Os generais ressentidos

Imagem_Oto Vale
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JORGE BRANCO*

Tólstoi conheceu generais diferentes dos generais brasileiros, ao menos dos generais brasileiros que frequentaram o poder na ditadura de 1964 e agora com Jair Bolsonaro na presidência

Leon Tólstoi teceu em ‘Guerra e paz’ uma fusão metodológica entre a interpretação crítica da história, objetiva e material, e a visão metafísica da escolha de um futuro superior, subjetivo e imaterial. Mergulhou ele em um emaranhado de símbolos econômicos, de classe social e de valores morais, para afirmar que apesar de todo o mal e horror que formam a história, a civilização vai deixando para trás, pouco a pouco, seu pior.

Guerra e Paz, para além de um romance literariamente sofisticado, é a própria procura do discernimento, com base na filosofia e na ética, que torne possível distinguir o bem e o mal. Esta ‘epistemologia” é a base da estrutura complexa dos principais personagens.

Todo conhecimento, sabemos nós, é produzido como acumulação de outros conhecimentos, portanto o conhecimento é dependente de suas circunstâncias, da realidade universal e da realidade particular que o cerca, em uma “fusão” dialética. Alguns analistas o compreendem melhor do que outros, alguns filósofos o projetam melhor que outros, no entanto. Poderíamos assim dizer, que Tólstoi foi grande porque grandiosas eram as circunstâncias e, também, grandiosas eram as pequenas pessoas que construíram a história que ele racionaliza em sua literatura.

Mas afinal, baseado em que tipo de sujeitos e em qual realidade, Tólstoi construiu personagens deslumbrantes, vividos na rudez dos campos e da morte, mas, no entanto, tão capazes de expressar a projeção fortemente ética de um futuro menos provido de ódio, tal como o General Kutúzov?

Certamente uma realidade distinta de nossa realidade brasileira. Para elaborar a dimensão histórica de Kutúzov e o transformar em seu personagem, certamente, Tólstoi conheceu generais diferentes dos generais brasileiros, ao menos dos generais brasileiros que frequentaram o poder na ditadura de 1964 e agora com Jair Bolsonaro na presidência.Se o General do romance de Tólstoi era voltado para o futuro, se movia por uma utopia sobre um mundo progressivamente menos pior, os generais de Bolsonaro são voltados ao ressentimento, se movem pelo ódio do passado, e a projeção só pode ser a de um mundo pior.

A construção simbólica de que os generais de Bolsonaro constituíram uma fração técnica e profissional do governo, ou mesmo a auto narrativa de que se constituíram como força moderadora entre as pressões do mal comunista e das forças golpistas, igualmente são desprovidas de comprovação política e material.

Esta missão moderadora não foi efetivada em nenhum dos aspectos interpretativos que se possa dar a ele, institucional ou político. Quanto ao aspecto institucional, o Supremo Tribunal Federal já consolidou a interpretação de que não há na Constituição Federal brasileira qualquer menção à atribuição institucional. As Forças Armadas não são um poder, tampouco moderador. Essa figura institucional de poder moderador não passa de um mito restaurador, tomado emprestado ao Império que eles próprios deram fim no século XIX.

Segundo, tampouco foram capazes de se constituírem como moderadores no aspecto político. Em entrevista ao Brasil de Fato, no dia 20 de abril de 2020 (https://www.brasildefato.com.br/2020/04/30/gosto-pelo-poder-mantem-militares-passivos-a-bolsonaro-avalia-cientista-politico), o cientista político João Roberto Martins Filho afirma que os generais se auto imputaram o objetivo de “(…) controlar, tutelar, racionalizar um pouco o governo Bolsonaro. Ajudar o Bolsonaro a ser uma pessoa diferente da que ele é. Mas eles não conseguiram”. Martins Filho vai adiante e afirma que fatores corporativos e ideológico-conservadores foram a tônica da presença dos generais no governo Bolsonaro.

Os fortes interesses corporativos, bem sucedidos através da consolidação de privilégios salariais e previdenciários, estabeleceram um vínculo subordinado ao governo Bolsonaro, implodindo qualquer possiblidade de um posicionamento autônomo que lhes permitisse uma posição de força dentro do governo ou na relação direta com Bolsonaro.

Se é verdade que a manutenção do governo Bolsonaro está muito relacionada ao apoio dos militares, além do apoio das grandes entidades empresariais locais, o inverso também é verdadeiro. Os militares, que se mostraram mais fracos do que se auto imaginavam, se viram dependentes do governo Bolsonaro para reingressar na esfera da política, afastados desde 1985. Tornaram-se reféns de uma ideia de restabelecimento de um status perdido com o fim da Ditadura de 1964 e com a Constituição Federal de 1988. Um política baseada muito mais no ressentimento do que em um projeto de país.

Não podemos concluir muito diferente da ideia de que o papel que os militares de alta patente das Forças Armadas, notadamente do Exército, cumprem no governo Bolsonaro não possui distinção contundente do papel cumprido por outras categorias da alta burocracia estatal, nos movimentos que permitiram a eleição de Bolsonaro.

