Completar a obra da redemocratização

Imagem: Thgusstavo Santana
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Por LUIZ WERNECK VIANNA*

Sob ameaça a sociedade deu partida ao sentimento de insurgência contra um governo que renega o que há de melhor em nossas tradições

Para observadores desatentos, o apego irracional ao poder por parte de Bolsonaro quando todos e tudo lhe escapam do controle e comunicam em alto e bom som que chegou a hora do seu fim, aparenta sinais de loucura, de falhas cognitivas que escapam a uma percepção normal das circunstâncias a que está exposto, tanto no processo eleitoral que emite sinais irreversíveis de derrota nas urnas, como na rejeição manifesta pela opinião pública entre gregos e troianos, inclusive de largas fatias da elite, ao seu estilo de mando e de governo.

Mas há método nessa loucura, e que não recua do uso de qualquer expediente que evite a sua derrota final, em última instância até o de favorecer enfrentamentos que levem o país à beira de uma guerra civil. Bolsonaro e seu entorno imediato nunca esconderam seus propósitos do que entendiam como uma purificação política do país a eliminação dos seus adversários, no limite, física (os trinta mil mortos tantas vezes mencionados publicamente), explícita na glorificação de militares torturadores na ditadura militar e na sua obsessão de defesa do regime do AI-5. Nesse sentido, converteu em uma política de Estado a difusão do culto às armas e a massificação da sua posse, e favoreceu a criação de milícias entre seus simpatizantes e sequazes.

Ao longo do seu governo, em particular após sua inflexão em favor das forças políticas agrupadas no Centrão, procurou palmilhar as vias da política na expectativa de que com elas se credenciaria a disputar com êxito a sucessão eleitoral, sem perder de vista, em nenhum momento, a alternativa golpista para o caso de se frustrarem. Salvo um desastre cósmico às vésperas das eleições, são favas contadas sua derrota eleitoral, e já se fazem ouvir os tambores que anunciam a presença dos conspiradores contra a democracia, em que pesem robustas trincheiras, nacionais e internacionais, que começam a se levantar contra seus intentos.

Os democratas, nessa hora de suma gravidade, não podem se iludir antecipando o sucesso dos seus esforços, pois, na verdade, o que está em jogo é levar a efeito a obra inconclusa da democratização do país, removendo o que ainda sobrevive do entulho autoritário. O desespero dos que se sentem na iminência de perderem o poder e suas prebendas pode levar a que se socorram no “tudo ou nada” ou cogitarem de que “depois de mim, o dilúvio”, precipitando o país no tumulto e no caos.

O recente ultraje à dignidade da nação praticado por Bolsonaro na famigerada reunião com embaixadores de países amigos mais uma vez expôs a natureza temerária de suas ações como dirigente político que a tudo subordina ao que entende como seus interesses na preservação do poder. Os riscos letais a que nossa democracia incorre pela ação de conspiradores dispostos ao uso de recursos extremos contra ela não pode ser outro que o da união de todos nessa causa de salvação nacional.

Sob ameaça a sociedade deu partida ao sentimento de insurgência contra um governo que renega o que há de melhor em nossas tradições e em nossos esforços por radicar aqui os ideais civilizatórios. O manifesto que ora conta com mais de 500 mil assinaturas em defesa da democracia e de nossas instituições, ao qual aderem juristas, intelectuais, artistas e entidades representativas da indústria, das finanças e do comércio e seis centrais sindicais, ainda aberto a novas adesões, apontam nessa direção.

Seu texto, atores, e o lugar em que será anunciado publicamente no dia 11 de agosto na Universidade de São Paulo, carregam simbolicamente os elos entre o movimento libertário atual e o dos idos anos 1980, significando continuidade nas lutas democráticas entre esses dois períodos em que este mais recente visa completar o que ainda faltou ao primeiro.

*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Autor, entre outros livros, de A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Revan).

 

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