Literatura na quarentena: Resumo de Ana

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARTHUR NESTROVSKI*

Comentário sobre o livro de contos de Modesto Carone

Modesto Carone, o tradutor de Kafka, é bem conhecido de todos. Sua tradução das obras do escritor tcheco é tida, com justiça, como exemplo consumado do que pode esta arte, a que tão poucas vezes se concede reconhecimento. A lógica do sentido em Kafka, compelida à lógica da língua alemã, ganha em português um análogo inesperado, no sentido da língua reinventada pelo tradutor.

Sentido e língua têm outro acento em Resumo de Ana (Companhia das Letras), o quarto livro de contos de Modesto Carone (depois de As Marcas do Real, Aos Pés de Matilda e Dias Melhores), destinado a torná-lo mais conhecido ainda como autor do que como tradutor. A mesma magreza, ou rigor de estilo do recriador brasileiro de O Processo, a mesma prosa no avesso da beleza serve aqui a uma narrativa comoventemente pessoal e brasileira, capaz de inverter, nalguma medida, a direção da influência. Se é inevitável ler Carone à sombra dos contos e parábolas de Kafka, não é menos verdade que essas memórias de Sorocaba vêm alterar, para todos nós agora, as fantasias kafkianas de Praga. Não são muitos os escritores brasileiros da atualidade de quem se pode dizer algo parecido, o que indica a dimensão alcançada por Carone.

O Resumo, na verdade, são dois: duas vidas, recuperadas em seus episódios essenciais. A avó Ana (nascida em 1887) e o tio Ciro (1925) são “fiéis servidores de nossa paisagem”, como diz Drummond num poema que serve de epígrafe ao livro e que ilumina obliquamente essas histórias. O poema é uma exortação de ancestrais ao “filho de cem anos depois”, seu “fim natural”. Há uma narrativa implícita, assim, na relação entre autor e personagens, enriquecida pelo “João Carone” que assina a impressionante foto da capa – um malabarista alemão nos céus de Sorocaba, na década de 1950, o que no contexto dá mais uma volta no parafuso das interpretações.

Numa prosa tão sóbria e controlada, a passagem dessas vidas vividas com tanta dureza até sua realização exemplar, em frases perfeitas, compõe outro livro, em contraponto à derrocada geral. A narrativa fragmentária, mas coerente de pequenos e grandes desastres, duas vidas caindo numa vertigem lenta, desfazendo-se em miséria, como se obedecendo a alguma lei indecifrável, sugere ainda outro livro, preservado nas entrelinhas pela reticência do autor. Sem fazer disto um foco, sem interpretar ou “resumir”, este é também um relato sobre o Brasil, redigido com a “tristura meio cômica” a que se refere Drummond, nos labirintos da contingência familiar.

A cada etapa dessas vidas, cada degrau nessa escada abaixo de constrangimentos e ruína, correspondem momentos que a inteligência do narrador resgata como se houvesse um sentido em tudo. Mas só pode haver sentido final se tudo estiver no passado; e o próprio esforço da narração faz pensar que não há limites fixos para a criação, nem para a revelação. Desse ponto de vista, poucos livros, como esse, têm tamanha sabedoria para situar a morte. O respeito do autor pelas vidas narradas não é nunca mais contundente do que no seu desfecho, o que não exclui a consciência do absurdo.

Entre a verdade e o significado, entre o passado e o futuro, essas histórias traduzem a experiência para o presente: um enigma no vértice da interpretação. Sucinto e discreto, mas capaz de levar o leitor mais duro às lágrimas – que aqui são também uma forma de pensar –, Resumo de Ana entra serenamente para a literatura brasileira, com a confiança das obras que sabem o que são. Quem tiver olhos para ler, lerá, e saberá se render à arte atenciosa e humana de Modesto Carone.

*Arthur Nestrovski, músico e crítico literário, é Diretor artístico da OSESP e autor, entre outros livros, de Tudo Tem a Ver. Literatura e Música. São Paulo: Todavia, 2019.

Publicado originalmente na revista Bravo!, setembro/1998; e no livro Palavra e sombra: Ensaios de crítica (Ateliê, 2009).

Referência

Modesto Carone. Resumo de Ana. São Paulo, Companhia das Letras, 1998 (https://amzn.to/3qzSemU).

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Hans Kelsen e o eros platônicoplatão 16/10/2024 Por ARI MARCELO SOLON & LEONARDO PASSINATO E SILVA: Para Kelsen, a doutrina política platônica está calcada na homossexualidade do filósofo, circunstância que explicaria uma tendência totalitária do projeto filosófico platônico
  • Genocídio sem hesitaçãoemaranhado 17/10/2024 Por ARUNDHATI ROY: Discurso de aceitação do prêmio PEN Pinter 2024, proferido na noite de 10 de outubro de 2024
  • A longa marcha da esquerda brasileiravermelho 371 19/10/2024 Por VALERIO ARCARY: Nos dois extremos estão avaliações de que ou a esquerda “morreu”, ou que ela permanece “intacta”, mas ambos, paradoxalmente, subestimam, por razões diferentes, o perigo bolsonarista
  • Influencer na Universidade públicapexels-mccutcheon-1212407 21/10/2024 Por JOHN KENNEDY FERREIRA: Considerações sobre a performance na Universidade Federal do Maranhão.
  • Forma-livreLuizito 2 20/10/2024 Por LUIZ RENATO MARTINS: O modo brasileiro de abstração ou mal-estar na história
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • A tragédia sem farsaestátua 17/10/2024 Por BARUC CARVALHO MARTINS: Breves comentários sobre a derrota da esquerda na eleição municipal
  • Van Gogh, o pintor que amava as letrasfig1samuel 12/10/2024 Por SAMUEL KILSZTAJN: Van Gogh costumava descrever literalmente seus quadros em detalhes, abusando de adjetivar as cores, tanto antes de pintá-los como depois de prontos
  • O belicismo de Sir Keir Starmer, o trabalhistabélico uk 18/10/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Sir Keir Starmer já conseguiu superar o chanceler alemão Olaf Scholz como a liderança mais belicista dentro da Europa, em relação à escalada da Guerra na Ucrânia

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES