros morreram na pandemia, enquanto o presidente da República fazia campanha contra a vacina e a favor de medicamento comprovadamente ineficaz; a inflação escala patamares que impulsionam a carestia; o desemprego castiga milhões, gerando desesperança na população; a fome aflige milhões de miseráveis, que até buscam comida no lixo; na educação, o corte de verbas do MEC ameaça as universidades federais, que se veem sem recursos até para pagar contas de luz e água; nunca a ciência conheceu período como este, de tamanho desprestígio e abandono. A intolerância religiosa avança, sobretudo com o ataque violento a santuários afro-brasileiros. O crime organizado prospera. As milícias aterrorizam a população. O que pode haver de bom perante tamanho descalabro?
Enquanto isso, Jair Bolsonaro passeia de jet-ski e participa de motociatas, sem usar capacete, o que é proibido, mas sem que haja punição ao desrespeito da lei. Numa completa desfaçatez, debocha de pacientes de Covid com dificuldade para respirar; dissemina desconfiança nas urnas eletrônicas, sistema reconhecido internacionalmente como modelar, agride jornalistas, principalmente mulheres, em evidente atitude misógina; envergonha o país, denegrindo-o numa reunião com embaixadores de muitos países, que se sentiram perplexos perante o infundado ataque ao sistema eleitoral brasileiro. Sistematicamente, Jair Bolsonaro agride o STJ e o TSE, pronunciando-se até em baixo-calão, num evidente desrespeito às instituições, configurando, em última instância, ataques ao Estado Democrático de Direito e à Constituição.
Por outro lado, Jair Bolsonaro rende-se ao Centrão ao aprovar o tal Orçamento Secreto, que legaliza, mas não legitima talvez o maior esquema de corrupção da história da República. Com isso preserva-se no cargo, sem temer ações de impeachment, sistematicamente bloqueadas por seus aliados, os presidentes da Câmara e do Senado. Para obter apoio, Jair Bolsonaro também afaga a banda podre dos militares, isto é, aqueles saudosos da ditadura. São milhares que mamam supersalários nas tetas governistas de Brasília. Não são poucos os que anseiam com a volta do AI-5, conforme defesa pública dessa proposta feita por um parlamentar, filho de Jair Bolsonaro. Lembremos que Bolsonaro chegou a elogiar como herói o coronel Brilhante Ustra, reconhecidamente torturador e assassino na ditadura militar.
Pois bem. Não causa surpresa que haja tantos eleitores convictos em Jair Bolsonaro. Eles se merecem. O que surpreende e consterna é que entre os eleitores dessa pústula, o pior presidente da história da República, haja gente inteligente, sensível, de bom coração, inclinada à fraternidade e à solidariedade, que deposita seu voto nessa figura execrável. Para esses eu dirijo a palavra. Confiram os fatos, considerem os argumentos, ponderem. Abram os olhos, os corações e as mentes. Comparem.
Lula talvez não seja o candidato de nossos sonhos. De fato, em seu governo e no de sua sucessora, Dilma Rousseff, muita coisa pode ter consternado o cidadão de bem e o contribuinte. Durante o período em que o PT esteve no poder, escândalos de corrupção vieram à tona: mensalão e petrolão, num pacto espúrio entre executivo e legislativo para assegurar a governabilidade. No entanto, em nenhum momento o regime democrático esteve ameaçado, como ocorre com Jair Bolsonaro.
A despeito de suas deformações e falibilidades, é preciso levar em conta as ações e resultados positivos do governo Lula, para efeito de comparação com o (des)governo de Bolsonaro.
Antes do governo Lula, o Brasil era devedor do FMI. Na gestão Lula, a dívida não somente foi paga como o Brasil se tornou credor. Entre 2003 e 2014, 18 universidades federais foram criadas, duplicando o número de alunos agregados ao ensino superior. A taxa de desemprego no governo Bolsonaro chegou a mais de 11%; na gestão Lula, foi de 4%, o que, na teoria econômica, significa pleno emprego. Milhões de cidadãos foram resgatados da miséria extrema e puderam se alimentar. Em vista disso, a ONU retirou o Brasil do mapa da fome. No governo Bolsonaro houve uma significativa regressão desse quadro.
Embora de modo tímido, a ciência e a tecnologia foram estimuladas no governo Lula; mas Jair Bolsonaro reduziu suas dotações orçamentárias à indigência. Com Lula, o programa Minha Casa Minha Vida abrigou milhares de famílias beneficiadas, que passaram a habitar residência própria. O que Jair Bolsonaro agregou a isso? Lula elevou o orçamento do Ministério da Cultura em 2014 para R$ 3,27 bilhões. Sob Jair Bolsonaro o Ministério da Cultura foi extinto e substituído por uma Secretaria, que teve à sua frente Roberto Alvim, até ser exonerado em virtude da repercussão indignada da opinião pública a um discurso proferido por ele, de caráter francamente nazista, em rede nacional de televisão. Em 2022, Jair Bolsonaro reduziu a dotação orçamentária da Cultura para R$ 1,67 bilhão.
No âmbito das relações internacionais, os asseclas de Jair Bolsonaro acusam Lula de manter relações privilegiadas com Cuba, Nicarágua e Venezuela, mas os fatos demonstram que o então presidente prestigiou a tradição do Itamaraty, reconhecida internacionalmente como admirável, mantendo diálogo equilibrado com as potências estrangeiras, em prol dos interesses nacionais e da paz. Não é à toa que Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos, referiu-se elogiosamente a Lula como “o cara”. Hoje o Itamaraty se vê sujeitado às preferências de Bolsonaro, que se mostrou subserviente a Donald Trump.
A grande imprensa registra inúmeros casos de crimes de responsabilidade imputados a Jair Bolsonaro, mas ele permanece incólume por omissão dos presidentes da Câmara e do Senado. Processos de impeachment se acumulam, mas são relegados às calendas, porque a oposição ao governo no Congresso não tem força para impor sua pauta.
Muitas outras comparações poderiam ser feitas, mostrando a grande distância entre o estadista Lula e o abjeto e lamentável Jair Bolsonaro. Mas fico por aqui, na esperança que este texto contribua para a reflexão e o discernimento do bom cidadão. A escolha entre civilização e barbárie é nítida.
*José de Paula Ramos Jr. é professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP. Autor de Leituras de Macunaíma: Primeira Onda (1928-1936) (Edusp).
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