Clóvis Moura e a questão palestina

Imagem: İsra Nilgün Özkan
image_pdf

Por GABRIEL DOS SANTOS ROCHA*

Clóvis Moura, mais que um teórico da questão racial no Brasil, foi um intelectual engajado, que denunciou o colonialismo sionista, mostrando que seu antirracismo era tão universal quanto sua crítica ao capitalismo

Certamente Clóvis Moura ainda é mais conhecido por seus estudos sobre as insurreições negras no Brasil escravista, e sobre a questão racial no pós-abolição, do que por produções em outras áreas. É conhecido por estudos aos quais se dedicou amplamente a partir da história e das ciências sociais, e que lhe conferiram o título de notório saber nessas áreas.[i]

O crescente interesse pela obra de Clóvis Moura na última década e meia vem resultando em uma série de monografias, dissertações, teses, artigos acadêmicos, eventos dentro e fora da academia, que vêm ampliando o conhecimento da produção do autor, e buscando colocá-lo no centro dos debates sobre a formação social brasileira, seus problemas históricos e contemporâneos tais como: o racismo que se reproduz nas diferentes esferas da vida social, o capitalismo dependente, a questão agrária, a industrialização, o mercado de trabalho etc.

Para ficarmos apenas em alguns exemplos sobre essa emergência atual do pensamento de Clóvis Moura, mencionamos o trabalho da Dandara Editora que vem reeditando livros do autor, até então relegados aos sebos e livrarias ou bibliotecas de obras raras.

Citamos também o seminário “20 anos sem Clóvis Moura”[ii] ocorrido em outubro de 2023 no IFCH/UNICAMP, que reuniu pesquisadores de diversas áreas, além do Dossiê Clóvis Moura organizado em dois volumes na Revista Lutas Sociais.[iii] Neste ano, 2025, novas publicações e eventos serão organizados em homenagem a este pensador marxista, que teve contribuições valiosas para a compreensão da sociedade brasileira, e para a luta política por uma outra sociedade, engajando-se no comunismo e na luta antirracista.

A maior parte dos estudos sobre a obra de Clóvis Moura vêm abordando o que podemos considerar como áreas e temas fundamentais da produção do autor. as áreas são a história e as ciências sociais. Os temas se referem às relações entre escravidão, colonialismo, racismo e capitalismo, além da luta de classes no Brasil que, para Clóvis Moura, surge com as rebeliões negras do período escravista.[iv]

Parte dos trabalhos também buscam enfatizar as contribuições para o marxismo. Ainda há muito a ser estudado sobre essas áreas e temas fundamentais. Contudo, há também muito a ser reconstituído sobre outras dimensões da produção de Clóvis Moura que, além de historiador e cientista social autodidata, foi poeta, crítico literário e jornalista.

Os caminhos para isso já foram abertos. O último capítulo da tese de doutorado de José Maria Vieira de Andrade é dedicado à escrita poética de Moura.[v] A produção literária e o jornalismo de Clóvis Moura ganham espaço nos trabalhos de Teresa Malatian.[vi] O jornalismo e a literatura se fundem nas crônicas de Moura, publicadas entre os anos de 1972 e 1973 na coluna “Fora do tempo” no jornal Folha de S. Carlos, organizadas por Teresa Malatian, Sonia Troitiño e Cleber dos Santos Vieira no livro Memórias de Sparkenbroke.[vii]

O texto que segue essa apresentação nos remete à produção jornalística de Clóvis Moura. O transcrevemos de um recorte de jornal com uma anotação à caneta: “Jornal da Manhã, 16/07/82”. O documento faz parte do Fundo Clóvis Moura que integra o acervo do Cedem-Unesp.[viii] “O genocídio contra o povo palestino” foi publicado há 43 anos, no entanto, infelizmente se relaciona com acontecimentos do presente.

No mês anterior à publicação original, em junho de 1982, Israel iniciava, pela segunda vez – a primeira ocorrera em 1978 –, uma invasão ao Líbano, país que passou a abrigar uma parcela de refugiados palestinos desde as expansões coloniais sionistas sobre a maior parte do território palestino.

Se os principais livros de Clóvis Moura versam sobre o Brasil, sua produção jornalística nos mostra também a visão do autor sobre acontecimentos internacionais.

Ao tratar da questão palestina, Clóvis Moura mostrou a dimensão universal de seu antirracismo: prestou sua solidariedade a um povo que resiste a um sistema colonial e racista, o qual há décadas se utiliza da limpeza étnica como técnica de dominação e ocupação territorial.

A crítica de Clóvis Moura é direcionada à política sionista do Estado de Israel, a qual não deve ser confundida com o judaísmo propriamente. Não é o judaísmo que determina a natureza do Estado de Israel, mas o sionismo: corrente político-ideológica fundada em 1897 pelo jornalista húngaro Theodor Herzl.

Portanto, o sionismo é uma ideologia-política com pouco mais de 100 anos, a qual não representa o conjunto das comunidades judaicas, que são heterogêneas e possuem uma complexa história étnica, cultural e religiosa muito maior e, certamente, mais interessante do que a doutrina de Theodor Herzl.[ix]

A seguir, reproduzimos integralmente o artigo de Clóvis Moura. Inserimos notas de rodapé visando a contextualização dos acontecimentos abordados no texto original, além de apontarmos eventuais atualizações ortográficas.

O genocídio contra o povo palestino[x]

Se me perguntarem, agora, qual a diferença entre um soldado da SS de Hitler e um soldado israelense eu diria: é que o SS era um genocida e o soldado israelense é um genocida.

E isto é melancólico para aquelas pessoas (em cujo número me incluo) que lutaram no passado para que os judeus tivessem uma pátria, exigindo a criação do Estado de Israel.[xi] Não é apenas melancólico: é revoltante. Revoltante a forma criminosa como os sionistas que empolgaram o poder em Israel, aproveitando-se de um direito do povo judeu, transformam-se nos criminosos mais violentos dos nossos dias, reproduzindo, freudianamente, todos os crimes que condenaram no nazismo.

Esconder mais não é possível. Diante do que está acontecendo no Líbano,[xii] sentimos necessidade de um novo Tribunal de Nuremberg para julgar estes crimes praticados por Israel contra a humanidade. O genocídio que está sendo executado contra o povo palestino atinge a todos nós; a todos aqueles que têm uma parcela de responsabilidade política pela formação de Israel.

Nunca um direito foi tão desfigurado e a pretexto de exercê-lo tantos crimes foram cometidos. Hitler se estivesse vivo estaria aprendendo lições de atrocidades com Menachem Begin,[xiii] um assassino profissional, terrorista que matou o conde Bernadotte,[xiv] congratulando-se com ele. É preciso que se denuncie à opinião democrática mundial o que está sendo praticado por Israel.

A denúncia não é mais um direito – é um dever. A sangueira praticada por Israel não tem paralelos na História. Usando técnicas sofisticadas e proibidas por leis internacionais, como bombas de bilhas, bombas de fragmentação e gases venenosos os israelenses matam civis, mulheres, crianças, destroem hospitais impunemente. Mais de 15 mil civis já foram assassinados pelos soldados de Israel que, usando o mesmo slogan do nazismo, Blut und Boden (sangue e solo) vão semeando a morte por onde passam.

Enquanto isto, as superpotências ficam ajudando o crime. Ronald Reagan mandou tropas para garantir a evacuação da OLP do Líbano, coonestando o crime infame.

A União Soviética, por outro lado, nenhuma medida prática tomou até o momento para impedir a carnificina. Seus protestos platônicos demonstram uma posição bem diferente daquela que ela assumiu quando invadiu o Afeganistão. Mas, o acordo pela nova divisão

do mundo leva a que os protestos sejam apenas para que a opinião pública mundial seja iludida. A VI frota de guerra dos Estados Unidos já se encontra no Oriente Médio para garantir os criminosos sionistas e o mundo indignado assiste ao genocídio.

Os meios de comunicação mundial, na sua maioria controlados por eles, divulgam mentiras atrás de mentiras, com a mesma técnica de Goebbels.[xv] A orquestra regida pelo imperialismo, pelo grande capital internacional executa o hino de glória aos agressores, como se eles estivessem salvando a civilização…

Li, faz pouco tempo, artigo de um sionista em um diário paulista no qual ele procurava explicar para os “gentios” (aqueles que não tiveram o privilégio de nascer judeus) a agressão de Israel no Líbano. Recorro ao meu velho dicionário de Caldas Aulete e lá encontro o verbete esclarecedor: “pagão idolatra. (…) Bárbaro, selvagem, não civilizado.

Infiel, que não segue a religião cristã; o povo selvagem; as tribos bárbaras sem civilização”.

É isto que somos para os sionistas. E, em consequência, eles se sentem no direito de iniciarem uma cruzada civilizadora para submeter os infiéis à ditadura nazista/sionista, ligada, umbilicalmente, ao capitalismo monopolista.

Em decorrência disto, os judeus são os grandes prejudicados. Aliás, até hoje, nada mais fez o sionismo na sua história além de tirar proveito dos problemas da comunidade. É uma elite corrupta que muitas vezes se privilegiou à custa do seu povo. É preciso, por isto, que se mostre, também, à opinião pública, que o sionismo não representa o povo judeu, assim como o nazismo não representou o povo alemão.

São, um e outro, excrescências patológicas cujas causas podem ser procuradas no sentimento de culpa do parricídio inicial, como queria Freud, mas, para nós, surgiram como decorrência da agonia de um sistema que, antes de morrer, exala miasmas muitas vezes contaminadores.

O sionismo é atualmente isto: um movimento alienado, apoiado em forças poderosíssimas do capital internacional, usando a programática nazista – Blut un Boden – para dominar o mundo. É o patológico de um sistema patológico. A perigosa doença incurável de querer a dominação universal e que surge todas as vezes que um grande período da história entra em agonia.

*Gabriel dos Santos Rocha é doutorando em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP).

Figura 1CEDEM-UNESP, Fundo Clóvis Moura, Caixa 42, Pasta 2; Série: artigos de jornal; Subsérie: artigos de Clóvis Moura

Notas


[i] Autodidata, em 1982, Clóvis Moura recebeu o título de Professor Especialista por Notório Saber pela Universidade de São Paulo, o que lhe possibilitou participar como examinador em bancas de mestrado e doutorado. Ver: VIEIRA, Cleber Santos. Prefácio: Um rosário de lutas – Clóvis Moura e o Centenário da Abolição, In: MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. p.24

[ii] Seminário 20 anos sem Clóvis Moura: https://www.ifch.unicamp.br/ifch/noticias-eventos/eventos/seminario-20-anos-sem-clovis-moura

[iii] Revista Lutas Sociais, v. 27 n. 51 (2023): A práxis de Clóvis Moura:  https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/issue/view/3053; Revista Lutas Sociais, v. 27 n. 50 (2023): Clóvis Moura, intelectual sem repouso: https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/issue/view/3052

[iv] Dissertações, teses e livros sobre o autor, ver: Érika Mesquita (2002), Fabio Nogueira de Oliveira (2009), Gustavo Orsolon de Souza (2013), Mary Vânia Nogueira Ferreira (2013), Ana Paula Procópio da Silva (2017), José Maria Vieira de Andrade (2019), Wanessa Horrana da Silva (2021), Teresa Malatian (2022), Henrique Roberto Figueiredo (2024), Marcio Farias (2024), Gabriel Corrêa Campos (2025).

[v] ANDRADE, José M. Vieira. Sem canduras nas palavras: Clóvis Moura e os dilemas intelectuais do antirracismo no Brasil (1959-1995). Tese de doutorado em História. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2019.

[vi] MALATIAN, Teresa. Clóvis Moura: uma biografia. Teresina: EDUESPI, 2022. Da mesma autora ver também: Um jornalista combatente: Clóvis Moura e a política cultural do PCB (1951-1952). In: História (São Paulo) v.37, 2018a. ISSN 1980-4369

[vii] MOURA, Clóvis. Memórias de Sparkenbroke: Fora do Tempo. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

[viii] Centro de Documentação e Memória da UNESP: https://www.cedem.unesp.br/

[ix] ALTMAN, Breno. Contra o sionismo: retrato de uma doutrina colonial e racista. São Paulo: Alameda, 2023.

[x] CEDEM-UNESP, Fundo Clóvis Moura, Caixa 42, Pasta 2; Série: artigos de jornal; Subsérie: artigos de Clóvis Moura.

[xi] A União Soviética apoiou a criação do Estado de Israel em 1948. Àquela altura, Clóvis Moura era um jovem militante do PCB, o qual se alinhava à política externa soviética.

[xii] Quando da invasão ao Libano, Menachen Begin ocupava o cargo de primeiro-ministro de Israel, e Ariel Sharon era ministro da defesa. Posteriormente, Sharon se tornaria primeiro-ministro (2001-2006). Ver: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy805je6pzlo#:~:text=E%20em%206%20de%20junho,dos%20EUA%20ao%20pa%C3%ADs%20asi%C3%A1tico.

[xiii] No texto original “Menahem Beguin”. Menachem Begin: https://educacao.uol.com.br/biografias/menachem-begin.htm.

[xiv] Conde Folke Bernadotte: https://operamundi.uol.com.br/hoje-na-historia/podcast-hoje-na-historia-1948-conde-sueco-folke-bernadotte-e-assassinado/

[xv] No texto original “Goebles”. Paul Joseph Goebbels: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51071094


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES