Charles Renouvier

Imagem: Ariel Tang
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Por KATIA SANTOS & ANTONIO A. NETO*

As reflexões finais de Renouvier ecoam no presente, lembrando-nos de que a busca pela justiça e a lucidez crítica são antídotos perenes contra o dogmatismo, a ilusão do progresso técnico como salvação e a frivolidade do pensamento

1.

No dia 1.º de setembro de 1903, às 8h45min, morria o filósofo Charles Renouvier. Muito lido e discutido em seu tempo de vida, caiu no esquecimento após sua morte, apesar de ter influenciado diversos pensadores dentro e fora da França.[i] Por ocasião dessa data, é especialmente interessante relembrar o opúsculo póstumo Les derniers entretiens,[ii] fruto das reflexões que ele fez pouco antes de falecer. Essas últimas conversas foram ditadas ao seu amigo próximo, Louis Prat, entre a noite de 28/08/1903 e a de 31/08/1903.

Trata-se de um texto comovente, em que se toma contato com um pensador idoso, consciente de que está prestes a morrer, mas que ainda anseia por respostas às suas questões filosóficas, ensaia tentativas de soluções e se pergunta sobre o futuro de suas ideias, deixando ver uma vocação filosófica profunda e verdadeira. “Eu parto sem ter dito a minha última palavra. Sempre se parte antes de ter terminado a tarefa. É a mais triste das tristezas da vida” (1930, p. 3). Ao mesmo tempo, o texto traz análises clarividentes em que o filósofo discute com perspicácia e lucidez questões filosóficas, políticas e até tecnológicas que são prementes nos tempos de hoje.

Dentre os diversos pontos que poderiam ser destacados nesse pequeno livro, está o exame de consciência realizado na expectativa da morte. Charles Renouvier repassa mentalmente o que fez de bom e de mau na vida, e fica feliz por não ter praticado todo o mal que poderia. Trata-se de um interessante esse cálculo moral, que leva em conta não o bem realizado, mas o mal não feito a outros: “E perguntei-me se não valemos mais pelo mal que não fazemos do que pelo bem que acreditamos realizar. Pobres de nós! Sabemos melhor o que não devemos fazer do que o que devemos realmente fazer!” (1930, p. 5).

Ele descobre em sua trajetória atos censuráveis, pelos quais não pode decidir se foi mais mau do que a maioria das pessoas. Apesar disso, confessa a seu amigo, sentindo-se aliviado em seguida, que crê na bondade de Deus, na justiça divina e na ressurreição.

Um aspecto marcante de sua caminhada foi, segundo ele, ter trabalhado com afinco, com paixão e franqueza. De fato, Charles Renouvier foi um pensador incansável que escreveu muito e durante décadas, deixando diversas obras, dentre livros, artigos em revistas, resenhas e inúmeros outros. Embora sejam tantos os textos, ele declara jamais ter escrito nada que não fosse expressão real de suas ideias.

Considera sua melhor qualidade ter respeitado sempre as pessoas de seus adversários filosóficos e políticos, com os quais teve duras disputas e polêmicas. A certo momento das suas últimas conversas, incentiva Louis Prat a também trabalhar, a continuar as análises, sem se embrenhar em sutilezas excessivas, nem na busca do extraordinário: “Esta é a minha última palavra: trabalha!” (1930, p. 89).

2.

Dentre todas as críticas que lhe foram feitas, ele menciona as referentes à sua escrita. Desde os seus primeiros trabalhos, essa era uma censura recorrente e que parece tê-lo marcado. Nessas últimas conversas, ele se defende, dizendo que a acusação não é correta, pois, ainda que suas frases sejam intrincadas por excesso de incidentes, sua escrita tem um estilo próprio, bem como força e originalidade.

Os incidentes visavam deixar a expressão e o pensamento mais precisos. Nesse sentido, ele escreve: “Não é agradável, confesso, não tem a graça nem o charme do estilo de Anatole France; lamentei-o mais que ninguém. Talvez os erros não estejam só do meu lado. A solidez da argumentação e a precisão do pensamento também são qualidades que não deveriam passar despercebidas” (1930, p. 88).

Embora debilitado e sem forças, nos seus últimos momentos Charles Renouvier ainda se detém de modo investigativo sobre problemas teóricos que considerava sumamente importantes.

São eles: a refutação do infinito atual, com a qual ele se debateu durante décadas; as relações entre espaço como forma da sensibilidade e a alteridade, que coloca os objetos fora do sujeito; as relações entre o “eu” e a pessoa; a noção de progresso inexpugnável, muito em voga no seu tempo e que ele considerava ilusão e tolice; e o problema do mal, visto por ele como o grande problema da humanidade e ao qual sua doutrina, o personalismo, pretendia dar uma solução.

Em suas investigações, permanecia como pano de fundo a preocupação ética com a justiça e, não à toa, ele remetia todas as questões filosóficas à questão moral.

As últimas palavras de Charles Renouvier também são interessantes por uma análise da conjuntura de seu tempo no tocante ao futuro da filosofia, à democracia e, ainda, à ciência e a técnica. No seu entender, a filosofia estava numa crise, devida, em primeiro lugar, ao abandono das ideias gerais, que ainda eram valorizadas no seu tempo de juventude. Para ele, esse era um problema muito grave, que resultava no desaparecimento dos filósofos propriamente ditos e no surgimento dos amadores e curiosos em filosofia.

Estes, ainda que tivessem talento, careciam de entusiasmo, de espanto diante do mundo e de espírito indagador. Não buscavam mais demonstrar suas teses de modo logicamente exato, o que equivaleria a trabalhar em algo do qual não se conhece o ofício. Ele escreve: “Daí resulta que não há mais doutrinas, não há mais escolas, mas apenas teses que por um tempo estão na moda, e que se argumenta com ajuda de paradoxos, que eu preferiria fossem mais interessantes. Liga-se vagamente a um vago sistema; diz-se nietzschiano, ou neopositivista, ou psicofisiológico, ou sociólogo. E eu não entendo muita coisa do que escrevem” (1930, p. 80).

Para ele, isso não era filosofia, mas algo maçante e inútil, sem qualquer criação que fosse além das ideias de onde se parte, algo que não se sabe o que é, nem o que pretende. É interessante ele dizer que, no seu tempo, era de bom-tom afirmar-se nietzschiano. No entender dele, porém, esse pensamento não era mais que mania de grandeza erigida em filosofia por um louco e que, portanto, para ser nietzschiano não era necessário ler Nietzsche. Mas Charles Renouvier errou nesse ponto, pois não acreditava no futuro do nietzscheísmo e poucos são hoje mais cultuados do que Nietzsche.

3.

Charles Renouvier vivia e filosofava no tempo e no lugar onde havia se instalado o epicentro daquilo que hoje chamamos irracionalismo epistemológico. Suas análises estavam voltadas justamente contra aspectos doutrinários esclerosados e as tendências inaugurais de destituição da razão, que encontrariam solo fértil a partir das crises econômicas, sociais e políticas do século XX. O esgarçamento e a subdivisão do plano filosófico que hoje imperam, os quais postulam o primado dos fenômenos do cotidiano sem recurso à verdade, à objetividade e à razão, levam-nos às controvérsias e às investigações do filósofo de Montpellier.

Um aspecto ligado a esse é que, segundo Charles Renouvier, as pessoas já não liam umas às outras na França, cada um interessando-se apenas pelas suas próprias ideias. As resenhas de livros novos seriam feitas sem nenhuma profundidade, por pessoas que apenas os folhearam e que, por conseguinte, nada entenderam deles. As leituras eram indulgentes, justamente para que não se tivesse o trabalho de estudar. Os tempos haviam, portanto, mudado: “Há 25 anos, em plena batalha, Deus sabe com que frequência contestaram meu mérito; mas me discutiam pelo menos e isso era melhor” (1930, p. 83).

Ao lado do abandono das ideias gerais, o segundo motivo da decadência da filosofia era a tola convicção – que no passado ele também compartilhava – de que o desenvolvimento contínuo da ciência e da técnica levaria a humanidade a uma situação de maior felicidade.

Suas palavras sobre esse ponto são impressionantes, porque descrevem, de forma límpida, nossa situação atual, com a precarização crescente do trabalho gerada pela ciência e pela tecnologia: “Não é verdade que a ciência possa diminuir o trabalho humano. As máquinas e as invenções, que não são isentas de perigos e graves acidentes, fazem apenas embrutecer o trabalhador e arruinar sua saúde. A felicidade não deve ser buscada por essa via. Não está demonstrado que, se o maquinismo suprimisse trabalho, o homem seria mais feliz; eu tenho mesmo uma forte tendência a crer que seria ele seria mais infeliz do que é, e mais próximo do animal” (1930, pp. 84-85). A rigor, a ciência não tem o papel de produzir a felicidade, ela é um método de indagação; é basicamente teórica.

A salvação estaria no sentimento de compaixão, que poderia conduzir o indivíduo à justiça. O reconhecimento da importância da compaixão fez o filósofo pensar em uma nova edição da sua obra “A ciência da moral”[iii], onde iria acrescentar algumas páginas sobre esse conceito. A compaixão se liga ao problema do mal quando, sentindo a maldade e a injustiça, as pessoas percebem a comunidade de origem e fim de todos, a solidariedade na miséria e no sofrimento. “Acredito serem todos os seres humanos capazes de sentir compaixão, porque todos os homens sentem profundamente a injustiça, ou, o que é o mesmo, a dor de viver” (1930, p. 94). Daí surgiria a revolta pela dor não merecida, a revolta contra o mal.

