Por EVALDO LUIS PAULY*
A cobrança do dízimo parece submeter a igreja cristã a um novo cativeiro babilônico, em que a venda de indulgências se assemelha à venda da prosperidade prometida pela igreja a quem investir no dízimo
É justo que pessoas religiosas doem dinheiro para manter prédios eclesiásticos, folha de pagamento, serviços de assistência social e espiritual de suas igrejas. Doar dinheiro para a Igreja é, por óbvio, lícito. É um direito individual da pessoa, implícito na Constituição Federal.[i] Pagar dízimo, no entanto, é ato distinto de cobrar dízimo; por isso cabe perguntar se é justo que a igreja, em nome de Jesus, cobre 10% da renda das famílias associadas. Conforme os Evangelhos, não!
Algumas igrejas e seitas cristãs cobram dízimo de seus fiéis. Essa prática tem origem na tradição sacerdotal do judaísmo antigo, da qual o cristianismo é herdeiro. Jesus era judeu e aderiu à religião de seu povo, exatamente por isso, durante toda a sua vida, denunciou a cobrança do dízimo que oprimia os pobres, as viúvas e os órfãos. Essa e outras críticas de Cristo contra o dízimo despertaram o ódio mortal de quase todos os sacerdotes, dos ricos aristocratas saduceus e de muitos fariseus.
O dízimo surgiu ao longo do século XII AC. O povo de Deus libertara-se da escravidão no Egito e estava dominando militarmente as cidades de Canaã. Liderados por Josué, conquistaram e dividiram a terra prometida entre as doze tribos. Onze delas receberam terra para trabalhar na agricultura e no pastoreio. A tribo de Levi foi designada para o trabalho sacerdotal e, por isso, não herdou terra. Os “sacrifícios queimados do Senhor Deus de Israel são a sua herança” (Josué 13:14).
Todo tempo dos levitas era empregado no cuidado da Arca da Aliança, na realização dos sacrifícios rituais e na organização das festas litúrgicas das tribos judaicas. Por isso a tribo de Levi era sustentada pelo dízimo, ou seja, pela décima parte dos produtos agrícolas colhidos e pela primeira cria de cada fêmea dos rebanhos das outras onze tribos. A arrecadação do dízimo acontecia em grandes festas populares (Deuteronômio 12:16-18).
Séculos mais tarde, os primeiros cristãos ainda lembravam das razões pelas quais os levitas recebiam o “dízimo do povo” (Hebreus 7:5).[ii] Guardadas as devidas proporções e as imensas diferenças históricas, econômicas, religiosas e culturais; apenas para facilitar a compreensão, pode-se imaginar que as festas de pagamento do dízimo – antes de serem centralizadas no Templo de Salomão – talvez se parecessem com as festas religiosas do Kerb – a festa da colheita – tradicionalmente realizadas ainda hoje por muitas comunidades religiosas formadas por famílias camponesas descendentes da imigração alemã ao Brasil.
Ao contrário do senso comum teológico de muitos crentes, pastores e pastoras de hoje, o dízimo não se destinava apenas para sustentar sacerdotes, manter o Templo e festas religiosas judaicas. As próprias famílias deveriam separar parte do dízimo para destinar “ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que comam dentro das tuas portas, e se fartem” (Deuteronômio 26:12). O dízimo alimentava os levitas, mas também combatia a fome dos pobres, fartando-os de comida. O combate à fome, hoje, é uma política pública.[iii]
A evolução social e econômica do povo de Deus transformou a confederação das doze tribos em Reino de Israel. O Rei Davi começou a centralizar o culto judaico, processo que culminou na inauguração do Templo sob o Rei Salomão como símbolo do poder político e religioso do estado judaico unificado.[iv] No centro do Templo de Salomão localizava-se o Tabernáculo, uma sala na qual os levitas fixaram a Arca da Aliança e outros objetos religiosos que, antes, eram itinerantes. A corte salomônica decretou que o Templo seria o único lugar legítimo para os sacrifícios rituais. Somente neste prédio, Javé receberia as ofertas de seu povo.
Séculos depois, na época de Jesus, o Templo concentrava o poder político, religioso e econômico de Israel. Com apoio das tropas romanas, a liderança judaica enriqueceu com a cobrança do dízimo, o lucro na criação e venda de animais para sacrifícios, o controle do câmbio de moedas e as ofertas para atestar a purificação de pecados, de restauração da saúde, da corbã, entre outras unções sagradas. Membros do Sinédrio, saduceus e sacerdotes acumularam tanto dinheiro que o Templo se tornou uma espécie de banco central do país. Com permissão do imperialismo romano, a economia da terra santa era gerenciada pelo Templo; a política era comandada por Herodes e o poder legislativo e jurídico era manipulado pelo Sinédrio, presidido pelo Sumo Sacerdote Caifás.
Na época de Jesus, os impostos destinados para Roma e o dízimo para o Templo eram extorsivos e causavam forte revolta popular contra as tropas e funcionários romanos, seus lacaios locais, o Rei Herodes, a aristocracia judaica e o Templo. Um partido político judaico chamado “zelotes” promovia guerrilhas contra Roma e seus aliados na Palestina. Neste contexto político polarizado, os Evangelhos testemunham que Jesus manteve-se pacifista. Era contra a luta armada dos zelotes, apesar de Jesus criticar radicalmente a cobrança do dízimo: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!, que pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho, enquanto descuidais o que há de mais grave na lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade; é isto que era preciso fazer, sem omitir aquilo”. Jesus afirma que essa gente parece com “sepulcros caiados”, aparentam ser pessoas justas, “mas interiormente estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mateus 23:23,28).
É provável que Jesus, apesar de suas discordâncias, compreendesse as causas da revolta popular. Talvez até existisse uma certa simpatia recíproca entre Jesus e os zelotes.[v] Um dos apóstolos de Jesus Cristo foi “Simão, o Zelote” (Lucas 6:15 e At 1:13). Alguns anos depois da morte e ressurreição de Jesus, esse grupo revolucionário tomou de assalto a cidade de Jerusalém e o Templo. A reação romana não tardou, no ano de 70 DC, quatro legiões comandadas pelo general Tito queimaram o Templo, destruíram a cidade santa e exilaram o povo judeu no vasto território do Império. Foi o fim do Estado de Israel. Outros povos, então, passaram a dominar a Palestina. Somente em 1948, por decisão das Nações Unidas, Israel voltou a existir como estado nacional.
Outra dura crítica de Jesus ao Templo é difícil de compreender hoje em dia. Trata-se da crítica contra política corrupta da corbã. Naquela época não existia previdência social pública para amparar trabalhadores idosos ou inválidos, nem viúvas e órfãos. Na tradição religiosa judaica de então, pais e mães idosos deviam ser sustentados pelo filho mais velho que, assim, cumpria o mandamento divino de honrar pai e mãe. Alguns filhos gananciosos e, obviamente, ricos negociavam – nos bastidores do Templo – com os doutores da lei sobre o valor da corbã.
Os mestres da lei calculavam o dinheiro que seria supostamente necessário para alimentar, abrigar e cuidar dos pais idosos até suas mortes. Novamente para fins didáticos, ressaltadas as diferenças de contexto social, a corbã seria parecida com o que modernamente trabalham os atuários, profissionais com graduação em Ciências Atuariais, cuja projeção científica garante mais eficácia e eficiência aos planos de saúde, aos seguros patrimoniais e de vida, além dos fundos previdenciários estatais ou privados garantidores de aposentadorias e pensões. O jovem rico judeu que quisesse se livrar das despesas com pais idosos, pagava o valor da corbã como “oferta” ao Templo.
Assim que o dinheiro entrasse, o Tesouro do Templo assumia a responsabilidade por “cuidar” dos pais idosos no lugar dos filhos. O Templo declarava que o primogênito não precisa mais obedecer ao mandamento de honrar pai e mãe. É fácil imaginar a sujeira dessas negociatas, bem como a forma como templo passava a cuidar dos idosos abandonados pelos filhos. Jesus denuncia essa prática corrupta e desumana: “Vós, porém, dizeis: Se um homem disser a seu pai ou a sua mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta para o Senhor, então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai ou de sua mãe, invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição, que vós mesmos transmitistes; e fazeis muitas outras coisas semelhantes” (Marcos 7:11-13).
É bem plausível que entre essas “outras coisas” que menciona Jesus, estivesse o subfaturamento, mediante propina, dos dízimos a serem pagos por sacerdotes e saduceus. Outras críticas de Jesus ao Templo são bem conhecidas. Lucas 4,1-13 é uma das narrativas evangélicas sobre as “tentações” de Jesus. A cena na qual Satanás coloca Jesus no “pináculo do templo de Jerusalém (…), dá a impressão de o Diabo estar muito à vontade neste lugar”.[vi]
A ironia deste relato insinua que o Diabo conhecia bem o Templo. Outra cena famosa é a expulsão de cambistas e vendedores no pátio do Templo que, na opinião de Jesus, se tornou um “covil de ladrões” (Marcos 11,15-19). A crítica de Jesus à corrupção do Templo de Salomão, segue antiga tradição profética: “Não vos fieis em palavras falsas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor”. Antes importa praticar a justiça entre as pessoas e não oprimir “o estrangeiro, e o órfão, e a viúva” (Jeremias 7:4-6).
A trágica narrativa da morte de Jesus por crucificação de Jesus “rasgou-se ao meio o véu do templo” (Lucas 23:45). Esse pesado véu era a porta do Tabernáculo, o Santo dos Santo, o local mais sagrado do Templo, onde apenas o Sumo Sacerdote podia entrar uma vez por ano, na Festa anual das Expiações para oferecer sacrifício pelos pecados do povo (Levítico 16). Vem desta Festa a atual expressão “bode expiatório”. Durante a Festa um bode era solto no deserto carregando os pecados do povo. Jesus – o Servo Sofredor – assumiu o lugar do bode expiatório ao romper de uma vez para sempre o véu que separava o perdão dos pecados controlado pelos sacerdotes do desejo das pessoas comuns expiarem suas culpas.
O “precioso sangue de Cristo” torturado e crucificado é o “cordeiro imaculado e incontaminado” entregue por graça a todas as pessoas, em todos os tempos e de uma única vez para sempre. A fé do cristão não necessita de “bode expiatório”. O resgate do pecado não se paga com “coisas corruptíveis, como prata ou ouro”, mas com arrependimento no coração. Pagar para ser perdoado é uma “vã maneira de viver que por tradição recebestes dos vossos pais” (1 Pedro 1:18,19).
A cruz retirou o que havia de mais sagrado no Templo de Salomão. Os cristãos confessam que “vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação” (Hebreus 9:11). Depois da cruz, a salvação não depende mais do Templo de Salomão e muito menos do dízimo.
Para a teologia apocalíptica cristã não há futuro para o Templo e, por consequência, para a cobrança do dízimo que o sustentava. Embora a Bíblia não registre de forma explícita, ainda poderia restar uma boa razão para o pagamento do dízimo judaico: a função previdenciária de socorro a viúvas e órfãos! Na contemporaneidade, o Estado democrático de direito assumiu para si esse dever moral judaico-cristão.[vii] Conforme João, na nova Jerusalém que há de vir não existe templo algum: “porque o seu templo é o Senhor Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro” (Apocalipse 21:22).
Cristo, o Cordeiro de Deus, conforme o testemunho da igreja apostólica, também dispensa a necessidade do Templo. Estevão diante do Sinédrio e do Sumo-sacerdote contraria interesses econômicos desses poderosos ao declarar que “não habita o Altíssimo em casas feitas por mãos humanas” (Atos 7:48). A fé cristã de que Deus habita o coração das pessoas provocou o apedrejamento do primeiro mártir cristão. Os apóstolos reafirmam a radicalidade da crítica de Jesus contra o dízimo pela simples inutilidade salvífica do Templo.
Por esses e por outros textos bíblicos, é óbvio que não é evangélico, em nome de Jesus, cobrar o dízimo. É lícito e, inclusive, necessário e pastoralmente recomendável que os crentes ofertem dinheiro suficiente para manter e, inclusive, expandir a instituição religiosa para a qual pediram filiação e pela qual foram aceitos. É óbvio que quem deseja associar-se à Igreja se responsabiliza, nos limites da lei, pelos interesses eclesiásticos.
Conforme a tradicional separação republicana entre igreja e estado, a manutenção econômica da igreja é um dever do fiel derivado do seu direito à livre associação. O direito da cidadania à liberdade de fé gera o dever do crente em sustentar sua religião. A Igreja que aceita ou recusa o pedido de filiação, o faz conforme prevê seu Estatuto Social registrado no respectivo Cartório Civil de Pessoa Jurídica. Os critérios e as formas de contribuição financeira da Igreja podem ou não ter previsão neste Estatuto, cuja redação e interpretação submetem-se às normas legais vigentes no Brasil.
Para encerrar, é possível recorrer à tradição eclesiástica que deu origem ao protestantismo, ou seja, ao pensamento dialético de Lutero. A teologia da cruz permite afirmar que, de um lado, contribuir para a igreja através do dízimo é ato da liberdade do cristão; por outro lado, cobrar o dízimo em nome de Jesus, nega a justificação somente pela fé. A cobrança do dízimo parece submeter a igreja cristã a um novo cativeiro babilônico, em que a venda de indulgências se assemelha à venda da prosperidade prometida pela igreja a quem investir no dízimo. Pelo Evangelho é lícito pagar o dízimo, se o crente assim o desejar; mas é ilícito cobrá-lo em nome de Jesus.
*Evaldo Luis Pauly é professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade La Salle (Canoas\RS). Autor, entre outros livros, de A Bíblia se explica sozinha (Sinodial).
Notas
[i] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, artigo 5º, inciso VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”; inciso XVII: “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”.
[ii] Detalhes sobre dízimo ou sobre essa antiguíssima divisão social do trabalho estão registrados em Gênesis 14:19–20; 28:20–22, Levítico 27, entre muitos outros textos bíblicos.
[iii] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[iv] Veja-se o relato da construção do Templo nos capítulos 5 a 6 de 1 Reis, em especial, 1 Reis 7:1-8. Veja-se também 2 Crônicas capítulos 2 a 6.
[v] CULLMANN, O. Jesus e os revolucionários de seu tempo. Petrópolis: Vozes, 1972. Esse biblista francês considera que, de um lado “a ‘vida’ e a atividade de Jesus: Sua ascensão sobre a massa popular que, segundo Jo 6,15, o quer fazer rei. – A atração que ele exercia sobre os zelotes” (p. 16); e por outro, “Diferente dos zelotes, Jesus anuncia que o reino vem da parte de Deus e que sua vinda não depende de nós” (p. 20).
[vi] SCHIAVO, L. Templo de Deus ou Templo dos Demônios? História e Conflitos ao Redor do Templo Judaico. Caminhos – Revista de Ciências da Religião, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 247–262, 2008, p. 267. Disponível em: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/448
[vii] O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (10.12.1948) impõe aos governos democráticos assegurar que as pessoas tenham “direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
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