Esta alta burocracia, ainda que se mova por interesses corporativos, objetivos com vantagens pecuniárias e subjetivos como prestígio político, demonstrou uma forte formação ideológica conservadora e à extrema direita, no aspecto político. Este último período marcou a restauração de certo sentido “bonapartista’ da alta burocracia estatal, tanto civil quanto militar, convergindo em uma retórica anticomunista, neoliberal, pró Estados unidos e anti China, moralista, religiosa e tradicionalista. Estes elementos foram a base dos movimentos políticos dos burocratas que lideraram a Operação Lava Jato e dos militares que foram fundamentais ao impeachment da Dilma, à prisão e inelegibilidade do Lula e à eleição de Bolsonaro.

Fatalmente, se Tólstoi vivesse no Brasil ou mesmo na Rússia, Polônia ou Ucrânia da atualidade, seu general cumpriria outro papel em seu romance. Enfim, além de um dos maiores escritores de todos os tempos, podemos considerar Leon Tólstoi também um sortudo.

*Jorge Branco é doutorando em Ciência Política pela UFRGS.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Bernardo Pericás João Feres Júnior Henry Burnett Marcelo Módolo Celso Favaretto Celso Frederico Leonardo Avritzer Andrés del Río Thomas Piketty Heraldo Campos Luis Felipe Miguel Gabriel Cohn João Adolfo Hansen Julian Rodrigues Otaviano Helene Ricardo Fabbrini Berenice Bento Bernardo Ricupero Luiz Marques Leda Maria Paulani Michael Löwy José Micaelson Lacerda Morais Sandra Bitencourt Marilena Chauí Marcelo Guimarães Lima Gilberto Lopes Ronald Rocha Airton Paschoa Anselm Jappe Luís Fernando Vitagliano Francisco Pereira de Farias Lucas Fiaschetti Estevez Jorge Branco Ricardo Antunes Juarez Guimarães Armando Boito João Sette Whitaker Ferreira João Paulo Ayub Fonseca Benicio Viero Schmidt Francisco de Oliveira Barros Júnior José Raimundo Trindade Marcos Aurélio da Silva Everaldo de Oliveira Andrade Flávio Aguiar Walnice Nogueira Galvão Alysson Leandro Mascaro Marilia Pacheco Fiorillo Michael Roberts Luciano Nascimento Luiz Eduardo Soares Mariarosaria Fabris Fernando Nogueira da Costa Caio Bugiato Eliziário Andrade Ari Marcelo Solon Atilio A. Boron Marjorie C. Marona Dennis Oliveira Leonardo Sacramento Luiz Renato Martins Paulo Fernandes Silveira Jorge Luiz Souto Maior Chico Alencar Slavoj Žižek Alexandre Aragão de Albuquerque Maria Rita Kehl Carlos Tautz Remy José Fontana Paulo Martins Eduardo Borges Matheus Silveira de Souza André Singer Priscila Figueiredo Fábio Konder Comparato Claudio Katz Ronald León Núñez Denilson Cordeiro Eugênio Trivinho José Machado Moita Neto André Márcio Neves Soares Afrânio Catani Andrew Korybko Annateresa Fabris Francisco Fernandes Ladeira Kátia Gerab Baggio Lorenzo Vitral Eleonora Albano Gilberto Maringoni Jean Marc Von Der Weid Alexandre de Freitas Barbosa João Carlos Salles Dênis de Moraes Lincoln Secco Jean Pierre Chauvin Gerson Almeida Michel Goulart da Silva Eleutério F. S. Prado Ricardo Musse Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Carlos Bresser-Pereira Carla Teixeira Luiz Werneck Vianna Antonio Martins Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Nogueira Batista Jr Manchetômetro Antonino Infranca Marcus Ianoni Elias Jabbour Chico Whitaker Tarso Genro Igor Felippe Santos Yuri Martins-Fontes Alexandre de Lima Castro Tranjan José Dirceu Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eugênio Bucci Daniel Afonso da Silva Flávio R. Kothe Luiz Roberto Alves Fernão Pessoa Ramos Valerio Arcary Rodrigo de Faria Samuel Kilsztajn João Lanari Bo Vladimir Safatle Liszt Vieira Henri Acselrad Rafael R. Ioris Paulo Capel Narvai Anderson Alves Esteves Bruno Fabricio Alcebino da Silva Vinício Carrilho Martinez Bento Prado Jr. Tadeu Valadares Marcos Silva Daniel Costa Mário Maestri Sergio Amadeu da Silveira Valerio Arcary Antônio Sales Rios Neto Tales Ab'Sáber José Geraldo Couto José Costa Júnior Ricardo Abramovay Boaventura de Sousa Santos João Carlos Loebens Leonardo Boff Renato Dagnino Osvaldo Coggiola Daniel Brazil Bruno Machado Milton Pinheiro José Luís Fiori Érico Andrade Rubens Pinto Lyra Manuel Domingos Neto Vanderlei Tenório Salem Nasser Ladislau Dowbor

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada