Por ISABELLA M. WEBER*
Introdução do livro recém-lançado
A China contemporânea está profundamente integrada ao capitalismo global. No entanto, o estonteante crescimento chinês não levou o país à completa convergência institucional com o neoliberalismo. Isso desafia o triunfalismo do pós-Guerra Fria, que previa a “vitória incondicional do liberalismo econômico e político” em todo o mundo. Embora a era da revolução tenha terminado em 1989, isso não resultou na aguardada universalização do modelo econômico “ocidental”. Acontece que a mercantilização gradual facilitou o crescimento econômico da China sem que isso a levasse à assimilação generalizada. A tensão entre a ascensão da China e essa assimilação parcial define nosso momento atual e encontra suas origens na abordagem das reformas de mercado pela China.
A literatura sobre as reformas da China é ampla e diversificada. As políticas econômicas que o país adotou em sua transformação a partir do socialismo de Estado são bem conhecidas e investigadas. Muito negligenciado, no entanto, é o fato de que a mercantilização gradual e guiada pelo Estado chinês foi tudo menos uma conclusão inevitável ou uma escolha “natural”, predeterminada pelo excepcionalismo chinês. Na primeira década da “reforma e abertura”, sob Deng Xiaoping (1978-1988), o modo de mercantilização da China foi cinzelado em um debate acirrado. Economistas que defendiam uma liberalização ao estilo da terapia de choque lutaram pelo futuro da China contra aqueles que promoviam a mercantilização gradual a partir das margens do sistema econômico. Por duas vezes, a China tinha tudo preparado para um “big bang” na reforma dos preços. Por duas vezes, absteve-se de implementá-lo.
O que estava em jogo no debate da reforma de mercado é ilustrado pelo contraste entre a ascensão da China e o colapso econômico da Rússia. A terapia de choque – a prescrição política quintessencialmente neoliberal – havia sido aplicada na Rússia, o outro ex-gigante do socialismo de Estado. O prêmio Nobel Joseph Stiglitz atesta “um nexo causal entre as políticas da Rússia e seu fraco desempenho”. As posições da Rússia e da China na economia mundial inverteram-se desde que implementaram modos diferentes de entrada no mercado. A participação russa no Produto Interno Bruto (PIB) mundial caiu quase pela metade – de 3,7% em 1990 para cerca de 2% em 2017 –, enquanto a participação da China aumentou quase seis vezes – de apenas 2,2% para cerca de um oitavo da produção global (ver figura 1).
A Rússia passou por uma drástica desindustrialização, enquanto a China se tornou a notória fábrica do capitalismo mundial. A renda média real de 99% dos russos foi menor em 2015 que em 1991, enquanto na China, apesar do rápido aumento da desigualdade, esse número mais que quadruplicou no mesmo período, superando o da Rússia em 2013 (ver figura 2). Como resultado da terapia de choque, a Rússia teve um aumento de mortalidade acima de qualquer experiência anterior em um país industrializado em tempos de paz.
Dado o baixo nível de desenvolvimento da China em comparação com o da Rússia no início da reforma, a terapia de choque provavelmente teria causado um sofrimento humano em escala ainda maior. Teria minado, se não destruído, as bases para o crescimento econômico chinês. É difícil imaginar como seria o capitalismo global hoje se a China tivesse seguido o caminho da Rússia.
Apesar de suas importantes consequências, o papel fundamental que o debate econômico desempenhou nas reformas de mercado na China é amplamente ignorado. O famoso economista do desenvolvimento Dani Rodrik, professor de Harvard, representa a profissão de economista de forma mais geral quando responde a sua própria pergunta se “alguém [pode] nomear os economistas (ocidentais) ou [foi] a pesquisa que desempenhou um papel fundamental nas reformas da China” afirmando que “a pesquisa econômica, pelo menos como convencionalmente entendida”, não desempenhou “um papel significativo”.
Figura 1. Participação da China e da Rússia no PIB mundial (1990-2017)
Figura 2. Renda média por adulto na China e na Rússia por quantis populacionais (1980-2015)
Nos capítulos seguintes, volto à década de 1980 e pergunto quais razões intelectuais desviaram a China da terapia de choque. Revisitar o debate acerca da reforma de mercado revela a economia da ascensão da China e as origens das relações entre o Estado e o mercado chineses.
O desvio da China em relação ao ideal neoliberal reside não no tamanho do Estado chinês, mas principalmente na natureza de sua governança econômica. O Estado neoliberal não é pequeno nem fraco, mas forte. Seu objetivo é fortalecer o mercado. Em termos básicos, isso significa proteger a liberdade de preços como mecanismo econômico central. Em contraste, o Estado chinês usa o mercado como ferramenta na busca de seus objetivos mais amplos de desenvolvimento.
Como tal, preserva um grau de soberania econômica que protege sua economia contra o mercado global – como demonstraram de forma contundente a crise financeira asiática de 1997 e a crise financeira global de 2008. Abolir essa forma de “isolamento econômico” é um objetivo de longa data dos neoliberais, e nossa atual governança global foi projetada para acabar com a proteção nacional contra o mercado global. O fato de a China ter escapado da terapia de choque mostrou que o Estado manteve a capacidade de isolar os setores estratégicos da economia – aqueles mais essenciais para a estabilidade e o crescimento econômico – à medida que se integrava ao capitalismo global.
Para estabelecer as bases de minha análise da escapada da China, primeiro recapitularei brevemente a lógica da terapia de choque.
A lógica da terapia de choque
A terapia de choque estava no centro da “doutrina de transição do Consenso de Washington”, propagada em países em desenvolvimento, Europa oriental e central e Rússia pelas instituições ligadas aos acordos de Bretton Woods. Em aparência, tratava-se de um amplo pacote de políticas que seriam implementadas de uma só tacada, para causar um choque nas economias planejadas, transformando-as de uma só vez em economias de mercado. O pacote consistia de: (i) liberalização de todos os preços em um único big bang; (ii) privatização; (iii) liberalização do comércio; e (iv) estabilização, na forma de políticas fiscais e monetárias rígidas.
As quatro medidas da terapia de choque, implementadas simultaneamente, deveriam, em teoria, formar um pacote abrangente. Uma análise mais atenta revela que a parte desse pacote que podia ser implementada de uma só tacada resume-se a uma combinação dos itens 1 e 4: liberalização de preços e austeridade estrita.
David Lipton e Jeffrey Sachs falaram pelos proponentes da terapia de choque de forma mais geral quando admitiram complicações com relação à velocidade da privatização na prática. Eles reconheceram a magnitude da tarefa de privatização em uma economia com propriedade principalmente pública. Comparando o grande número de empresas estatais nas economias socialistas com o histórico de privatizações no Reino Unido, apontaram que “Margaret Thatcher, a maior defensora mundial da privatização”, havia liderado a transferência de apenas algumas dezenas de empresas estatais para o setor privado no decorrer da década de 1980.
Assim, observaram que o “grande enigma é como privatizar uma vasta gama de empresas de maneira equitativa, célere, politicamente viável e suscetível de criar uma estrutura efetiva de controle corporativo”. Recomendaram vagamente que “a privatização talvez deva ser feita por muitos meios” e que o “ritmo deve ser rápido, mas não desenfreado”. O relatório conjunto sobre a economia da União Soviética também alerta contra o avanço muito rápido da privatização, “quando os preços relativos ainda não estão estabilizados”. Da mesma forma, a liberalização do comércio aos olhos dos defensores da terapia de choque tem como precondição a liberalização dos preços internos. Um big bang na liberalização dos preços aparece, assim, como condição tanto para a privatização quanto para a liberalização do comércio e constitui o verdadeiro “choque” da terapia de choque.
O que foi apresentado como um amplo pacote de reformas acabou sendo uma política extremamente enviesada para apenas um elemento da economia de mercado: a determinação de preços pelo mercado. No entanto, essa unilateralidade não foi mero resultado de viabilidade. A razão mais profunda do viés voltado para a liberalização de preços está no conceito neoclássico do mercado como um mecanismo de preços que se abstrai das realidades institucionais. De modo mais geral, na visão dos neoliberais, o mercado é a única forma de organizar racionalmente a economia, e seu funcionamento depende de preços livres.
De acordo com a lógica da terapia de choque como a entendem, por exemplo, Lipton e Sachs, a liberalização de todos os preços “de uma só vez” corrigiria os preços relativos distorcidos, que, em consequência da herança stalinista, eram muito baixos para a indústria pesada e os bens de capital e muito altos para a indústria leve, os serviços e os bens de consumo.
De maneira similar, o relatório conjunto sobrea economia da União Soviética realizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial, pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (Berd) advertiu: “Nada será mais importante para a realização de uma transição bem-sucedida para uma economia de mercado do que a liberação dos preços para orientar a alocação de recursos. A liberalização ampla e antecipada dos preços é essencial para acabar com a escassez e os desequilíbrios macroeconômicos que afligem cada vez mais a economia”.
Essa liberalização generalizada dos preços precisaria ser combinada com uma política de estabilização para controlar o nível geral dos preços. Desde que macromedidas complementares fossem implementadas, a liberalização dos preços “poderia levar a um salto único nos preços, mas não a uma inflação contínua”, alegaram os defensores da terapia de choque. Segundo eles, as verdadeiras causas da inflação persistente nas economias socialistas estatais eram o excesso de demanda (em razão dos grandes déficits orçamentários), a “restrição orçamentária branda”, as políticas monetárias frouxas e os aumentos salariais resultantes da política de desemprego zero. Na visão deles, esses problemas poderiam ser aliviados com uma “forte dose de austeridade macroeconômica”, pois eram, em essência, monetários e não estruturais.
O “salto único nos preços” que se esperava como resultado da liberalização generalizada dos preços era bem-vindo, pois “absorveria o excesso de liquidez” e, desse modo, reforçaria a austeridade. Em outras palavras, um aumento no nível geral de preços desvalorizaria a poupança e, assim, reduziria o excesso crônico de demanda agregada que se experimentava nas economias socialistas. O custo de privar os cidadãos da modesta riqueza que haviam acumulado sob o socialismo de Estado era considerado um mal necessário. Com efeito, tratava-se de uma redistribuição regressiva que beneficiava as elites detentoras de ativos não monetários. A redistribuição de baixo para cima fazia parte da terapia de choque desde o início, desde a reforma monetária e de preços do pós-guerra na Alemanha ocidental, sob Ludwig Erhard. Forçar relações de mercado na sociedade da noite para o dia dependia da imposição de uma maior desigualdade.
A natureza e as estruturas das instituições predominantes que comporiam a nova economia de mercado não receberam muita atenção dos defensores da terapia de choque. O pacote recomendado por Lipton, Sachs e muitos outros, entre eles economistas do mundo socialista da época, não “criava” uma economia de mercado, como sugere o título do importante estudo desses economistas sobre a Polônia. Ao contrário, esperava-se que a destruição da economia de comando desse automaticamente origem a uma economia de mercado. Era uma receita para a destruição, não para a construção. Uma vez que a economia planificada estivesse “morrendo sob o choque”, esperava-se que a “mão invisível” operasse e, de maneira um tanto milagrosa, permitisse o surgimento de uma efetiva economia de mercado.
Essa é uma perversão da famosa metáfora de Adam Smith. Smith, um observador atento da Revolução Industrial, que se desenrolava diante de seus olhos, viu a “propensão humana a intercambiar, permutar e trocar uma coisa por outra” como o “princípio que dá origem à divisão do trabalho”, mas imediatamente advertiu que esse princípio era “limitado pela extensão do mercado”. O mercado, de acordo com Smith, desenvolvia-se devagar, à medida que eram construídas as instituições que facilitavam as trocas de mercado. Nesse processo, a mão invisível entraria em jogo apenas gradualmente e, com ela, o mecanismo de preços. Em contrapartida, a lógica da terapia de choque nos leva a crer que é possível um país “saltar para a economia de mercado”.
A destruição prescrita pela terapia de choque não se atém ao sistema econômico. Uma segunda condição deve ser cumprida: uma “mudança revolucionária nas instituições”. Ou, como disseram Lipton e Sachs, o “colapso do regime comunista de partido único era a condição sine qua non para uma transição efetiva para uma economia de mercado”. De fato, foi necessário o colapso do Estado soviético e do regime comunista de partido único em dezembro de 1991 para que o big bang pudesse ser implementado; o presidente russo Boris Iéltsin eliminou quase todos os controles de preços em 2 de janeiro de 1992. Sob o secretário-geral Mikhail Gorbatchov, a reforma radical dos preços estava na agenda desde 1987, mas nunca foi realizada, pois os cidadãos russos reclamavam em massa e os intelectuais alertavam sobre uma possível inquietação social. Gorbatchov tentou o gradualismo ao estilo chinês, mas em vão.
Prometendo ganhos de longo prazo, o big bang prescrevia males de curto prazo que afetavam imediatamente os interesses dos trabalhadores e das empresas, bem como dos departamentos governamentais. A liberalização radical dos preços tornou-se politicamente viável apenas após a dissolução do Estado soviético. “O colapso do regime comunista de partido único” acabou sendo, de fato, “a condição sine qua non” para o big bang, mas o big bang não conseguiu alcançar “uma transição efetiva para a economia de mercado”. Em vez do aumento pontual previsto no nível dos preços, a Rússia entrou em um longo período de inflação altíssima, queda na produção e baixas taxas de crescimento (ver figura 3).
Quase todos os países pós-socialistas que implementaram alguma versão da terapia de choque experimentaram uma recessão longa e profunda. Além da devastação documentada pelos indicadores econômicos (ver figura 2), a maioria dos indicadores de bem-estar, como acesso à educação, ausência de pobreza e saúde pública, entrou em colapso.
*Isabella M. Weber é professora de economia na University of Massachusetts Amherst, EUA.
Referência
Isabella M. Weber. Como a China escapou da terapia de choque. Tradução: Diogo Fernandes. Revisão técnica: Elias Jabbour. São Paulo, Boitempo, 2023, 476 págs (https://amzn.to/447aDoD).
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