Por MICHAEL ROBERTS*
Considerações sobre o livro de Alberto Gabriele e Elias Jabbour
Recentemente, participei em um seminário remoto para comentar o livro Socialist Economic Development in the 21st Century (Routledge, 2022) [China: o socialismo do século XXI , Boitempo, 2021], de Alberto Gabriele e Elias Jabbour. A apresentação do livro diz que Gabrieli e Jabbour “oferecem uma interpretação nova, equilibrada e historicamente enraizada dos sucessos e fracassos da construção econômica socialista ao longo do século passado”.
De acordo com o prefácio de Francesco Schettino, “a esse respeito, é interessante notar que, no início de 2020, Branko Milanovic, um economista de renome internacional, publicou um artigo no jornal El país em que argumentava que o setor público da China constitui apenas um quinto de toda economia nacional e que, portanto, o país não é substancialmente diferente dos países capitalistas ordinários”.
A afirmação de Branko Milanovic é expressa de forma completa em seu livro, Capitalism Alone [Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo, Todavia, 2020], no qual ele pinta um cenário de uma dicotomia entre a “democracia liberal” (capitalismo ocidental) e o “capitalismo político” (China autocrática). Esta dicotomia me parece falsa. Ela surge porque, é claro, Branko Milanovic parte da premissa (não comprovada) de que um modo de produção e sistema social alternativo, o socialismo, foi descartado para sempre, pois não há nenhuma classe trabalhadora capacitada ou disposta a lutar por ele.
A discípula de Branko Milanovic, Isabelle Weber, também publicou um aclamado livro intitulado How China escaped shock therapy (Routledge, 2021) [Como a China escapou da terapia de choque]. Seu lançamento, endossado por Milanovic, teve um impacto amplo e significativo nos círculos acadêmicos de esquerda. Isabelle Weber argumenta que o Estado manteve o controle sobre as “commanding heights” da economia chinesa conforme ela abandonou o planejamento direto em prol da regulamentação indireta através da participação do Estado no mercado. De fato, “a China entrou no capitalismo global sem perder o controle sobre a sua economia doméstica”.
Isabelle Weber parece argumentar que a China se tornou capitalista, ao menos, desde a liderança de Deng em 1978, e todos os debates a partir de então passaram a ser sobre o quão longe ir, isto é, sobre optar pela “terapia de choque” ou por movimentos moderados em direção a “mais capitalismo”. Isabelle Weber, entretanto, é ambígua ao tratar da fundação econômica do Estado chinês. De fato, a China adentrou no capitalismo global, mas ainda “manteve seu controle sobre as commanding heights.
Gabrieli e Jabbour são muito mais claros em relação à natureza e à economia do Estado chinês. Sua análise da China é sutil, mas, claramente, é uma refutação robusta da tese de Branko Milanovic de que a China é uma forma de capitalismo, embora seja dirigida por políticos (?) e não por capitalistas como no Ocidente. Os autores não se colocam em cima do muro como Isabelle Weber. Em vez disso, eles argumentam (corretamente) que a China é uma economia e um Estado que possui uma “orientação socialista” muito diferente do capitalismo, seja ele democrático ou autocrático. “O sucesso econômico da China é resultado não do capitalismo, mas de sua transição para o socialismo. É uma formação econômico-social que está para além do capitalismo”.
Os autores consideram que os termos “orientação socialista” e “de orientação socialista” são úteis porque “são facilmente compreensíveis em seu sentido comum” segundo o qual “forças políticas que se reivindicam oficial e credivelmente envolvidas em um processo que visa (ou visava) estabelecer, fortalecer ou melhorar e desenvolver um sistema socioeconômico socialista; podem (ou poderiam) de fato ser consideradas razoavelmente ‘socialísticas’, isto é, avançaram em direção ao socialismo em alguma dimensão mensurável que represente as suas principais características econômicas e sociais estruturais”. Assim, se “o Estado exerce ou não (direta e indiretamente) um papel decisivamente hegemônico na direção da economia nacional (…) é obviamente uma referência crucial (embora não exclusiva) para avaliar em que medida a economia da China pode ser considerada socialista. O Estado deve dominar, mas também aqueles que controlam o Estado devem estar “engajados com credibilidade” na tentativa de desenvolver um ‘sistema socioeconômico socialista’”.
