Por SÁVIO BONES*
Para deter a marcha reacionária que segue o seu curso, com idas e vindas, é preciso construir e ampliar as alianças, convocar as forças democráticas e progressistas a se unirem
Em novembro de 1926, quando se completava o quarto ano da Marcha sobre Roma, da ascensão do fascismo à direção executiva do Estado burguês italiano, Evguiéni Pachukanis publicou o artigo Para uma caracterização da ditadura fascista. Da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), há 95 anos, irmanando-se às lutas travadas na Europa e no resto do mundo, o renomado intelectual interveio nos debates sobre a tática proletária antifascista, capturando seus traços permanentes e duradouros.
O bolchevique lembra: “dizer que a ditadura do fascismo é a ditadura do capital significa dizer muito pouco. É preciso”, continua, “dar uma resposta à pergunta: por que a ditadura do capital se efetua precisamente dessa forma? Não se pode esquecer o pensamento de Hegel sobre a forma ser um ponto essencial do conteúdo. Por isso, temos a obrigação de averiguar o que essa forma particular gerou de novidade, o que ofereceu de novidade, quais suas possibilidades específicas e suas contradições específicas”.
Em busca das respostas, o jurista marxista analisa as condições em que surgiu o fascismo Italiano e “o seu conteúdo social objetivo”. Em suas conclusões, afirma que “a ditadura de Mussolini não é uma ditadura da pequena burguesia nem de grandes proprietários de terra, mas uma ditadura dos grandes industriais e do capital financeiro”. A seguir, aponta as várias implicações dessa assertiva.
Ao mesmo tempo, deixa claro que o fascismo é um fenômeno da sociedade civil, com suas derivações na sociedade política, e não um evento exclusivamente político, muito menos surgido somente na esfera estatal. Esclarece, ainda, que tal corrente de extrema-direita afronta diretamente as liberdades políticas, os trabalhadores, as classes populares. Caracteriza-se também por promover a perseguição aberta aos comunistas, aos revolucionários, aos democratas, aos patriotas, aos progressistas, aos humanistas, a todas as forças e indivíduos que lhe fazem oposição – venham de onde vierem.
A título de exemplo, cita medidas econômicas, políticas, sociais e discursos de Mussolini, dentre eles, o de janeiro de 1923, em que o Duce das hordas vestidas com camisas pretas afirma que “o fascismo é a negação de qualquer doutrina socialista e democrática”.
O autor soviético afirma, ainda, que além ter uma base de massa policlassista, uma militância ativa, um funcionamento orgânico do tipo paramilitar, o fascismo assume a violência como instrumento central da atividade política e adota uma retórica pragmática, verborrágica, agressiva e, fundamentalmente, anticomunista. O seu “ponto característico consiste no fato de que a organização fascista, desde o início, se orienta na luta pelo poder, e ademais na luta por todos os meios, incluindo aqueles que violam diretamente a legalidade existente. É essa atitude direta em relação à tomada do poder de Estado que diferencia nitidamente o movimento fascista das organizações políticas de tipo parlamentar.”
Considerando o balanço das lutas travadas contra o fascismo até então, em várias partes do mundo, pelas forças democráticas, entre elas os comunistas, e levando em conta as contribuições diversas que se multiplicavam à época, Pachukanis frisa que é preciso reconhecer a necessidade incontornável de “considerar todas as contradições internas que existem no campo burguês entre os fascistas e os antifascistas, além das contradições do próprio fascismo.”
Para tanto, evoca a elaboração clássica de Vladimir Ilitch, Esquerdismo, doença infantil do comunismo, de 1920: “Isso, mais uma vez, é uma das receitas de Lênin. Ele diz (em relação à Inglaterra) que de um ponto de vista absolutamente puro, ou seja, abstrato, imaturo, e ainda de ação de massas, a diferenciação do comunismo entre Lloyd George e (Winston) Churchill e entre Lloyde George e (Athur) Henderon é absolutamente desimportante e pequena, mas do ponto de vista da prática, do ponto de vista do partido que quer conduzir as massas na batalha, as diferenças precisam ser consideradas”, já que “em sua conta, em determinado momento de maturação dos conflitos irreconciliáveis entre esses ‘amigos’, que enfraquecem e debilitam todos os ‘amigos’, tomados de conjunto, está toda a causa, toda a tarefa do comunismo.”
Inaugurados anteriormente, os enfrentamentos, os debates e os acúmulos prosseguiram no fogo dos conflitos em andamento, tomando corpo diante da “análise concreta da realidade concreta”, bem como carregando consigo uma coleção de derrotas e vitórias em batalhas heroicas.
No dia 2/8/1935 e passados nove anos– portanto, há 80 anos –, Geórgi Dimitrov, em nome do Comitê Executivo da III Internacional, no qual era secretário-geral, proferiu o célebre informe ao VII Congresso da organização mundial do movimento comunista. Então, as posições expressas nas discussões e as resoluções aprovadas armaram os revolucionários, o proletariado e as massas populares com uma política ampla, avançada e potente para se enfrentar as ditaduras fascistas.
Na oportunidade, o movimento fascista foi novamente desnudado e apresentado em sua essência: “a ditadura terrorista descarada dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro.” O pronunciamento deixou evidente que “a ascensão do fascismo ao Poder não é uma simples troca de um governo burguês por outro, mas a substituição de uma forma estatal da dominação de classe da burguesia, a democracia burguesa, por outra: a ditadura terrorista declarada.”
O dirigente búlgaro, que fora vítima da perseguição nazista quando militava na Alemanha, apontou o sentido que sua abertura política tinha para a Internacional: “Queremos que os comunistas de cada país tirem e aproveitem oportunamente todos os ensinamentos de sua experiência, que é a vanguarda do proletariado. Queremos que aprendam o quanto antes possível a nadar nas águas tempestuosas da luta de classes e não fiquem à margem, como espectadores e registradores das ondas que se aproximam, esperando o bom tempo.” Naquela altura, os tambores de guerra já rufavam.
O VI Congresso, em 1928,já alertara a humanidade sobre a ofensiva e os perigos do fascismo, porém, adotou uma tática estreita. Corrigindo o rumo, o Congresso de 1935 deu passos decisivos para o enfrentamento ao fascismo. Aprovou uma tática geral aberta, estável, potente e confiável, por isso mesmo capaz de se dirigir-se às grandes massas proletário-populares e as mobilizar.
A Frente Popular Antifascista, como ficou conhecida a política de alianças então aprovada, ao compreender classes e setores de classes distintos, propiciou a aglutinação das forças democráticas e progressistas diversas. Constituindo-se em notável conquista histórico-política, reanimou e renovou o conjunto das batalhas que se sucederam. Infelizmente, os êxitos obtidos não foram suficientemente fortes para contrarrestar e derrotar o fascismo, já maturado em suas cabeças de ponte fixadas na Itália, na Alemanha e no Japão. Assim, grande parte dos trabalhadores e povos foi tragada pela carnificina da guerra imperialista.
A justeza, a força e a permanência da tática efetivada pelos partidos comunistas marcaram profundamente os conflitos vividos contra o fascismo desde então, as vitórias comemoradas e as derrotas sofridas. Junto vieram as experiências político-práticas, os ensinamentos e o acúmulo de ações que vão da solidariedade imediata àquelas de caráter político geral ou militar – inclusive nos países fora do território conflagrado.
Aluta contra o fascismo, portanto, não é uma questão conjuntural qualquer, surgida como raio no céu azul, que requer uma elaboração partindo do zero. Ao contrário, vem de longa data, foi vivida em erros e acertos, consolidou avanços e produziu uma história gloriosa. Embora esteja hoje recolocada em novos patamares e dimensões, a luta antifascista não é propriamente uma novidade para os pioneiros sociais. Para uma resistência esclarecida, ativa e vigorosa, há que se resgatar essa herança e projetá-la nas lutas do presente e do futuro, conforme a realidade concreta.
Durante décadas houve um acúmulo teórico-prático nos choques contra os movimentos fascistas, que remonta à formação dos Fasci Italiani di Combattimento– Grupos Italianos de Combate. Ao longo do tempo, passou pelas mobilizações de massa, guerras civis e resistências a regimes políticos pautados pelo terrorismo de Estado e a governos que o endossam, bem como pelo enfrentamento às ditaduras de outras características, até chegar aos dias de hoje e aos embates contra as atuais manifestações fascistizantes.
Diante da defensiva estratégica experimentada pelas forças progressistas e do avanço realizado por movimentos fascistas, protofascistas, belicistas, ultraconservadores, xenofóbicos e anti-humanista sem escala mundial, a História não pode adormecer nas gavetas e estantes. Ao contrário, tem que permanecer acordada e soar como trovão.
No Brasil, afora alguns trabalhos acadêmicos, após um debate com pouca amplitude sobre o regime militar, as discussões referentes ao fascismo reentraram na ordem do dia, impregnando as práticas e análises sobre as manifestações de massas havidas em 2013. Posteriormente, ganhou uma dimensão regular com a entrada em cena do capitão miliciano na vida política nacional.
Navegando as ondas de uma marcha golpista, Jair Bolsonaro, ao deixar claro o que representa, pretende construir e milita para dirigir um movimento entreguista, reacionário, ultraconservador, antipopular, obscurantista, ditatorial e autocrático, trouxe o tema definitivamente para a agenda brasileira. A sua subserviência ao imperialismo estadunidense, assuas loas a Donald Trump e os seus métodos, só reforçaram o debate.
Sobretudo, foram as declarações, inciativas, atitudes e ações presidenciais, bem como de seus colaboracionistas, no sentido de moldar a sociedade política à sua imagem e semelhança, atacando, enfraquecendo e alterando o regime político democrático-constitucional vigente, restringindo ainda mais as liberdades democráticas e os direitos civis, que impuseram a urgência e uma amplitude nova ao assunto. Isso tudo combinado com a postura do Governo e de setores pertencentes à sua base aliada ou de massa sobre a Pandemia e as políticas sanitárias anticovid-19, que transformou a questão em emergência nacional.
Parcelas democráticas da sociedade civil e da sociedade política, especialmente as massas avançadas, já identificam Bolsonaro e suas gangues com o fascismo ou com alguns de seus traços. Basta espiar as resoluções partidárias, bem como os pronunciamentos, declarações, estudos, análises, teses, opiniões e posturas em geral, para verificar certo consenso: há uma atmosfera propícia ao crescimento do fascismo.
Um pipocar de posições trilha as veredas do liberalismo e da ingenuidade ao acreditar, por exemplo, que já se vive em um regime político fascista, confundindo alhos com bugalhos. Outras acreditam que tal projeto de extrema-direita não tem como prosperar no Brasil, que as aberrações vistas hoje são exceções, que os dias atuais representam um mero hiato na história nacional, que os situacionistas não passam de ignorantes, que o Governo Federal se desgastará por si só, que as maioria sem breve despertarão para a luta espontaneamente, após uma letargia hipnótica e até que as próximas eleições terão o condão mágico de recolocar o carro nos trilhos, redirecionando-o rumo a uma democracia supostamente furtada e ao paraíso perdido. Há também quem pense já não ter jeito de deter a barbárie.
Felizmente, um número crescente de pessoas, partidos e movimentos abre picadas para encarar o protofascismo – ou seja, para enxergar o fascismo que prossegue em seu estado de gestação e zigoto – e enxerga a consolidação da extrema direita, incluindo as suas ideias e força militante, como expressão da luta de classes real. Vê que a sua meta é avançar mais e liquidar o regime democrático, a depender da conjuntura e da correlação de forças, seja por meio de uma reeleição de Bolsonaro em 2022, seja mediante a contestação dos resultados desfavoráveis nas urnas, com ou sem autogolpe.
Independentemente do caminho escolhido, sendo sinceras as avaliações, deliberações e afirmações sobre a conjuntura e as ameaças fascistizantes, fica claro que o fantasma já nos alerta a todos. Nada mais correto, justo e necessário do que unir forças e concentrar energias para exorcizar o perigo. Trata-se de impedir que ele cresça e que os seus resultados se realizem, se completem.
O processo eleitoral de 2020, os debates subsequentes e as discussões sobre a nova composição da Mesa no Congresso Nacional, com a constituição de um bloco parlamentar oposicionista, escancararam as dificuldades, na sociedade civil e na sociedade política, de se responder a uma pergunta, aparentemente ingênua e simples, mas que pode definir os rumos da luta de classes e os próximos passos na contenda política que promete um acirramento.
Para absorver a realidade para além das névoas do idealismo e do voluntarismo, intrinsecamente turvos, e responder à arguição com clareza, nem é preciso arregalar os olhos para ver o tamanho da encalacrada em que o País está metido e os perigos que o ameaçam.
A marcha golpista, iniciada com a Ação Penal 470, se legitimou e se consolidou com a eleição do atual presidente. O capitão miliciano e suas falanges impuseram uma derrota profunda e de largo significado às múltiplas forças comprometidas com as liberdades e com as maiorias, tanto maior quando se leva em conta a situação de defensiva estratégica em que se encontram e as repercussões da crise sanitária no terreno nacional.
O protofascismo ocupou espaços, a extrema direita se impôs em instituições chave do Estado e o Governo Central é bem avaliado em uma parcela da população brasileira que abrange classes e setores sociais diversos. Os que se iludem ao acharem, por simples desejo, que a extrema-direita não passa de um fogo-fátuo, que ela não tem um projeto, que o atual presidente é tão somente um bobo ignorante, disposto a respeitar o chamado jogo democrático, precisam acordar para a verdade: impõe-se a soma de esforços para bloquear o pesadelo que tenta se perenizar.
Voltando ao questionamento inicialmente proposto: qual é a prioridade dos combates na atual conjuntura? Para onde devem ser canalizadas as energias do bloco histórico? O centro das críticas deve ser o setor liberal-burguês? O conservadorismo tradicional e vacilante, fruto, defensor e conviva de ambientes democráticos? Os segmentos à direita que romperam suas alianças com o social-liberalismo? Aqueles que se aproximaram de Bolsonaro e agora, por razões diversas – sejam nobres ou pragmáticas, sejam inconfessáveis ou não –, querem agora vê-lo e a seu governo à distância, assim como buscam trilhar um caminho alternativo para derrotá-lo? Os decepcionados, os arrependidos, os ambíguos, os titubeantes? Todos que seriam meras farinhas do mesmo saco?
Ou o inimigo permanece o mesmo e o combate tem que se concentrar no protofascismo, no Governo Federal, na figura presidencial com o seu séquito ultrarregressivo, nas suas atitudes e em tudo que expressam, pretendem e desejam?
A resposta só pode ser uma: o choque principal tem que se dar contra quem subalterniza cada vez mais a nação brasileira e instrumentaliza, persecutória e abertamente, o aparelho de Estado, incluindo as forças armadas, com viúvos do regime militar e outros grupelhos autocráticos, reacionários e milicianos, de francas intenções autogolpistas e ditatoriais. Qualquer dúvida ou hesitação certamente gerará erros graves e fatais.
As energias do proletariado e das classes populares precisam se voltar contra um governo que retira direitos trabalhistas e sociais, se desfaz das responsabilidades sociais que interessam os “de baixo”, sabota a saúde pública, promove o desemprego, congela os salários reais, expande a miséria, aumenta o empobrecimento geral e desampara os mais necessitados.
O confronto deve se dar contra a reação bolsonariana que ameaça as liberdades democráticas e os direitos civis, semeia o obscurantismo, prospera no pragmatismo, manipula a fé religiosa e incentiva milícias, bem como transpira opressão, preconceito e truculência, encarnada também na figura de outros milicianos por convicção doutrinária ou interesse mesquinho, a exemplo de Roberto Jefferson.
Para deter a marcha reacionária que segue o seu curso, com idas e vindas, é preciso construir e ampliar as alianças, convocar as forças democráticas e progressistas a se unirem, a somarem esforços e a mirarem suas baterias, conjuntamente, no inimigo principal.
Em todas as frentes de luta – sindical, temática, específica ou comunitária –, o campo operário-popular e sua militância têm que ter claro quem é o inimigo central a ser combatido e jamais esquecer ou menosprezar a sua tarefa política chave na presente conjuntura: dar exemplo, vanguardear e alinhavar a unidade de ação entre os vários setores democráticos e progressistas para jornadas e campanhas a serem construídas conjuntamente.
Só assim será possível impor derrotas significativas– parciais e gerais, de curto, médio e longo prazo – aos atuais inimigos maiores do povo. Exemplos fulcrais foram as lutas pelo Fundeb e pelo Auxílio Emergencial, quando se combinaram a mobilização social e a ação parlamentar. Está na ordem do dia resistir ao enraizamento, inclusive orgânico, do bolsonarismo nas grandes multidões, abrindo caminho para se retomar as mobilizações de massa e sair da situação de atual, de resistência, para passar à ofensiva.
Benito Mussolini, em seu texto A doutrina do fascismo, publicado em 1932 na Enciclopédia Italiana, evidencia –logo na abertura da seção intitulada Rejeição da democracia parlamentar como um engodo e uma fraude –que é urgente e possível a realização de alianças amplas para combater, de fato, as suas ideias e capangas: “Depois do socialismo, o fascismo aponta suas armas para a totalidade do bloco das ideologias democráticas e rejeita tanto suas premissas quanto suas aplicações práticas e seus implementos.”
Trata-se do mesmo discurso adotado pela reação bolsonariana. Para o constatar, basta ler os jornais e os posts da milícia informática incrustada e seguidora do Palácio do Planalto. Em face de tamanha obviedade, o que mais é preciso para agir com maturidade, responsabilidade e consequência?
*Sávio Bones, jornalista, é Diretor do Instituto Sergio Miranda (Isem).