Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Chico-Xapuri-Amazônia: o empate biosférico
O colunista escreve de Xapuri, onde se celebra a Semana Chico Mendes, coordenada por Ângela Mendes, filha de Chico e uma rede de voluntários, que compõem o Comitê Chico Mendes. Companheiros e companheiras de Chico Mendes estão presentes. Representantes indígenas e negros testemunham a grande proximidade dos grupos que constituem a Aliança dos Povos da Floresta. Jovens de vários estados brasileiros acorrem ao encontro.
Reconheça-se que o passado importa, e muito! Trate-se, pois, dele, que é história.
Os pobres-diabos que deram um tiro em Chico Mendes em 22 de dezembro de 1988 a mando de membros e simpatizantes da UDR, União Democrática (?) Ruralista, não conseguiam ver um palmo adiante do nariz. Seus mandantes viam dois palmos, e por isso não podiam ver a história, pois 33 anos depois Chico vive, o orgulho seringueiro-amazônico vive, ampliado pela leitura universal da vida dos povos indígenas e, enfim, a Amazônia pode ser o fulcro da consciência brasileira na superação do turbo-neoliberalismo e consequente realização do tempo ecológico-socialista.
Seria uma brilhante resposta brasileira às evidências do Antropoceno, que se revela no interior de um tempo incompreendido pelo homo sapiens e que se revelou no domínio bruto da terra, da água, dos modos de produção, da voracidade dos lucros e na exploração dos vulneráveis. Assim desaparece o Holoceno, tempo da terra farta, das temperaturas amenas, do equilíbrio entre as criaturas da biosfera, lugar comum do humano. Para o mundo indígena, a Pachamama, agregadora de natureza e cultura, que essa gente sabe ser incapaz de resistir ao horror do domínio, da brutalidade e da ignorância.
Mas o passado é tão importante que se faz presente. A deputada Mara Rocha (PSDB) e o senador Marcio Bittar (MDB), ambos representantes do povo acreano, também só veem muito perto. A partir de um be-a-bá em comunicação social, conluios os dois engendram no Congresso Nacional um discurso justificatório a partir das dificuldades de manejo global da grande reserva Chico Mendes (970.570,00ha, Decreto 99.144, 1990) e propõem no PL 6024 cortes e estrangulamentos nesse lugar de vida e sonho por meio de um discurso rançoso e lustroso, um outro “cavalo-de-troia” do modobolsonarista de governar. Em vez de se preocuparem com a indução de políticas de bem-estar para o povo que representam, sugerem sua morte lenta no jogo da fragmentação dos meios de vida. Tal projeto não poderia ser elaborado por mãos sensíveis daAmazônia. Por isso, sua existência tem a força da escopeta de Darly e Darci. Deve, pois, ter destino igual àqueles dois infelizes.
Os assassinos, a deputada, o senador, os inocentes úteis, os garimpeiros, certa classe de donos de terra, Bolsonaro e seu ministério, o suporte midiático e todo o sistema latifundiário que desmata, incendeia e inunda o espaço com metano e demais gases de efeito estufanão poderiam, com efeito, ter inteligência para entender o que significa o antropoceno no coração das florestas, especialmente a nossa, brasileira, peruana, boliviana. Enquanto as ações humanas no geral ainda guardam alguma relação de objetividade na devastação da biosfera, isto é, o sapiens faz da natureza sua outra, estranha, objeto de desejo e domínio, não é isso o que se dá no interior das florestas. Ali não existe a outra, pois o corpo humano realiza e acumula sua cultura pela intermediação de seus pares, os seres vegetais, configurados na representação de muitos entes da memória e da experiência, via de regra narrados e descritos de geração em geração e componentes das narrativas ancestrais. A floresta é repleta de vida, mas essa totalidade não é fragmentável sem perdas totais.Por exemplo, meter nela soja e gado como se tais culturas fossem “naturais”. Certamente o solo reagirá depois de alguma exploração. As consequências são conhecidas.
A memória humano-vegetal-animal e os seus discursos, na floresta, são protetivos, guardadores, mediadores do futuro. Uma coisa, pois, é jogar detritos nos riachos das cidades de todo o mundo ou depositar carcaças industriais à beira das ruas e estradas. Outra é provocar a deterioração do igarapé, manancial único, ou abrir clareiras e correr o risco de diversas invasões. Até de vírus indutores de pandemias. A floresta reage como um ato de combustão de todo o seu corpo, pois a cultura que ali opera também compõe a natureza daquela conexão.
Enquanto a cultura reificada do chamado mundo urbano sinaliza com algum retardo seu pesar e seu declínio, na floresta a deterioração e a morte podem ser sincrônicas ao gesto vil, desequilibrado e desarmônico. Como já se provou no declínio inexorável de muitas florestas do mundo, não há acordos na missão reguladora e regeneradora dos grandes corpos florestais. Eles não são divisíveis, como também se dá com bens comuns. E não deveriam ser disputáveis num país de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados. A prova dos nove deve ser feita pelos céticos, se tiverem tempo para isso.
Portanto, as florestas tropicais e subtropicais são incompatíveis com as acelerações capitalistas (globalização, desmonte dos direitos trabalhistas, poluição extensiva por metano e degeneração ambiental acima do suportável), que não conhecem outros valores fora da submissão da natureza e seu estupro. O projeto 6024, tocado pela dupla Mara Rocha e Márcio Bittar, e com suporte do Centrão, é um ato pleno de estupro da Reserva Chico Mendes. Nenhuma memória se deve ter dele senão seu eterno arquivamento.
Educado pela floresta e pelas pessoas da floresta, “colocados” e nômades, mas sábios em seu mundo, Chico Mendes intuiu, apreendeu e aprendeu tais fatos, fenômenos e linguagens da floresta. A realização da Semana Chico Mendes atua como negação de qualquer martírio, folclorização ou mitificação da imagem e da figura do líder que quis viver para testemunhar conquistas da Aliança dos Povos da Floresta, sua proposta maior, sinal daquela totalidade dinâmica e indivisível da terra, do trabalho e da vida abundante na floresta. Ora, a mitificação de Chico se torna impossível no contexto da plena inconclusão das lutas dos anos de 1970 em diante. Nem o mito da liberdade poderia se realizar sob as pressões dos tresloucados detentores de poder, sempre ignorantes da missão global da floresta. Pior ainda é o abandono das reservas em nome da quimera, ou da impossível vida digna nas periferias urbanas. Como ocorre com o destino de muitos meninos mestiços da cidade, a perda da relação profunda entre floresta e homem, isto é, sua alienação forçada ou como fruto da ignorância leva aos presídios e ao cemitério.
De nada vale, pois, no mundo da floresta, o mito do interesse, que subjuga o outro, a outra. Ao contrário, portanto, o que se acumula na história das semanas de dezembro em Xapuri, segundo seus mais antigos participantes,é a sua responsabilidade narrativa diante dos mais jovens atores da antiga Hileia. Ato contínuo, seringueiros-castanheiros, nações de povos tradicionais, quilombolas e trabalhadores de áreas contíguas partilham do direito de atualizar a consciência de usuários e guardiães da floresta.
Nada escapa ao radar desses povos, especialmente os participantes das lutas pela terra comum. Se já realizaram grandes “empates” sob a liderança de Wilson Pinheiro, Chico Mendes e tantas pessoas de sua confiança, sabem que a par das expansões comunicativas dos corpos em rede se vai ainda mais longe. Óbvio que se conhece a acomodação contemporânea, que outros povos chamariam de “o descanso do guerreiro”, aqueles que lutaramporque viram os direitos dos seres vegetais e do sapiens a escapar entre os dedos e, 30 anos depois, optam pelo relaxamento. Mas isso é impossível, hoje, notadamente no desgoverno nacional bolsonarista, que tem como marca a destruição sem nenhuma construção. Aqui, o símbolo do mal, que apressa o perigoso tempo do antropoceno.
Segundo o testemunho presencial de Gumercindo, antigo companheiro, no ano de sua morte Chico redigiu uma carta. Nela, esperou que o ano de 2120 comemorasse o centenário de uma revolução socialista mundial e a superação do passado de dores. No entanto, na própria carta ele se desculpa e justifica o sonho. Textualmente, afirma que não veria aquele sonho, mas que tinha tido prazer em ter sonhado. Enfim, o 2020 veio e se foi no interior da sociedade de capitais internacionalizados, longe de qualquer justiça ecológica e tocada pela bipolaridade política. Mas sinaliza duramente o fim da biosfera disponível do Holoceno. A COP mostrou, com apoio do IPCC, que até 2030 teremos de ter mudado toda a nossa consciência sobre as nossas ações na terra comum do planeta, sincronicamente a um verdadeiro EMPATE com os males quase irreversíveis. Ou será que alguns privilegiados viajarão com Elon Musk e Jeff Besos para um planeta sem volta, que talvez tenha condições do pré-holoceno? Hawking sugeriu a viagem, mas não deu nenhuma garantia.
Fica claro, pois, que de pouco adianta o empoderamento solitário no vasto mundo amazônico, muito menos o estupro do Agronegócio com soja, eucalipto ou gado extensivo. Talvez ali, como em nenhum outro lugar, o conjunto das vozes portadoras de significação não é somente da linhagem humana, pois a natureza canta, fala, declama, perora, reivindica e lastima no mesmo lugar de articulação da linguagem dos homens e mulheres. Guimarães Rosa tentou dizer isso em seus vários textos. Ou de fato disse.
Mas, para se manter o lugar dos gênios, também se carece de voltar a Euclides da Cunha, que conheceu a Floresta, espantou-se nela, mas buscou a racionalidade do entendimento quando trabalhou nas demarcações que definiram como brasileiro o território acreano. Em texto anterior e já parcialmente publicado, o colunista refletia: “a leitura da palavra do escritor (Euclides) induz a leitura do mundo significado. As narrativas citadas se seguem uma à outra, no interior de À Margem da História, depois da longa dissertação sobre a terra amazônica sem história, o que justifica a civilização nordestina do lugar. Depois delas, novos debates políticos sobre a presença peruana, os transportes, a Independência e a República. Ao final, um texto evangélico denominado Estrelas Indecifráveis. Enquanto em Os Caucheros a winchester dizima povos indígenas (que não recebem de Euclides mais do que a denominação adjetiva de “temidos” e “interessantes”), os tiros dos seringueiros sertanejos exorcizam as imagens deformadas de si mesmos, os Judas postos em canoas e soltos pelo rio na páscoa, precisamente no sábado de aleluia. Na primeira narrativa, o tiro da conquista e da posse passageira; na segunda, os tiros catárticos para garantir significação na vida monótona. No mundo dos caucheros não se negociam valores simbólicos, pois o único negócio leva ao engodo, à burla e à morte; em Judas-Asvero, a desforra mostra ao Deus que o lugar do esquecimento não dilapidou ainda os últimos valores. No fausto da goma elástica, a imagem da ruína; no mundo sertanejo da seringa, os signos da organização que redime”.
Esse ainda não era um tempo de empate, nem de Chico. Aquela organização que redime criou, depois de 22 de dezembro de 1988, uma sensibilidade aguda entre redenção e ruína. Companheiros e companheiras do corpo redimido do assassinado, muitos ainda vivos e apoiados por grupos aguerridos de jovens, avançaram para conquistas, como as Reservas Extrativistas, capazes de abrigar a diversidade de culturas, mas com absoluto respeito à terra e seu manejo.Se a morte de Chico foi, sem dúvida alguma, a falência plena dos poderes no país que deveria garantir a sua vida, bem como a revelação da promiscuidade dos poderes municipais, estaduais e federal do mesmo ano da Constituição Cidadã, uma outra forma de empate mínimo se deu na garantia das reservas, às quais Bolsonaro e o Agro nutrem horror, visto que esses, a despeito da tergiversação da ministra Teresa Cristina, assumem todos os valores do incompatível neoliberalismo impiedoso, criador real e efetivo dos roedores de ossos do Brasil.
Neste tempo de novos movimentos eco-ambientais, com milhões de jovens nas ruas, contra os quais pouco farão as armas dos latifundiários e seus bate-paus, visto que os movimentos são mundiais, é indispensável acolher o corpo redimido de Chico Mendes, saudável, destemido, pacifista e perene. É também previsível que, no interior do avanço de consciência da pachamama acreana, a Aliança dos Povos da Floresta venha a propor ao mundo em nova COP – que seja bem superior à de Glasgow – um empate biosférico, isto é, que nenhum dos conhecidos males seja cometido contra os lugares de viver, conviver, produzir e manejar até que nosso ar seja delicadamente respirável, sejam as crianças dignificadas em seu crescimento e formação, cessem as violências contra o patrimônio material e imaterial das gentes, garanta-se o bem-viver dos que já trabalharam muito e, enfim, de todas as pessoas. Uma utopia que prefere o caminho das coisas concretas. Nada mais concreto que um grande empate. A Aliança dos Povos da Floresta, que fala a partir do fulcro mundial da questão ecológica, tem autoridade para propor esse empate. Nessa hora, certamente muitas outras alianças (que são o círculo interminável e indeterminável) entrarão na ciranda da mudança. Na ciranda não se soltam as mãos. Todo mundo precisa de todo mundo.
Nada de ver para crer. Sim, fazer vendo e sendo.
*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.