Os autores admitem que este seja um “sentido muito mais fraco” do que se entende por um sistema econômico socialista, que, tradicionalmente, é “um Estado nacional (Estado?) em que o princípio de ‘a cada um de acordo com o seu trabalho’ seja aplicado universalmente e não exista nenhuma forma de propriedade privada e renda pessoal não advinda do trabalho poderia ser considerado plenamente socialista. É claro que essa estrutura distributiva plenamente socialista não existe em nenhum lugar do mundo contemporâneo”.
Os autores rejeitam o que consideram ser uma formulação “ultrapassada” do socialismo e optam pelo que consideram ser novas formações socioeconômicas. Eles observam que já existem “formas embrionárias de socialismo – juntamente com o capitalismo e os modos de produção pré-capitalista – são considerados formações econômicas socialistas, estruturas em torno de dinâmicas de socialismo de mercado relativamente similares, apesar do nível muito desigual de desenvolvimento de suas respectivas forças produtivas”.
Os autores argumentam que “a União Soviética e a maioria dos países socialistas do Leste Europeu atingiram, de início, altas taxas de crescimento econômico, mas a trajetória de desenvolvimento declinou. Por fatores internos, isolamento tecnológico e pressão externa implacável, a União Soviética e seus aliados jamais conseguiram superar completamente suas contradições internas e acabaram por colapsar, apesar de terem conseguido romper o domínio exclusivo das potências capitalistas na economia mundial”. Em contrapartida, embora seja possível argumentar que “as reformas orientadas para o mercado levaram a retrocessos no que diz respeito à natureza socialista do sistema social da República Popular da China”, na realidade, elas “resultaram num extraordinário desenvolvimento de suas forças produtivas e transformaram, conforme demonstraremos, em uma nova classe de formação econômico-social”.
Neste ponto, nossos autores se tornam um pouco tímidos ou hesitantes em relação ao ponto para o qual seu argumento os está levando “O termo socialismo de mercado pode implicar, da nossa parte, um reconhecimento implícito de que o atual sistema socioeconômico da China é de fato uma forma de socialismo, embora imperfeito. Conservadoramente, nós (bem como na maioria dos casos, os próprios líderes do Partido Comunista Chinês) preferimos não defender ou negar tal alegação”.
Apesar disso, eles rejeitam a designação da China como capitalismo de Estado. “O (muitas vezes subestimado) peso absoluto, direto ou indireto, da propriedade pública dos meios de produção e, mais amplamente, a profundidade e extensão do controle estatal das ‘commanding heights’ da economia não nos permite ver o capitalismo de estado como a característica dominante do sistema socioeconômico atual da China”. Em vez disso, a China se desenvolveu enquanto uma economia de orientação socialista, na qual o Estado, “como resultado, pode, em princípio, determinar no curto e médio prazo, a parcela da taxa de investimento, sua ampla composição setorial, o nível e a composição da despesa social e o nível da demanda efetiva. No longo prazo, os planejadores de orientação socialista podem definir a velocidade e (em certa medida) a direção da acumulação de capital, a inovação e o progresso técnico, e afetar significativamente a estrutura dos preços relativos por meio de intervenções industriais e outras políticas compatíveis com o mercado, orientando conscientemente o desdobramento da lei do valor, a fim de alcançar resultados socioeconômicos e ecológicos ex-post superiores aos que seriam produzidos se seguissem automaticamente os preços de mercado.”
Então, finalmente, chegamos lá. A China e outros países, como o Vietnã e o Laos, são diferentes dos Estados “socialistas” tradicionais, tais como a União Soviética, Cuba, a Coreia do Norte ou a Europa Oriental do pós-guerra. A China apresentou uma nova formação socioeconômica que poderia ser chamada de socialismo de mercado. Esta é a base do seu sucesso econômico fenomenal, e não a economia planificada da União Soviética, na qual as formas de propriedade privada são poucas ou inexistentes. Em vez disso, ela é um Estado de orientação socialista com planejamento no nível macro, enquanto o capitalismo e o mercado governam no nível micro de uma maneira fundamentalmente harmoniosa. Esta nova formação socioeconômica é um modelo para o futuro das sociedades que derrubaram o capitalismo e estão no caminho para o socialismo.
Agora, tenho dúvidas profundas acerca desta formulação de economias de orientação socialista. Minha primeira pergunta ou crítica à abordagem de Gabrieli e Jabbour é baseada na teoria do valor de Karl Marx. No livro, há uma extensa seção sobre a teoria do valor. Nesta seção, os autores adotam a teoria do valor do neoricardiano Piero Sraffa em vez de a de Marx. De acordo com eles, “a tarefa de resgatar a abordagem clássica (que eles igualam à teoria do valor de Marx) foi entregue à teoria clássica moderna, iniciada por Sraffa e outros economistas heterodoxos, dentre os quais Garegnani era proeminente. Como este último apontou, Piero Sraffa (além de efetivamente criticar a teoria marginal) redescobriu a abordagem clássica e resolveu algumas dificuldades analíticas cruciais que escaparam a Ricardo e Marx”.
Isso procede? Em minha opinião, a teoria marxista do valor tem sido mais bem defendida por vários estudiosos marxistas tanto contra a teórica neoclássica quanto contra os pressupostos neoricardianos de Von Bortkiewcz e Piero Sraffa, dentre outros – como, por exemplo, Kliman, Moseley, Murray Smith. Uma das principais falhas na teoria do valor de Sraffa é que ela exclui o tempo, enquanto Marx fornece uma abordagem temporal. Sem incorporar o tempo, qualquer teoria de valor se torna absurda.
Eis o que dizem os autores: “Se levarmos em consideração a contribuição de Pierro Sraffa, podemos ver teoricamente os preços de produção como decorrentes da resolução de um sistema de equações simultâneas que definem conjuntamente uma fotografia do sistema capitalista em determinado momento (e, assim, ignoram elegantemente a necessidade de assumir retornos constantes à escala). Como tal, podem ser interpretados formalmente como restrições lógicas intrínsecas necessárias ao funcionamento do sistema, e não como objetos econômicos reais empiricamente observáveis”. Assim, a teoria do valor de Marx se torna apenas uma fotografia de um determinado momento no tempo, um conjunto de equações em vez de algo real ou empiricamente observável. Em vez da abordagem temporal de Marx, os autores aceitam os erros simultâneos de seus críticos.
Os autores reconhecem que: “o chamado teorema fundamental sraffiano – a taxa de lucro será positiva se e somente se os trabalhadores forem completamente alienados do produto de seu trabalho – não exige per se uma teoria do valor-trabalho” (!). Os autores, por sua vez, rejeitam a abordagem de muitos economistas marxistas, que demonstra a conexão lógica (e empírica) entre valores totais agregados e preços totais na produção. Ao aceitar a crítica de Piero Sraffa, eles concluem que: “ambas as igualdades em agregados não requerem que a teoria do valor do trabalho seja válida, e são compatíveis com uma interpretação agnóstica e fraca das leis do valor”.
E o que é essa interpretação fraca? Bem, podemos abandonar o axioma de Marx da igualdade de agregados e “defender uma interpretação não fetichista (e, portanto, baseada no trabalho) das leis do valor… através de equações simultâneas, sem recorrer ao princípio da conservação do valor”. Desta maneira, a ligação entre os valores de trabalho e os preços no modo de produção capitalista é cortada e a rentabilidade do capital deixa de ser determinada, em última análise, pela criação e apropriação da mais-valia: “pensamos que os cientistas sociais não devem permanecer indevidamente fixados em modelos formais baseados na uniformidade da taxa de lucro em todas as indústrias”.
Os autores revelam claramente sua visão: “os desenvolvimentos recentes tendem a confirmar a ideia fundamental de Piero Sraffa: os preços da produção e taxa de lucro são determinados simultaneamente. A famosa fórmula de Karl Marx para a definição e cálculo da taxa média de lucros, portanto, não é válida de uma forma geral”. Claramente, os autores não assimilaram a riqueza do trabalho feito por estudiosos marxistas mostrando a validade empírica da teoria do valor de Marx e sua lei de rentabilidade – meus leitores estão bem cientes disso.
Em vez disso, os autores aceitam a crítica dos neoricardianos de que Marx não conseguiu demonstrar a conexão (ou falta dela) entre valores e preços. Eles afirmam que “é bem sabido que o próprio Marx percebeu que o grau de completude de seu sistema não era totalmente satisfatório, e por essa razão, durante sua vida, ele não publicou o material contido no que se tornaram posteriormente os volumes II e III do Capital. Esta tarefa foi realizada mais tarde por Engels, depois de muitos anos examinando meticulosamente as notas manuscritas de Marx”. Bem, os autores podem considerar que Marx estava errado, mas o trabalho subsequente de autores marxistas refutou essa visão e, além disso, negou a acusação de que Engels foi culpado por publicar os erros de Marx no Volume II e II de O capital.
De volta a Piero Sraffa. “Sraffa acreditava que, na produção capitalista, o trabalho está em pé de igualdade com os ‘packhorses’ (com salários de subsistência assimilados ao feno). Portanto, não há nada de especial no fato de que o trabalho se transmite ao valor das commodities… Afinal, isto está de acordo com a ideia de Marx de que, no capitalismo, o trabalho é uma mercadoria produzida, operada, mantida, descartada e reproduzida como qualquer outro insumo… Sraffa concluiu autonomamente uma solução à qual Marx estava muito próximo”. Mas Marx não estava muito perto dessa “solução” porque a rejeitou em favor de uma teoria do valor baseada no trabalho abstrato e no tempo de trabalho socialmente necessário. Ele não teria aceitado a noção de Piero Sraffa de “produção de mercadorias por mercadorias” (e não trabalho).
O aspecto principal da teoria do valor de Marx é que o trabalho não é apenas uma mercadoria como qualquer outra; ela é especial porque só o trabalho cria valor. Mercadorias (como os “packhorses”) não criam novo valor. Este só é criado quando os “packhorses” são colocados para trabalhar pelo trabalho humano. Os “packhorses”, nesse sentido, são como as máquinas: não criam valor sem que o trabalho humano os controle (a história dos robôs eu deixo para outro dia).
É decepcionante que os autores aceitem a visão de Piero Sraffa. Mas por que tudo isso importa e o que tem a ver com a China como país socialista? Bem, os autores explicam por que optam pela teoria do valor de Sraffa e rejeitam a de Marx. É porque “por si só, a existência de excedente não prova a existência ou inexistência de exploração de classe e não permite determinar com precisão o grau de justiça e equidade em determinada sociedade”. Em outras palavras, podemos remover a distinção chave entre a mais-valia de Marx sob o capitalismo e substituí-la por um excedente criado pela produção de “mercadorias”, não de valor. Como dizem os autores: “em nossa opinião, independentemente de como se interpreta esta questão, a lei do valor, em seu sentido fraco, aplica-se tanto para o capitalismo quanto para o socialismo”.
Segundo os autores, a existência de mais-valia criada pela exploração do trabalho e apropriada pelos capitais privados não é mais a diferença fundamental entre o modo de produção capitalista e o socialismo. O que importa é o excedente (não a mais-valia) e como ele é controlado. Os modos capitalistas e socialistas podem, portanto, ser harmonizados na transição para o socialismo. Esta interpretação da lei do valor sob o capitalismo lhes permite afirmar que não há contradição entre o planejamento estatal e a economia de mercado, porque ambos os modos podem trabalhar em harmonia para impulsionar o excedente. Ou, como disse Deng, “Não importa se um gato é preto ou branco, desde que ele pegue ratos”.
Em minha opinião, esta abordagem vai contra não só a teoria econômica marxista, mas também vai contra a realidade, negando a contradição irreconciliável entre o modo capitalista de produção para o lucro do capital e um sistema social cooperativo planejado da produção para a necessidade social, ou seja, o socialismo.
