Chavão abre porta grande

Imagem: Mariana Tassinari
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

A mídia cada vez mais uniformiza gostos e hábitos de consumo

O título desse artigo é um verso escrito pelo genial compositor Itamar Assumpção, e gravado no disco Sampa Midnight – Isto Não Vai Ficar Assim, de 1986. Se figurasse num pagode qualquer, ou num sucesso sertanejo, seria apenas um trocadilho raso. Mas vindo de um artista que sempre recusou o lugar comum, procurando uma estética própria e fora das regras de mercado, ganha profundidade insuspeita.

Não é preciso ser doutor em linguística para constatar a pobreza literária e semiótica da música feita atualmente “pra tocar no rádio”. Não é um fenômeno brasileiro, mas mundial, uma vez que a mídia cada vez mais uniformiza gostos e hábitos de consumo. Mas no Brasil a indigência contrasta com a exuberância de um passado recente: há poucas décadas as letras de música disputavam com a mais refinada poesia a melhor tradução de sentimentos, atitudes, dores e alegrias do povo brasileiro. Os gigantes que semearam a moderna MPB, somados aos mestres inquietos que, de norte a sul, do baião à milonga, da toada ao samba de roda, nos surpreendiam com achados verbais, imagens inusitadas e rimas de cortar os cabelos e arrepiar o coração, estão cada vez mais afastados do grande público, sendo cultuados em nichos cada vez mais restritos.

Por trás do verso de Itamar está sua própria trajetória artística. Compositor fora dos padrões, “maldito”, como se dizia na época, não se enquadrava. Fizesse uma canção com refrão fácil, que todos ouvissem no rádio e cantassem, era o pedido das gravadoras. Um samba, por que não?, afinal não era negro? O chavão iria abrir portas grandes, certamente: emissoras de rádio e TV, programas de auditório, paradas de sucesso.

Mas Itamar Assumpção era de outra cepa, e resistiu. Criador de inspiração desconcertante, irônico e atilado, a massa certamente não comerá o biscoito fino que fabricou. Mas sua intuição certeira acabou por nos fornecer um slogan perfeito para a época em que vivemos, de diluição completa de estéticas e experimentações.

Tomemos o discurso político, por exemplo. Não há definição mais perfeita, nas eleições que acabamos de presenciar, do que “chavão abre porta grande”. O discurso criativo, o uso inteligente do humor, a vontade de abrir novos caminhos, a investida contra valores arraigados, foram derrotados. Onde a esquerda ganhou foi com políticos experientes, escorados num discurso já conhecido [1]. Não é pouco, no país do bolsonarismo de matizes fascistas, mas mostra o quanto ainda falta para que uma renovação de fato se solidifique no discurso político.

Nas artes plásticas, na arquitetura, no cinema ou na música, o axioma de Itamar Assumpção continua válido. O chavão continua abrindo portas grandes, seja de gravadoras, editoras, emissoras, corporações multinacionais ou palácios do governo.

Um dos grandes embates do século XXI é este confronto entre a invenção e a reprodução de modelos. Não sabemos se nosso futuro será desenhado por algoritmos, calcados em estatísticas e invasão de privacidade, ou ainda estará sujeito a alterações provocadas pela vontade criadora de alguns poucos.

Enquanto isso, lutemos para que os verdadeiros inovadores do discurso possam ser ouvidos pelas futuras gerações. De Itamar Assumpção a Greta Thunberg, de Luiz Melodia a Guilherme Boulos, temos vários exemplos de que a linguagem não caminha separada das ideias, como diziam os velhos Marx e Engels. Aliás, jovens revolucionários, em sua época.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Nota


[1] Obviamente a derrota não ocorreu apenas pelo grau de modernidade do discurso. O poder econômico, a manipulação midiática e o conservadorismo de base religiosa ainda são fatores preponderantes no cenário eleitoral brasileiro.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Antonino Infranca Eliziário Andrade Marcus Ianoni Liszt Vieira Jean Marc Von Der Weid Celso Favaretto Leonardo Boff Daniel Costa Sandra Bitencourt Celso Frederico Airton Paschoa Manchetômetro Paulo Sérgio Pinheiro Alysson Leandro Mascaro André Márcio Neves Soares Luciano Nascimento Samuel Kilsztajn Bernardo Ricupero João Lanari Bo Dennis Oliveira Rodrigo de Faria Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Marques Carlos Tautz Chico Alencar Slavoj Žižek Tarso Genro Rafael R. Ioris João Carlos Loebens Priscila Figueiredo João Adolfo Hansen Jorge Branco Lorenzo Vitral Benicio Viero Schmidt Paulo Capel Narvai Denilson Cordeiro Gilberto Lopes Matheus Silveira de Souza Atilio A. Boron Claudio Katz Elias Jabbour Vanderlei Tenório Vladimir Safatle Valerio Arcary Andrés del Río Bruno Fabricio Alcebino da Silva Milton Pinheiro Ricardo Abramovay Otaviano Helene Renato Dagnino Sergio Amadeu da Silveira Annateresa Fabris Vinício Carrilho Martinez Érico Andrade Henry Burnett Mário Maestri Eugênio Trivinho Ricardo Musse Francisco Pereira de Farias Alexandre de Lima Castro Tranjan Jorge Luiz Souto Maior Marcelo Módolo José Raimundo Trindade José Micaelson Lacerda Morais Marilena Chauí Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ronald León Núñez Igor Felippe Santos José Geraldo Couto Anselm Jappe Bento Prado Jr. Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Sacramento Antonio Martins Everaldo de Oliveira Andrade Michael Löwy Daniel Brazil Marcelo Guimarães Lima Paulo Nogueira Batista Jr Eduardo Borges Jean Pierre Chauvin Eugênio Bucci Fernando Nogueira da Costa Flávio Aguiar Armando Boito Boaventura de Sousa Santos Marcos Aurélio da Silva Flávio R. Kothe Tales Ab'Sáber Ronaldo Tadeu de Souza Yuri Martins-Fontes Paulo Martins Juarez Guimarães Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Henri Acselrad Julian Rodrigues Luiz Roberto Alves Paulo Fernandes Silveira Leda Maria Paulani Luís Fernando Vitagliano Ronald Rocha Gerson Almeida Valerio Arcary Fernão Pessoa Ramos Fábio Konder Comparato Francisco Fernandes Ladeira Michael Roberts José Costa Júnior Manuel Domingos Neto Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Renato Martins João Paulo Ayub Fonseca Osvaldo Coggiola Lincoln Secco Carla Teixeira Ricardo Antunes Ladislau Dowbor Eleutério F. S. Prado Ricardo Fabbrini Remy José Fontana Caio Bugiato Gabriel Cohn Marilia Pacheco Fiorillo Ari Marcelo Solon Luis Felipe Miguel Marjorie C. Marona Afrânio Catani Salem Nasser Daniel Afonso da Silva João Sette Whitaker Ferreira Bruno Machado Gilberto Maringoni Luiz Werneck Vianna Kátia Gerab Baggio Thomas Piketty João Feres Júnior Eleonora Albano Maria Rita Kehl Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Bernardo Pericás José Luís Fiori José Machado Moita Neto Heraldo Campos João Carlos Salles Rubens Pinto Lyra Leonardo Avritzer Walnice Nogueira Galvão Andrew Korybko André Singer José Dirceu Tadeu Valadares Berenice Bento Chico Whitaker Marcos Silva Antônio Sales Rios Neto Mariarosaria Fabris Michel Goulart da Silva Alexandre Aragão de Albuquerque Dênis de Moraes

NOVAS PUBLICAÇÕES