Por TODD MCGOWAN*
Tanto Donald Trump quanto Kane construíram impérios financeiros na indústria de mídias e, a partir daí, buscaram cargos políticos enquanto se conduziam com grandiloquência e arrogância
O que falta a Kane
Houve pelo menos uma vez em que Donald Trump se mostrou mais capaz do que qualquer outro presidente americano. Quando perguntado sobre seu filme favorito, Donald Trump deu uma resposta digna de um estudioso de cinema. Ele nomeou Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, não apenas como o melhor filme já feito, mas como o seu pessoalmente favorito.
Certamente essa é a melhor resposta que qualquer outro presidente americano possa ter dado para essa pergunta. Mas quando se a considera de imediato, parece que se trata de um deslize inconsciente. Donald Trump identifica como seu favorito o único filme que narra o vazio de um homem rico e poderoso que tem uma semelhança notável com ele mesmo.
Na verdade, é tentador associar Donald Trump ao Cidadão Kane por causa das semelhanças entre Donald Trump e Charles Foster Kane (Orson Welles). Mesmo sabendo que não foi assim, poder-se-ia imaginar que Orson Welles teve Donald Trump em mente, ao invés de William Randolph Hearst, como modelo para o personagem Kane. Ora, isso sugere que Donald Trump faz parte de uma longa linhagem de figuras americanas, ao invés de ser uma pessoa sui generis (tal como ele vem sendo frequentemente interpretado).
Tanto Donald Trump quanto Kane construíram impérios financeiros na indústria de mídias e, a partir daí, buscaram cargos políticos enquanto se conduziam com grandiloquência e arrogância. É impossível não ver os paralelismos existentes entre eles. Mas a importância de cidadão Kane para a ascensão de Donald Trump não está nas similaridades entre as suas vidas, mas sim no fato de que o filme fornece um diagnóstico de sua política e seu apelo popular.
Nesse sentido, seu amor pelo filme requer que se interprete o filme erroneamente, pois só assim seria possível reconciliar esse amor com seu estilo de fazer política. Pois, o filme apresenta a falha fundamental do tipo de promessa que Donald Trump faz – eis que consiste em repor um objeto perdido por meio de acumulação incessante.
Cidadão Kane é o retrato de uma figura de excesso. O filme descreve como um abuso – especificamente a acumulação excessiva de mercadorias – emerge por meio da tentativa de superar uma falta. Mas essa tentativa dá terrivelmente errado. Kane acumula uma quantidade crescente de objetos que têm o efeito paradoxal de aumentar sua insatisfação em vez de abrandá-la. Quanto mais ele tenta eliminar a falta buscando o excesso, mais carente ele se torna.
Ou seja, quanto mais produz de excesso, mais falta sente porque a fuga dessa carência [transfinita] por meio da busca de excesso sempre fracassa. O objeto que conota seu status como um sujeito carente, o trenó chamado “Rosebud”, permanece esquecido e desaparece em meio ao excesso de mercadorias. Como se trata de um objeto identificado com a falta, ele incorpora não a possível realização do desejo, mas a incompletude inerente do sujeito, uma falta que nenhum objeto pode eliminar.
O trenó, diferentemente de todas as mercadorias que Kane acumula, mostra a sua própria insuficiência, precisamente aquela carência que Donald Trump, mas também toda subjetividade capitalista, tem de tolerar. Ao se contrastar o trenó, como coisificação da falta, com o excesso de objetos acumulado pelo protagonista, o filme Cidadão Kane apresenta uma imagem de gozo que desafia o sistema capitalista.
O filme começa com a palavra moribunda de Kane, “Rosebud”; tenta, assim, ligar um objeto a esse significante por meio de uma série de entrevistas malsucedidas, conduzidas pelo repórter Jerry Thompson (William Alland). Mesmo se Thompson nunca encontra a solução do mistério ao longo do filme, ao final, Orson Wells, dá ao espectador a resposta que ninguém na diegese consegue aprender.[i]
Mas a chave da resposta se mostra completamente decepcionante. Na cena em que um funcionário da mansão de Kane joga diversos itens em uma fornalha, vê-se um trenó infantil sendo queimado e que nele está escrito o nome “Rosebud”. O público conecta isso a uma cena inicial do filme: Kane brinca com esse trenó, mas Walter Thatcher (George Coulouris) chega e o leva para longe da casa de seus pais para lhe dar a melhor educação possível.
Embora o jovem Kane tenha um bom relacionamento com sua mãe, o seu pai era abusivo. Isso leva sua mãe a mandá-lo embora, usando a fortuna que herdou para dar a ele o que ela supõe ser uma vida melhor. Dado o tratamento que Kane suportou de seu pai, o trenó não pode representar um período de vida marcado por inocência e pura satisfação. O trenó não é um ideal esquecido que Kane perdeu ou que ele traiu. Não é algo prazeroso que Kane perdeu. Em vez disso, ele representa a perda em si mesma. Kane se relaciona com o trenó como objeto perdido – não como algo que ainda pode ser obtido.
Quando ele perde o trenó, ele perde a própria perda como tal. Embora “Rosebud” seja uma palavra moribunda, Kane passa a vida inteira tentando escapar de sua falta acumulando coisas de forma excessiva. Ora, Cidadão Kane apresenta as consequências da negação compulsiva e fetichista dessa falta característica da subjetividade capitalista. O trenó desaparecido representa essa carência; a acumulação excessiva de mercadoria, por sua vez, obscurece a persistência dessa falta. A mercadoria trenó funciona como um fetiche que oferece e promete completação ao sujeito; trata-se, contudo, de uma promessa que ele viola e reconstitui perpetuamente.
Ao mostrar o contraste entre o trenó como um objeto perdido e a infinidade de objetos empíricos acumulado por Kane, Orson Welles oferece uma das visões mais claras de como a dialética da falta e do excesso se desenvolve no interior da sociedade capitalista. Cidadão Kane está focado no contraste entre a singularidade do objeto perdido e impossível, que fornece satisfação por meio de sua ausência, e do acúmulo excessivo de objetos empíricos. Estes tornam o sujeito incapaz de reconhecer sua própria forma de satisfação.
Kane passa a vida tentando preencher a falta por meio do excesso, mas morre lamentando a sua incapacidade de preenchê-la. Ninguém na realidade diegética o faz, mas, em contraste, o espectador experimenta o objeto perdido no final do filme; assim, é capaz de reconhecer esse objeto como a fonte de satisfação.[ii] Vê-se, portanto, em Cidadão Kane, que o excesso é uma resposta à falta, uma tentativa de substituir o que o sujeito não possuí por um excesso que ele se esforça por obter continuamente.
Kane responde à falta excepcionalmente – de um modo mais excessivo do que a maioria das pessoas. Mas, ainda assim, ele funciona como um sujeito exemplar. A entrada na linguagem – a sujeição ao significante – produz um sujeito carente, um sujeito com desejos que não podem ser realizados.[iii] Esses desejos fornecem satisfação por meio de sua não realização em vez de sua realização, por meio da repetição do fracasso que caracteriza o desejo. Sempre que o sujeito encontra um objeto específico que promete satisfazer seu desejo, ele rapidamente passa para outro objeto.
Nenhum objeto se mostra totalmente satisfatório porque nenhum objeto pode ser o objeto – o objeto que incorpora o que o sujeito sente que perdeu. Sob o disfarce de uma busca por uma variedade de objetos empíricos, o sujeito busca um objeto perdido inexistente que lhe daria a satisfação final.
O fracasso do desejo resulta do tipo de objeto de que ele depende. Não se trata de um objeto presente, mas ausente. Jacques Lacan mostra isso por meio do desejo de olhar: “o que o sujeito está tentando ver? O que ele está tentando ver, não se engane, é o objeto como ausência”. Mesmo que não se possa ver uma ausência, pode-se, no entanto, reconhecer a satisfação que deriva do que não está lá. É isso o que a psicanálise descortina, ou seja, exatamente aquilo que a subjetividade capitalista obscurece já que esse saber destruiria a ilusão que dá à mercadoria o seu fascínio.
A inexistência desse objeto não extingue o desejo do sujeito, pois tem o efeito oposto. A sua ausência produz um excesso dentro da subjetividade. Por serem inerentemente carentes, os sujeitos desejam excessivamente. As pessoas dão um grande peso ao desejo porque ele não pode ser realizado. Essa sobreposição fundamental entre falta e excesso define a subjetividade, mas também marca o sujeito com um trauma inescapável. O trauma definidor da subjetividade é sua incapacidade de separar a falta do excesso.
A capacidade de gozo excessivo detida pelos sujeitos está inextricavelmente ligada à condição que os põem como carentes. Como resultado, nenhuma quantidade de excesso pode permitir uma fuga da falta. Quanto mais se tem, mas se sente que se está perdendo. Nenhum excesso é excessivo o suficiente para transcender completamente a falta. O excesso tem a sua fonte na falta, de modo que quanto mais excessivos se é, mais se experimenta a falta. Ora, é bem isso o que Orson Welles narra em Cidadão Kane.
Tal como Kane, o sucesso de Donald Trump tem uma relação clara com o excesso. Ele vive excessivamente: comprando vastas propriedades, cercando-se de mulheres atraentes, construindo grandes hotéis e acumulando riqueza massiva (ou mantendo pelo menos essa aparência). Aqueles que se juntam a ele como candidato presidencial professam a esperança de que ele trará os excessos econômicos e sociais de sua vida pessoal para o país como um todo, que ele tornará a América grande novamente criando todos os tipos de excessos – um excesso de prosperidade, de segurança, de identidade nacional.