4.

Charles Renouvier reflete ainda sobre o futuro da democracia na França. Nesse tocante, afirma que as esperanças estão somente no povo, constituído pelos trabalhadores, que englobam camponeses, operários, artistas e sábios. Eles é que constituem efetivamente a democracia. O filósofo escreve: “A burguesia não cumpriu suas promessas; trabalhou apenas para si mesma. Moralmente, caiu tão baixo que nunca mais poderá se levantar. Ela é essencialmente egoísta” (1930, pp. 97-98).

O povo, porém, não é idealizado, Charles Renouvier sabe que ele também tem seus defeitos. O excesso de políticos que mal dissimulam o interesse exclusivo em suas ambições também já era um problema da França, naquela época. A isso acrescentava-se o declínio da nobreza de caráter, da moralidade pública e do interesse pela justiça.

Charles Renouvier se insurgia, enfim, contra a incursão da religião católica na política, através do que ele chamava de papismo, mas não atacava o sentimento religioso e até considerava o ateísmo prejudicial à democracia, porque representava, em seu modo de ver, uma anarquia moral. Chegou a fazer uma campanha para que livres-pensadores se associassem a uma igreja protestante qualquer que lhes garantisse liberdade, mas o projeto fracassou. Ao fim, ele afirma, o protestantismo se tornou um novo feudo indesejável, assim como o papismo.

Sua doutrina, o personalismo, pretendia ser uma espécie de religião laica, filosófica, sem dogmas, clérigos ou igrejas, voltada à resolução do problema do mal. O objetivo seria regenerar a pessoa humana através do culto à justiça, substituir o Deus da teologia pelo deus pessoa moral.

Aquele que lê os trabalhos de Charles Renouvier depara-se com um pensador minucioso, sensato e profundo. Ele estudou extensamente a história da filosofia e produziu análises, críticas, resenhas e artigos muito proveitosos para quem se interessa em compreender sistemas, teses e argumentos filosóficos. Sempre se tem algo a aprender com seus textos, sempre se pensa em algo novo, numa abordagem nova, numa perspectiva não notada.

Mas aquele que lê seus trabalhos também percebe o fundamento humanístico do seu pensamento, sua preocupação com a justiça, a liberdade e a democracia. Desde jovem, ele demonstrou interesse genuíno na política como um modo de transformar a vida das pessoas, de promover o bem de todos por meio da justiça – não do amor, não da caridade, mas através da justiça. E esse deveria ser, de fato, o objetivo da vida em comum, deveríamos buscar de modo claro e objetivo o justo nas relações econômicas, nas relações políticas, nas relações familiares e em todas as outras. Não se construiria com isso nenhum paraíso na Terra, mas certamente os males cotidianos seriam diminuídos em muito.

Por fim, quem lê Charles Renouvier tem a possibilidade de descobrir a raiz histórica de crises atuais, como a da filosofia, que hoje perdeu sua identidade e sua especificidade diante de outros campos do saber, de descobrir a origem de ilusões sociais, como a de que a ciência e a técnica têm uma vocação messiânica de nos trazer a felicidade, e de descobrir a origem de engodos que ainda nos confundem, como o de que a burguesia tem intenção de efetivar a democracia.

*Katia Santos é professora de filosofia na Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).

*Antonio A. Neto é professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

Referências

BRITO, Rosa Mendonça. O neokantismo no Brasil. Manaus: EDUA, 1997.

RENOUVIER, C. La Science de la morale. 2 vol. Paris : Alcan, 1908.

RENOUVIER, C. Les derniers entretiens. Recueillis par Louis Prat. Paris: Vrin, 1930. [Edição em português: Renouvier, C. As últimas conversações. Coligidas por Louis Prat. Trad. António Sérgio. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930].

RENOUVIER, C. Historia y solución de los problemas metafísicos. Trad. Francisco Gonzáles Ríos. Buenos Aires: Hachette, 1950.

Notas


[i] Cf.: BRITO, Rosa Mendonça. O neokantismo no Brasil. Manaus: EDUA, 1997; Cf. nota preliminar de Vicente P. Quintero à tradução para o espanhol de Histoire et solution des problèmes métaphysiques (1901), em que ele informa sobre a importância de Renouvier para a filosofia na Argentina, no início do século XX.

[ii] Les derniers entretiens. Recueillis par Louis Prat. Paris: Vrin, 1930.

[iii] RENOUVIER, C. La Science de la morale. 2 vol. Paris: Alcan, 1908.

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