Isso nos leva à natureza das economias de transição, nas quais a classe capitalista foi derrubada e perdeu o poder do Estado. Marx explicitou a base da natureza dessas economias de transição. Havia dois estágios no caminho para o comunismo. Com a classe trabalhadora no poder, a primeira etapa consistiria em elevar a produtividade do trabalho até o ponto em que as necessidades sociais fossem atendidas pela produção direta e a que a produção de mercadorias para o mercado fosse eliminada. No segundo estágio, a produção seria suficientemente alta e abundante para que cada um pudesse produzir de acordo com a sua capacidade e recebesse de acordo com a sua necessidade. A questão é que, em ambas as fases, a produção mercantil acabaria porque estaria em contradição com a produção por necessidade social.
Nossos autores rejeitam a visão de Marx, Engels e Lênin sobre isso. Para eles, Marx entendeu errado: “em nossa opinião (produto do benefício da retrospectiva, após mais de um século de experiência histórica), isso foi um erro, possivelmente devido à formação de Marx como jovem idealista hegeliano e à tensão entre o Marx cientista social e o Marx militante político”. Aparentemente, Marx precisava ser menos um militante romântico e mais um cientista político e, então, ele teria abandonado sua ideia de socialismo sem produção de mercadorias!
Aqueles que adotam a visão de Marx (como Engels e Lênin) estão sendo rígidos: “a maioria dos esforços destinados a identificar as principais características do socialismo foram implicitamente baseadas em uma negação dialética relativamente abstrata do capitalismo, enquanto as análises das experiências reais do socialismo – com todos os seus erros e (às vezes) horrores – tem sido descaradamente descartadas como desvios fatias e traiçoeiros do que deveria ter sido o caminho verdadeiro”. Mas certamente os “erros” e os “horrores” do regime stalinista na União Soviética ou na Coréia do Norte e na Europa Oriental devem ser vistos como desvios “fatais e traiçoeiros” do caminho para o socialismo? Não?
Neste ponto, gostaria de lembrar aos leitores exatamente o que Che Guevara disse sobre esta questão da produção de mercadorias sob o socialismo ou o que os autores chamam de socialismo de mercado. Em 1921, Lênin foi forçado a introduzir a Nova Política Econômica (NEP), que permitiu a criação de um setor capitalista na URSS. Lênin considerava isso necessário, mas era um passo atrás para a transição socialista. Che Guevara argumentou que Lênin teria revertido a NEP se tivesse vivido mais. No entanto, os seguidores de Lênin “não viram o perigo e isso permaneceu como o maior cavalo de Tróia do socialismo”, de acordo com Guevara. Como resultado, a superestrutura capitalista tornou-se enraizada, influenciando as relações de produção e criando um sistema híbrido de socialismo com elementos capitalistas que, inevitavelmente, provocou conflitos e contradições que foram cada vez mais decididos em favor da superestrutura. Em suma, o capitalismo estava retornando ao bloco soviético.
Quando olhamos para a experiência da União Soviética, foi o economista bolchevique Preobrazhensky que apontou que a União Soviética era uma economia de transição que continha duas forças opostas, não funcionando de forma harmoniosa e complementar, como afirmam os autores na nova formação econômica social da China do socialismo de mercado. A ênfase de Preobrazhensky na contradição entre a lei do valor e o planejamento para a acumulação socialista primitiva não é mencionada no livro. Para os autores, Che Guevara e Preobrazhensky presumivelmente tomaram uma “negação dialética abstrata do capitalismo” e ignoraram a experiência histórica – embora estivessem lá na época. Certamente, é a experiência histórica da União Soviética que eventualmente revelou que a lei do valor não pode funcionar em harmonia com a propriedade pública e o mecanismo de planejamento e, eventualmente, houve uma reversão para o capitalismo.
Então, há a democracia operária. Marx e Engels deixaram claro que, mesmo antes de chegarmos ao socialismo, sob a ditadura do proletariado (na qual os capitalistas perdem o poder do Estado para a classe trabalhadora), dois princípios claros da democracia operária devem ser mantidos para realizar a transição para o socialismo: o direito de convocação de todos os representantes dos trabalhadores e uma estrita limitação dos seus níveis salariais. Lembre-se de que isso se dá antes mesmo da economia começar a atingir o estágio inferior do comunismo (ou socialismo, como Lênin o chamou).
Nenhum desses princípios da democracia operária se aplica na China, onde o Partido Comunista Chinês governa sem ter de prestar contas, exceto para si mesmo. De fato, na China a desigualdade de renda e riqueza é muito alta, se não tão alta como em outras economias periféricas como o Brasil, Rússia e África do Sul; ou nos EUA e no Reino Unido. Mas essas desigualdades não estão apenas entre as famílias chinesas médias e os números crescentes de bilionários. Como pode uma economia que supostamente faz uma transição para o socialismo (muito menos uma que já tenha alcançado um primeiro estágio de “socialismo”) ser compatível com bilionários e especulação financeira de grande escala?
Um exemplo das contradições envolvidas na China está na habitação e no mercado imobiliário. Em vez de o estado construir casas para alugar para cidades em rápida expansão, por mais de 30 anos, o Partido Comunista Chinês optou pela construção, via empresas privadas, de casas para venda, financiadas por uma enorme emissão de dívida – uma abordagem completamente capitalista para as necessidades básicas de habitação. O feitiço se virou contra o feiticeiro com o desastre da dívida de Evergrande e uma crise imobiliária. O Partido Comunista Chinês agora quer controlar a expansão desordenada do capital e se mover para medidas de prosperidade comum, mas enfrenta considerável oposição entre os círculos financeiros e por elementos pró-capitalistas.
Os autores mostram como a economia e o macro-planejamento liderados pelo Estado da China têm sido fundamentais para o seu sucesso econômico e social fenomenal, totalmente ausente nas economias capitalistas, sejam elas avançadas ou emergentes – basta comprar a China com a Índia.
Como mostram Gabriele e Jabbour, na China o Estado “pode definir a parcela do excedente no nível macroeconômico e capturar uma parte importante deste último, não apenas por meio de políticas fiscais comuns, mas também pelos direitos de propriedade do Estado sobre o capital industrial e financeiro”. E eles também desenvolveram uma nova visão desse mecanismo de planejamento: a “nova economia do projetamento”, na qual o planejamento é feito para projetos específicos, tanto nacionalmente quanto no exterior. “Escolhemos o termo quase obsoleto de ‘projetamento’ (para nos referir holisticamente à utilização de planos e projetos como ferramentas para orientar a economia em direção a um caminho de desenvolvimento racionalmente concebido)”. Como resultado, o sucesso da China é incomparável: não houve quedas regulares e recorrentes como nas economias capitalistas e mais de 850 de milhões de chineses foram retirados da extrema pobreza em uma geração.
Mas, parece-me que Gabriele e Jabbour ignoraram todas as contradições crescentes na história da transição chinesa. O cavalo de Tróia de um grande setor capitalista e um Partido Comunista Chinês que não presta contas dentro da economia chinesa orientada para o socialismo permanecem uma séria ameaça a qualquer transição para o socialismo. De fato, ainda há um risco significativo de reversão para o capitalismo, à medida que a pressão do cerco imperialista sobre o Estado chinês avança na próxima década e que os elementos pró-capitalistas do Partido Comunista Chinês argumentam a favor de uma abertura da economia ao capitalismo.
Os autores não observaram tal perigo ou risco porque desenvolveram uma visão do “socialismo de mercado” chinês como um caminho harmonioso em direção ao socialismo. Porém, ao fazê-lo, eles rejeitaram a teoria do valor de Marx e argumentaram que o ponto de vista de Marx sobre a transição para o socialismo é uma “negação dialética abstrata do capitalismo”. Eles ignoraram as sérias desigualdades na China e o desenvolvimento perigoso do capital financeiro especulativo; e não consideraram a democracia operária (como definida por Marx, Engels e Lênin) como uma base necessária para a transição para o socialismo.
*Michael Roberts é economista. Autor, entre outros livros, de The Great Recession: a Marxist View.
Tradução: Mateus Feitosa.
Referência
Alberto Gabriele & Elias Jabbour. Socialist Economic Development in the 21st Century. A Century after the Bolshevik Revolution. Abingdon, Routledge, 2022, 374 págs.
Alberto Gabriele & Elias Jabbour. China: o socialismo do século XXI. São Paulo, Boitempo, 2021, 474 págs.