Contudo, a chave para a popularidade de seu programa político está menos em sua oferta de excesso do que em insuflar a sua demanda, ou seja, em repor a falta. Donald Trump triunfa ao convencer os apoiadores de que eles são sujeitos carentes que se defrontam com um outro excessivo na forma do imigrante, do governo chinês ou do politicamente correto. Ao invocar essa distribuição específica de falta e excesso, Donald Trump permite que os seguidores desfrutem do excesso do outro que repelem, ao mesmo tempo em que se asseguram de que não são excessivos. A importância de Cidadão Kane para entender Donald Trump está em sua capacidade de diagnosticar as razões de seu apelo.
Imagens do excesso nos outros
A percepção instintiva de Donald Trump consiste em reconhecer que a experiência do excesso aparece como carência e que, portanto, nunca se mostra suficientemente excessiva. Em outras palavras, ele entende que a imagem do excesso vende muito melhor do que a experiência que se possa ter dele. Imagens do excesso parecem perfeitamente excessivas, enquanto a experiência dele necessariamente fica em falta de alguma forma.
Donald Trump, por isso, não mostra simplesmente imagens do mundo do excesso que ele espera criar – a América tornada totalmente grande novamente. Em vez disso, ele aponta para imagens do excesso na figura do outro. O excesso realmente parece excessivo apenas quando é visto na imagem do outro e não em si mesmo. A imagem do outro excessivo é a forma pura do excesso e é por isso que populistas como Donald Trump recorrem constantemente a ela.
A estratégia política de Donald Trump envolve bombardear possíveis apoiadores com imagens de excesso no outro, ao mesmo tempo em que põe em contraste essas imagens com a falta naqueles a quem ele se dirige. As figuras do excesso apresentadas por Donald Trump são criminosos mexicanos, líderes políticos chineses, refugiados muçulmanos e os praticantes do politicamente correto nas universidades. Enquanto essas figuras desfrutam supostamente de seus excessos, os americanos comuns sofrem com a falta deles.
Os americanos sofrem supostamente com acordos comerciais injustos, perseguição religiosa e epidemias de overdose de drogas. Nesse sentido, é a ausência de grandeza na América e a grandeza no outro – a falta americana e o excesso estrangeiro – que é ironicamente essencial para o apelo de Donald Trump. Ele não exige que a América seja grande para que seus apoiadores experimentem o excesso puro que ele lhes promete, já que o excesso puro é impossível de experimentar. O seu apelo depende da falha de seus apoiadores em reconhecer como eles já são seres de excesso; eis que eles não podem se confrontar com a mistura de falta e excesso que os constitui como sujeitos do sistema.
É sempre mais fácil reconhecer o excesso no outro ou no futuro do que em si mesmo. Isso ocorre porque nunca se experimenta o excesso completamente divorciado da falta. A falta se intromete até mesmo nos momentos mais extremos de excesso, criando uma situação em que os momentos cotidianos de excesso não parecem tão excessivos. Se se está absorvido assistindo um jogo de futebol ou se se está entretido na tarefa de comer um pedaço de bolo de chocolate, lamentos devém em certos momentos sobre o quão cedo isso vai acabar.
E eles aparecem quando se pensa em ir trabalhar no dia seguinte ou quando filhos ou outras pessoas interrompem durante a jogada crucial ou no momento da mordida mais saborosa. Como sujeitos desejantes, não se pode experimentar o excesso em estado puro. Embora se possa imaginar que tais perturbações são apenas contingentes, elas têm um status de evento necessário. Não há excesso não adulterado (embora haja, com Donald Trump, um excesso adulterante).
Contudo é possível ver o que parece ser um excesso puro no outro: imagens do jihadista, do árabe celebrando o 11 de setembro no telhado de sua casa, do participante de uma orgia ou do professor universitário politicamente correto. Os próprios excessos nunca parecem ser tão excessivos quanto os excessos dos outros. Diante da imagem do outro excessivo, a experiência própria parece marcada pela carência e é isso que a experiência de tais imagens reforça. Esse engano sobre a satisfação do outro tem consequências políticas deletérias.
É precisamente isso que Orson Welles diagnostica em Cidadão Kane. Vê-se Kane constantemente seduzido pela imagem do outro desfrutando de um modo que ele próprio não tem total acesso. Todas as suas tentativas de comprar a mercadoria perfeita ou de atingir o status adequado falham porque ele nunca consegue escapar completamente de sua própria posição de sujeito carente. Welles destaca a própria falta do espectador de uma forma que coincide com a de Kane. Os espectadores perdem a significação de “Rosebud” como objeto perfeito; por isso a buscam do mesmo modo que Kane.
Mas o filme permite que o espectador tome consciência da satisfação que essa posição de carência oferece de uma forma que o próprio Kane nunca o faz. Kane continua buscando o excesso livre da falta enquanto o filme incita o espectador a abraçar o excesso que é encontrado através da estrutura da falta. É essa tensão fundamental entre a posição do espectador e a de Kane (e os outros personagens dentro da diegese) que define o filme.
A posição que Cidadão Kane cria para o espectador também permite que se interprete o fenômeno de Donald Trump. O apelo de Trump existe na busca constante por um excesso desimpedido que ele atribui ao outro e que ele promete reconquistar para o sujeito americano carente. Ao atribui-lo ao outro e ao privar os “verdadeiros americanos” desse excesso, Donald Trump preserva a sua suposta qualidade imaculada.
A capacidade de ver um excesso no outro que não se pode experimentar em si mesmo fornece a base para o conservadorismo político. Se se perguntar por que o conservadorismo sempre parece enfrentar uma tarefa política mais fácil do que aquela da esquerda em luta, a resposta está na forma de aparência que a falta e o excesso têm. A falta é obscura e difícil de ver no outro, mas fácil de experimentar em si mesmo. O excesso, em contraste, é facilmente visível no outro, mas nunca totalmente aparente para si mesmo. Como resultado dessa distribuição, tem-se uma suspeita inerente sobre o outro combinada com uma crença sobre si mesmo como vítima da situação estrutural.
A dinâmica de reconhecimento da falta em si mesmo e o excesso no outro é a forma fundamental da fantasia.[iv] A fantasia fornece a estrutura dentro da qual os sujeitos organizam sua satisfação. Ela tem como alvo o excesso do outro – a capacidade do outro de desfrutar do modo que o próprio sujeito não consegue – e oferece ao sujeito um cenário por meio do qual ele pode acessar o prazer do outro que, de outra forma, permaneceria inatingível para o sujeito. Dessa forma, a fantasia permite que o sujeito realize o impossível para preencher a lacuna que o separa do prazer do outro.
Donald Trump vende a fantasia da qual vive Kane. Trata-se de uma fantasia que descobre o excesso irrestrito do outro, obtido por meio de um processo de acumulação incessante. Para que essa fantasia funcione, ela requer a imagem de um outro excessivo. O cerne da estratégia política de Donald Trump envolve falar sobre a fantasia do excesso puro, convencendo os seguidores de que eles são seres de pura carência, enquanto outros (imigrantes, China, elites politicamente corretas de Hollywood) se divertem excessivamente.
Esse contraste entre o sujeito carente e o excessivo não apenas fala de uma injustiça básica que o americano comum tem suportado; fala também de um outro excessivo, alguém que, no esquema de Donald Trump, roubou o excesso que pertence adequadamente àqueles que carecem. Essa é a lógica em ação em “make America great again“.
A crença de que o outro roubou o excesso americano ou a sua grandeza é a fórmula básica da paranoia, que leva a lógica da fantasia a dar um passo adiante.[v] A paranoia é a estrutura psíquica que se desenvolve a partir da lógica da fantasia. Enquanto a fantasia não atribui malevolência ao outro excessivo, a paranoia coloca o outro como a barreira ao excesso do próprio sujeito. Jacques Lacan afirma que “o saber paranoico é o saber fundado em… rivalidade.”
O paranoico nunca escapa do espectro da rivalidade, de modo que sua falta necessariamente implica um excesso correspondente no outro. O excesso do outro se torna, para o sujeito paranoico, a causa da falta do sujeito. O que esse sujeito não consegue ver é que o outro só pode ser excessivo na medida em que sofre da mesma falta que o próprio sujeito.
Por um lado, a paranoia lembra constantemente o sujeito de suas carências em relação ao outro. O outro desfruta ilegitimamente de um excesso que pertence propriamente ao sujeito enquanto o sujeito labuta na falta. Imigrantes vêm para a América ilegalmente e pegam empregos ou benefícios que pertencem propriamente aos cidadãos estadunidenses. Líderes chineses se apropriam do capital que pertence legitimamente à América. Campeões do politicamente correto proíbem todas as transgressões sociais que eram anteriormente permitidas. É assim que a paranoia mantém os sujeitos entretidos no afeto da decepção.
Por outro lado, a paranoia é uma posição psíquica que se mostra satisfatória porque ela permite ao sujeito acreditar que há alguém que realmente desfruta de um excesso puro, livre de falta. Ao atacar o outro que roubou o excesso, o sujeito desfruta na verdade desse excesso de uma forma que de outra forma seria impossível. É o ataque ao outro sob o pretexto de eliminar o prazer ilícito do outro que fornece a oportunidade de experimentar o excesso genuíno. É assim que ele se identifica com o inimigo que supostamente roubou o seu prazer.
Nesse sentido, a subjetividade paranoica permite vislumbrar um excesso que ninguém pode experimentar. Por fornecer acesso a um excesso puro que não existe, a paranoia tem um apelo que supera todas as outras estruturas psíquicas. É por isso que os sujeitos estão tão prontos para adotar uma atitude paranoica, mesmo quando ela contradiz diretamente não apenas os fatos, mas até mesmo sua própria bússola moral.
A paranoia é difícil de desfazer porque sempre que alguém revela do outro que também ele é ser carecente tal como o próprio sujeito paranoico, este último pode imaginar um excesso oculto à espreita dentro da falta do outro. É por isso que as notícias que retratam a situação horrível dos refugiados em campos de concentração ou a normalidade dos imigrantes mexicanos raramente são eficazes.
O excesso que o sujeito paranoico vê nada tem a ver com o outro empírico. Esse excesso vem da própria relação do sujeito consigo mesmo. Assim, abandonar essa crença básica consiste em abandonar a própria capacidade de gozá-la. Mesmo se o sujeito paranoico reflete sobre o excesso ilegítimo do outro, ele obtém dele um prazer que de outra forma seria impossível. Negar a existência desse gozo no outro é privar o sujeito paranoico de seu próprio gozo. É por isso que mesmo uma grande quantidade de notícias sobre o estado real das coisas não consegue convencê-lo.
O fato definidor da carreira política de Donald Trump é sua implantação bem-sucedida da lógica da paranoia. Ele leva esse apelo àqueles que se sentem carentes e oferece um caminho para desfrutar de um excesso não carente. Dessa forma, Trump oferece a seus seguidores a chance de ser Charles Foster Kane – ou seja, um cidadão do excesso. Ao fazer isso, ele simplesmente amplifica a mesma estrutura de incentivo que o capitalismo fornece para a psique. O seu sucesso político revela que ele aprendeu a lição básica do capitalismo, não como um sistema econômico, mas como um sistema psíquico.
Capitalismo e fascismo
Tanto Donald Trump quanto Charles Foster Kane são sujeitos capitalistas paradigmáticos. Mas o sucesso político de Donald Trump resulta de sua grande capacidade de tirar vantagem da falha na psique da lógica própria do capitalismo. Ele não é simplesmente um representante do sistema capitalista, mas se apresenta como alguém que oferece o corretivo para o que ele não pode entregar. Nesse sentido, ele vem a ser a virada em direção ao fascismo.
A economia capitalista depende de sujeitos que se veem como carentes enquanto identificam um excesso no outro. É isso que motiva a competição que impulsiona o sistema capitalista. O excesso do outro é o que os sujeitos capitalistas visam obter por meio do processo de troca e por meio da acumulação de capital. A acumulação de capital é a tentativa de apropriar-se do excesso do outro para si mesmo, a fim de eliminar a falta, ter excesso sem qualquer traço de falta.
Karl Marx, com a sua visada crítica da esfera econômica, descreve esse processo como a apropriação do trabalho excedente do outro; contudo, esse processo está em ação de forma mais ampla em todo o sistema capitalista. Eis que ele se instala na psique para o capitalismo poder funcionar. Assim, toda ação no capitalismo tem sua base na tentativa de se apropriar do excesso do outro para si mesmo, a fim de eliminar a própria falta. Essa é a lógica do capitalismo instalada já no psiquismo.
Sem essa disposição psíquica voltada para superar a falta por meio da acumulação de capital, o capitalismo simplesmente não poderia funcionar. O capitalismo requer sujeitos para os quais a acumulação é uma lei inquebrantável – Marx a mencionou quando, em O capital, disse que a lei em Manchester era “acumulai, acumulai! Eis Moisés e os profetas”.
Se se acredita que já se tem em excesso, não se embarca no processo de acumular constantemente, mais e mais. É por isso que as agências capitalistas devem constantemente lembrar às pessoas que elas estão carentes e que o excesso está disponível apenas por meio da mercadoria. Essa é a função básica da propaganda voltada aos consumidores, mas também é o que impulsiona a corporação a tentar contratar funcionários, bem como o empresário a considerar um investimento em capacidade produtiva adicional ou o corretor da bolsa a ponderar o que comprar e vender.
Os sujeitos capitalistas acumulam com a ideia de amontoar dinheiro ou mercadorias suficientemente para desfrutarem sem restrições. A ideia de fazê-lo sem medida, ao invés de apenas desfrutar, é absolutamente crucial para a estrutura psíquica dos agentes no capitalismo. O reconhecimento de que a satisfação envolve falta e que, portanto, ela depende de alguma forma de restrição, impede que se tenha sujeitos capitalistas eficazes. A imagem de um gozo sem falta é aquela apenas que o capitalismo permite.
O problema, no entanto, é que nunca se atinge o objetivo de ter o suficiente porque esse ponto se afasta em distância quanto mais perto se chega dele, assim como a luz verde que marca a casa de Daisy para Gatsby em O Grande Gatsby. À medida que nele se chega, ele se afasta cada vez mais em distância. No universo psíquico do capitalismo, quanto mais se tem, mais se experimenta a falta. Em vez de preencher a falta, o excesso a destaca cada vez mais. É por isso que os acumuladores mais ardentes na economia capitalista não são aqueles que estão na base, mas aqueles que estão no topo.
Sempre que se obtém o que se quer, logo fica aparente que um pouco mais de excesso é requerido. Depois de obter o que antes se desejava, deseja-se mais dinheiro, um telefone mais novo ou uma televisão maior. Acumular inevitavelmente gera o desejo de acumular ainda mais, ao invés de trazer a saciedade do desejo. Dentro da economia psíquica capitalista, ninguém diz que tem o suficiente porque nunca se experimenta o que se tem como excessivo o suficiente. Isso ocorre porque a experiência de um excesso não pode ser tão satisfatória como sua imagem promete que será. O excesso é excessivo na medida em que nunca se pode alcançá-lo, o que significa que ele nunca tira o sujeito da falta.
O resultado dessa lógica é que os sujeitos capitalistas se encontram constantemente insatisfeitos sem nenhuma explicação clara para essa insatisfação, uma vez que ela decorre do próprio sistema capitalista. Dentro da lógica do capitalismo, não há solução para esse problema. Como não pode ser resolvido, tem o potencial de produzir um espírito revolucionário que seja capaz de olhar além do horizonte do capitalismo para um sistema socioeconômico diferente.[vi] Para evitar que isso possa ocorrer, uma fantasia paranoica vem sempre em socorro do capitalismo em seus momentos de maior dificuldade.
A disposição psíquica no capitalismo está sempre à beira de cair na paranoia, razão pela qual a democracia capitalista confronta constantemente o perigo do fascismo. A fantasia de que o outro é a barreira para o excesso puro que o capitalismo promete é a fantasia fascista básica. Ora, essa é precisamente a fantasia que Donald Trump promulga. Para Trump, o outro é que é excessivo – seja ele o imigrante criminoso, o governo chinês inteligente ou o professor universitário politicamente correto.
Esse outro surge então como a barreira que impede a fuga americana da carência. A América pode se tornar não carente ou grande novamente apenas eliminando essa barreira. Essa é a reviravolta paranoica que Donald Trump dá à fantasia capitalista. É uma reviravolta que faz com que a democracia capitalista se mova em direção ao fascismo.
A democracia capitalista depende da fantasia do sujeito sobre o excesso do outro. Ela não pode prescindir dessa fantasia básica porque ela motiva a competição incessante do sujeito com os outros. Sem essa fantasia sobre os outros, ninguém embarcaria no projeto de acumulação na medida em que o capitalismo exige. Até Adam Smith, em sua Teoria dos sentimentos morais, confessa isso. Ele ressalta que os ricos realmente vivem vidas miseráveis, mas a fantasia de que a riqueza traz satisfação completa é necessária. Smith argumenta que essa fantasia “desperta e mantém em movimento contínuo a indústria da humanidade”.
Se não se acredita na fantasia de que a acumulação leva a uma satisfação final, deixa-se de acumular. Mas quando essa fantasia capitalista básica se transforma em paranoia a respeito de um outro – transformado já numa barreira ilícita ao excesso desejado pelo sujeito –, o fascismo irrompe. O fascismo é a posição prática da paranoia política. Ele identifica um outro (ou vários outros) responsável pelo roubo do excesso da sociedade e se envolve no projeto impossível de eliminar esse outro. Mas o fascismo é, em última análise, um beco sem saída. O fascismo não pode ter sucesso porque sua estrutura paranoica depende do outro que ele tenta eliminar. Quanto mais o fascismo elimina o outro que se lhe afigura como uma barreira para a obtenção de um excesso puro, mais ele ergue outra barreira. Como não há excesso puro, não há fascismo bem-sucedido.
A fala de Orson Welles
Depois de ter nomeado Cidadão Kane como o seu filme favorito, Donald Trump deu uma breve interpretação dele. Alegou que a lição do filme é que Kane nunca encontrou a mulher certa, que a mulher certa lhe daria a satisfação que nem o seu jornal, nem as suas propriedades, nem as suas estátuas jamais poderiam fazê-lo. Kane tentou se casar duas vezes e falhou em ambas, enquanto o próprio Donald Trump – é isso o que ele afirma – encontrou a solução com a sua terceira esposa. Nesse sentido, Donald Trump teria aprendido a lição fundamental de Cidadão Kane; eis que continuou procurando a mulher certa até encontrá-la.
