Desde que Khomeini assumiu, em 1979, foram 40 anos de hostilidades através de terceiros, entre Estados Unidos e Irã. Donald Trump rompeu isso ao autorizar o ataque com drones que matou o cérebro militar do Irã
Por Luiz Carlos Azenha*
Toda decisão militar dos Estados Unidos obedece, mais ou menos, aos objetivos políticos do ocupante de turno da Casa Branca. Jimmy Carter tornou-se presidente de um mandato só quando fracassou a operação militar que pretendia resgatar os norte-americanos que foram feitos reféns na embaixada dos Estados Unidos em Teerã, depois que o aiatolá Khomeini ascendeu ao poder em 1979.
Há uma linha que une Khomeini, um autoridade religiosa xiita, ao presidente Mohammed Mossadegh, um doutor em Direito que nacionalizou o petróleo iraniano e foi derrubado pela CIA em 1954, num golpe que contou com forte apoio britânico. Embora de origens distintas, ambos defendiam a soberania do Irã, algo inaceitável aos olhos dos Estados Unidos dependentes do petróleo do Oriente Médio.
Desde que Khomeini assumiu, em 1979, foram 40 anos de hostilidades by proxy, ou seja, através de terceiros, entre Estados Unidos e Irã. Donald Trump rompeu isso ao autorizar o ataque com drones que matou o cérebro militar do Irã, Qassem Suleimani, que havia desembarcado da Síria em Bagdá. Durante quase 30 anos, como líder de uma tropa de elite da Guarda Revolucionária, Suleimani articulou militarmente os interesses regionais do Irã no Oriente Médio.
Os persas sempre tiveram influência além de sua própria fronteira, dado o fato de serem grandes produtores e exportadores de petróleo, mas o Irã tem um papel especial: é o guardião dos muçulmanos xiitas, que são minoria populacional e sofrem forte repressão de maiorias sunitas em países como a Arábia Saudita.
Era assim no Iraque de Saddam Hussein, que articulou o nacionalismo árabe laico e governou os xiitas com mão de ferro. Ironicamente, Saddam seria derrubado mais tarde justamente por exercitar o nacionalismo iraquiano além de suas fronteiras. Os Estados Unidos e o Ocidente usaram Saddam para “conter” Khomeini nos anos 1980, na sangrenta guerra entre Irã e Iraque que devastou os dois países.
Saddam tomou a iniciativa, mas quase foi derrotado pelas ondas de infantaria orquestradas pelo Irã. Por causa do esforço de guerra, o Irã desenvolveu os mísseis de curto e médio alcance que acertaram Bagdá e forçaram Saddam a aceitar o fim da guerra. Os Estados Unidos forneceram as informações estratégicas que evitaram a derrota de Saddam, bem como armamento. Deram ao líder iraquiano carta verde para frear a infantaria iraniana com armas químicas que depois, de maneira hipócrita, viriam a condenar.
Saddam, crente de que o Ocidente tinha uma dívida com ele, entendeu ter recebido pessoalmente de Donald Rumsfeld, à época a serviço do presidente George Bush pai, autorização para ocupar o Kuwait. De olho em sua própria reeleição, que não obteve, Bush pai articulou uma coalizão internacional para expulsar Saddam do Kuwait, mas decidiu mantê-lo enfraquecido no poder justamente para manter o equilíbrio regional. Equilíbrio que viria a ser rompido por George W. Bush, alegadamente para vingar uma tentativa de assassinato que Saddam organizou contra Bush pai.
Assim que as Torres Gêmeas caíram em setembro de 2001, os EUA não se voltaram contra a Arábia Saudita, origem de Osama bin Laden e da maior parte dos suicidas que promoveram os atentados. Com toda sorte de mentiras, inclusive a maior delas, sobre as falsas armas de destruição em massa, os Estados Unidos ocuparam o Iraque, com consequências desastrosas para a região.
Milhões de iraquianos fugiram para a Síria e a Jordânia, exportando instabilidade. As rosas com as quais os soldados norte-americanos seriam recebidos nunca apareceram. Em vez disso, os nacionalistas iraquianos se rebelaram, impuseram fortes perdas humanas e econômicas aos Estados Unidos e criaram um vazio de poder onde floresceu o Estado Islâmico. A consequência óbvia deste desastre foi o aumento, não a diminuição, do poder regional do Irã, o que recrudesceu a divisão entre elites sunitas e xiitas, especialmente da Arábia Saudita e Irã.
A cabeça de Suleimani estava a prêmio faz décadas. Porém, Donald Trump tinha um motivo especial para atacá-la: as eleições de 03 de novembro de 2020. Acuado pelos democratas, Trump precisa do voto do eleitor independente — homens, brancos, classe média baixa — que está para os Estados Unidos como o PSD esteve para a política brasileira. Eles são minoria, mas formam o pêndulo decisivo do Colégio Eleitoral em estados industriais como Ohio, Pensilvânia e Michigan, por exemplo.
São eleitores que respondem aos apelos patrióticos de Trump, pois direcionam seu ressentimento de classe a uma elite que seria a responsável pela decadência relativa dos Estados Unidos no mundo — a elite da costa Leste que Trump afirma desprezar, embora faça parte dela como “dinheiro novo”, mas desprezível dos cassinos. Como esta decadência relativa dos Estados Unidos é um dado da realidade, as chances de Trump ser reeleito sempre foram razoáveis.
Trump espera que o instinto de autopreservação modere a resposta das autoridades iranianas ao assassinato de Suleimani, mas os xiitas de todo o mundo, da noite para o dia, serão chamados por clérigos a vingar o sangue de seu líder militar. Mais uma vez, estamos sob a Lei das Consequências Imprevistas ou Indesejadas na política internacional.
O Iraque não tem forças, nem disposição, para um novo enfrentamento com o Irã a serviço dos Estados Unidos. Qualquer confronto militar passará pela Arábia Saudita, onde os Estados Unidos vem reforçando sua presença militar nos últimos meses. O impacto no preço internacional do petróleo será imediato, com efeitos devastadores para a já cambaleante economia mundial.
É possível que Trump seja mesmo o grande beneficiário no curto prazo do conflito mais ou menos aberto com o Irã. Porém, se for reeleito, ele mesmo estará sentado sobre a bomba de efeito retardado que armou, especialmente se o preço do petróleo provocar uma nova recessão global.
E para os brasileiros, quais as consequências?
Nas circunstâncias atuais, os acionistas da Petrobras poderão obter grande lucro, mas os consumidores ficarão sujeitos ao risco de pagar, com sorte, 6 reais por litro de gasolina na bomba.
*Luiz Carlos Azenha é jornalista
Artigo publicado originalmente no site Viomundo