Por mais absurda que pareça essa interpretação feita por Donald Trump, ela não está completamente errada. Eis que esse erro vem a ser a base de todo o seu projeto político. Donald Trump vê corretamente que o filme se concentra num objeto que fornece satisfação. O filme, contudo, não mostra um Kane que nunca encontrou a sua Melania, pois revela que o seu fracasso resulta precisamente de seu esforço para atingir um excesso sem falta.
O objeto correto não é empírico, não é uma mulher certa, mas um objeto ausente. Kane não vê que a satisfação sempre envolve um outro naquilo que está faltando. Ademais, ele não vê que a falta não é apenas inevitável, mas salutar para o sujeito. A recusa de Kane da necessidade da falta o condena a uma vida de esforço sem fim que não leva a lugar nenhum.
Esta é a posição que o espectador também ocupa durante a maior parte do filme. Como diz o comentarista James Naremore: “tal como os próprios jornais de Kane, a câmera do cineasta é também ‘investigadora’. Eis que a sua busca põe também no público um desejo de encontrar o significado privado de Kane, ao invés de seu significado público.” Mas no final do filme, Orson Welles distancia o espectador da busca perpétua de Kane pelo objeto que seria finalmente satisfatório. O ponto em que o filme afasta o espectador da perspectiva de Kane (e dos outros personagens do filme) é aquele que Donald Trump não consegue explicar, seja em sua breve interpretação seja em seu projeto político como um todo.
Ao final do filme, nas falas finais, o repórter Thompson resume o resultado de sua investigação. Ele conclui que sua incapacidade de encontrar o objeto que corresponde ao significante “Rosebud” indica que tal objeto não existe, que não há objeto que dê resposta ao problema que o filme põe em sua abertura. Outro repórter, então, lhe diz: “Se você pudesse descobrir o significado de Rosebud, aposto que isso explicaria tudo.” Diante dessa consideração, Thompson então responde: “Não, acho que não, não mesmo. O Sr. Kane era um homem que conseguiu tudo o que queria, mas depois perdeu. Talvez Rosebud fosse algo que ele não conseguiu, ou algo que ele perdeu. De qualquer forma, isso não explicaria nada. Não acho que uma palavra qualquer possa explicar a vida de um homem. Não, acho que Rosebud é apenas uma peça em um quebra-cabeça, uma peça faltando”.
Enquanto Thompson fala, Orson Welles puxa a câmera para trás para criar uma tomada extremamente longa do interior da mansão Xanadu, mostrando assim muitos dos objetos que Kane acumulou. Esta cena parece confirmar a validade de sua tese: em meio a todos esses objetos, é impossível escolher um que guarde o segredo da existência de alguém.
Orson Welles poderia ter encerrado o filme com o discurso final do repórter Thompson. Como mencionado, ele fala de sua incapacidade final para identificar o excesso que move uma pessoa. Se ele encerrasse o filme neste ponto, Orson Welles estaria proclamando que não é possível conhecer o excesso do outro. Tal final deixaria o espectador com a ilusão de há um excesso sem relação com a falta. Deixaria o espectador na posição do sujeito capitalista. Nesse sentido, apesar da inventividade formal do que vem antes, é a cena do trenó nas chamas que dá ao filme sua importância política.
Ao mostrar ao espectador o trenó como o objeto correspondente ao significante “Rosebud”, Orson Welles permite que o espectador veja o que Thompson e os outros personagens não conseguem. Rosebud não é um objeto misterioso que Kane aprecia excessivamente, como se imagina ao assistir o filme. É a perda que define sua subjetividade. Em vez de ser a forma específica de sucesso de Kane, esse objeto indica o seu fracasso singular. Orson Welles força o espectador a ver a conexão inevitável entre a falta do sujeito e seu excesso, entre o que o sujeito sente falta e como ele desfruta, que é o que o próprio Kane nunca vê.
A incompreensão de Kane de si mesmo como sujeito consiste na luz trazida por Cidadão Kane como filme. Só se escapa da lógica da inveja e da paranoia na medida em que se aceita que o excesso é inextricável da falta. Só assim se evita ver excessos em outros como barreiras à própria satisfação. O excesso não preenche a falta e a elimina, pois sempre a recria de novo. Ele é o caminho para a confrontação dessa falta.
A aposta de Cidadão Kane como filme é que se pode aceder ao elo fundamental entre falta e excesso. Não é preciso passar a vida buscando inutilmente o excesso apenas para ser empurrado de volta para a falta. Não é preciso, em outras palavras, ser vítima da promessa de Donald Trump de superar definitivamente a falta. É possível, em vez disso, reconhecer que a imagem de excesso que se vê no outro não é nada mais do que a experiência da falta em si mesmo.
Só se escapa da paranoia reconhecendo que já se está sendo excessivo; essa é a essa conclusão que Cidadão Kane permite chegar. Todo o projeto político de Donald Trump – e até mesmo o seu projeto de vida – tem por base a sua interpretação equivocada do filme. A sua crença na promessa de excesso puro é precisamente o que o filme mostra ser irrealizável. É apenas vislumbrando o que Trump não consegue ver no filme que se pode evitar ser vítima da promessa capitalista, a qual sempre deixa os indivíduos e a sociedade à beira de cair no fascismo. O filme favorito de Donald Trump monstra como se opor a ele.
*Todd McGowan é professor na Universidade de Vermont. Autor, entre outros livros, de The end of dissatisfaction? Jacques Lacan and the emerging society of enjoyment (State University of New York Press). [https://amzn.to/4g0Ryeq]
Tradução: Eleutério Prado.
Publicado originalmente em Continental Thought & Theory: a journal of intellectual freedom, vol. 3 (1), 2024.
[i] O ponto-chave é que Thompson não consegue encontrar o objeto que corresponde ao significante “Rosebud” porque o excesso de mercadorias obscurece a singularidade dos objetos em geral. Como HelGeudi observa em Orson Welles: La règle du faux, os investigadores “não sabem ver o que constitui o objetivo crucial de suas pesquisas em meio à profusão de objetos”. Ver Johan-Frédérik Hel-Geudi, Orson Welles: La règle du faux ; Paris: Éditions Michalon, 1997. De igual modo, o excesso capitalista tem por efeito tornar impossível o reconhecimento da falta.
[ii] Laura Mulvey enfatiza a disjunção entre a posição do expectador e a do investigador em Cidadão Kane; resulta dela que o expectador experimenta o prazer do desejo, o qual não é evidente para Thompson dentro da diegese fílmica. Ela escreve: “enquanto ‘Rosebud’ dá significado ao ‘mistério de Kane’ na história, Welles apresenta ao espectador uma série de indícios visuais que, literalmente, põe esse mistério como imagens na tela. O texto enigmático gradualmente materializa um apelo a um espectador ativo e curioso que tem prazer ao identificar, decifrar os sinais dados à interpretação”. Ver Laura Mulvey, Fetishism and Curiosity, Bloomington: Indiana University Press, 1996. Mas a diferença vai ainda mais longe. Pois, dada a vantagem do ponto de vista do expectador para apreciar o trenó como um objeto perdido para a satisfação, ele tem de reconhecer que a satisfação reside em decifrar a falta além do prazer, tal como aponta Mulvey.
[iii] A necessidade natural, por meio da linguagem, é elevada à desejo, tornando-se infinita em princípio. Nas sociedades pré-capitalistas, quando a escassez ainda parece insuperável, a infinitude do desejo é satisfeita imaginariamente por meio de um princípio de bem comum, o qual precisa ser sustentado pela comunidade, estado e religião. Na sociedade capitalista, em que a escassez vai sendo superada, pouco a pouco, ao longo do tempo, o desejo é capturado pela lógica do capital que é da ordem do mau infinito.
[iv] A fantasia não é apenas um suplemento que se introduz na vida cotidiana a fim de lhe acrescentar um pouco mais de satisfação. É a base essencial da vida cotidiana. Contudo, a fantasia que guia a vida das pessoas em geral é primariamente inconsciente. Ela se torna conhecida somente por meio das referências que inspiram as pessoas a agir. Eis o que diz Juan-David Nasio em seu livro sobre a fantasia: “o sujeito é governado por suas fantasias, mas ele não vê a cena nem distingue claramente os protagonistas”. Juan-David Nasio, Le Fantasme: Le plasir de lire Lacan; Paris: Petite Bibliothèque Payot, 2005.
[v] Em seu ensaio fundante sobre a fantasia, Uma criança é espancada, Freud mostra a relação entre diferentes formas de fantasia e o desenvolvimento da paranoia. Tal como ele vê, a estrutura da fantasia aponta definitivamente para a paranoia. E o faz por causa da condição privilegiada do outro (e do gozo do outro) na fantasia. Ver Sigmund Freud, A Child Is Being Beaten: A Contribution to the Study of the Origin of Sexual Perversions, The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol. 22, ed. James Strachey, Londres: Hogarth Press, 1955.
[vi] E esse sistema novo, ainda não realizado na história, tem de se regular por um bom infinito terreno – não transcendental e não transcendente.
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