Capitalismo libidinal

Jo Spence, Revolta da Libido Parte I e Parte II, 1989
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por AMADOR FERNÁNDEZ-SAVATER

Prólogo do autor ao livro recém-lançado

Vários exercícios de “economia libidinal” são ensaiados neste livro. O que isso significa?

Em primeiro lugar, uma espécie de escuta, acolhida de fenômenos que chamam a atenção, não apenas os discursos ou as identidades, os cálculos ou os interesses, mas também às posições do desejo e as flutuações de humor, desejos e relutâncias, assim como os estados anímicos.

Jean-François Lyotard, em seu livro intitulado Economia libidinal, nos ensina a distinção entre signos e intensidades: o que é dito e o que acontece, o nível de informação e o nível das forças. Nosso ouvido, hipersemiotizado, registra (e acredite-se!) as retóricas, as declarações, as gesticulações, mas deixa escapar os funcionamentos, as ações e os movimentos que deslizam “por baixo”.

É um ouvido incauto, que fetichiza sinais, que acredita no que é dito e mostrado, leva as coisas ao pé da letra. Mas não basta falar de algo (revolução, comunidade, cuidado) para que ele exista. E vice-versa: há existências imperceptíveis, sem nome, sem termo de referência, sem rótulo.

Em segundo lugar, certa ideia ou imagem sobre como se dá o funcionamento do capital. Se a economia política o descreve como regido por leis e interesses, muitas vezes contraditórios, em conflito e crise permanente, se a geopolítica o analisa como um sistema de relações de poder, a economia libidinal o mostra como um corpo assaltado por pulsões, uma superfície atravessada por intensidades, um sistema nervoso, emocional e afetivo, que sofre de patologias.

O capitalismo libidinal é um monstro, um centauro concretamente, dividido entre uma pulsão de autopreservação, estabilização, normalização e uma pulsão demente de conquista, pilhagem e saque. Um regime dual, promessa e veneno, produtividade e destruição, bem-estar e guerra, atravessando cada instituição e cada dispositivo, cada objeto de consumo e cada um de nós.

Nossa aposta aqui é a seguinte: o mundo se move essencialmente à medida que cada um de nós é movido (e comovido) pelos afetos. A “surdez libidinal” nos impede de entender onde o capital, ou os novos direitos que hoje lhe servem tão bem, extrai suas energias, como opera, em primeiro lugar, dentro de nós mesmos, e o que resiste ou escapa a ele.

Conversando com um escorpião

“Os limites do planeta impõem a necessidade de mudança”, “outro mundo não só é possível, como também necessário”. Pergunto-me que ideia têm os que falam desta forma do humano, da mudança como uma necessidade, um dever ser, uma questão de razões e argumentos.

Você nunca ouviu a fábula do escorpião e da rã? A rã é a boa consciência progressiva, cheia de razões convincentes, mas sempre perplexa quando o escorpião a pica no meio do rio. Quando, por exemplo, contra toda a lógica, a extrema direita ganha uma eleição apoiada pelo voto das classes populares.

Os seres humanos são os únicos animais que se autodestroem e que gostam de fazê-lo, são os únicos capazes de destruir seu meio ambiente, as suas condições de vida, o seu próprio ecossistema. É um animal “louco”, disse Cornelius Castoriadis, no sentido de que não está programado para obedecer ou se conformar a um propósito biológico ou funcional, mas, ao contrário, é uma torcedura, um desvio dos planos, uma confusão, um obstáculo. Para o bem e para o mal, uma falha na lógica do universo.

Como você fala com um escorpião? Ele não presta atenção às razões, às pedagogias, à moral ou mesmo exatamente aos interesses, inclusive os seus próprios.

A crença em algum tipo de “objetividade salvadora” (política, tecnológica, estatal), capaz de fazer a mudança necessária em nosso nome, mas sem nós, já encontrou sua refutação no fracasso das revoluções comunistas do século XX. Mas as ilusões têm a pele dura. Os limites objetivos do marxismo ortodoxo hoje dão lugar aos limites físicos do planeta esgrimidos pelos ecologistas. Contudo, ainda se busca algum tipo de automatismo revolucionário, de uma lógica avassaladora, de necessidade objetiva em torno da qual se faça moralidade e pedagogia. Ontem a catástrofe econômica, hoje o colapso.

Encontramos novamente no velho Marcuse, agora enterrado pelos clichês da época, uma ideia mais fecunda: não há ruptura entre natureza interna e natureza externa. Ou seja, nenhuma modificação em nossa relação com o mundo é possível sem ao mesmo tempo modificar nossa disposição sensível, nossa estrutura pulsional, nossa receptividade. A necessidade de mudança é impotente sem um desejo de mudança. O decrescimento é mera retórica ou moralismo sem uma diminuição do desejo. Mas de desejo nada sabemos. A esquerda não sabe nada.

A revolução política ou econômica não compreende; contudo, não há mudança objetiva sem mudança subjetiva, mas ao mesmo tempo a subjetividade é um “ninho de víboras” (ou de escorpiões). Sem boa índole, sem folha em branco. O ser humano tem um corpo, o corpo tem pulsões e as pulsões são duas: Eros e Tânatos. Como falamos com os corpos?

O colapso é psíquico, social e ecológico

O “mal-estar por transbordamento” pode traçar alguma transversalidade (sempre conjectural) entre as dimensões psíquica, social e terrestre da vida sob o capital.

No plano íntimo, o transbordamento se expressa, por exemplo, na “falta de tempo” como um mal de época, na relação de ansiedade e impaciência com tudo, na percepção de uma aceleração cada vez maior.

“Não consigo acompanhar”, “não consigo chegar lá”, “não tenho vida”: em linguagem coloquial, o sintoma surge se lhe damos ouvido (libidinal).

No plano social, o transbordamento se expressa na explosão das instituições mais básicas do vínculo social: escola, posto de saúde, administração pública. Impossibilidade de escuta, tempo mínimo de atenção, precariedade de recursos, incapacidade de lidar com a proliferação de mal-estar que está em busca de tropeços em lugar de abrigo.

No plano terrestre, o transbordamento se expressa como um sentimento generalizado de “cruzar todos os limites”: emergência climática, depredação geral, destruição de ecossistemas. O colapso é ao mesmo tempo psíquico, social e ecológico. Corpos exaustos, laços estressados, terra arrasada. A exaustão é o sintoma, ninguém aguenta mais. Mas isso é sintoma de quê?

A pulsão demente do capital prevalece agora sobre a pulsão conservadora. As condições de mercado substituem as condições estatais, a desregulamentação substitui a regulação. Tanto nas instituições de vínculo social, quanto na relação consigo mesmo e com o mundo. Somos engrenagens que aceleram cada vez mais o próprio movimento que destrói a sua vida. Aquela voracidade que nunca encontra paz ou descanso, aquela agitação ou inquietação permanente, de nunca estar em casa, aquela impaciência ansiosa, aquela relação de consumo com tudo, tudo isso é o que carregamos junto do nosso corpo.

O hamster está na roda. Mas cadê o freio de emergência?

Política do desejo, política de Eros

A utopia neoliberal é o encontro definitivo entre a vida e o capital, mas o mal-estar resiste e insiste. O sintoma não é eliminável.

A nova direita pode ser entendida justamente como a “negação dos sintomas”. Negação da exaustão, da impotência, de tudo o que não encaixa e dói. Negação das mudanças climáticas, da violência contra as mulheres, das desigualdades sociais. Captam a dor e o sofrimento, o desconforto e a rejeição, que é a sua força libidinal, mas ao mesmo tempo reintroduzem-na numa lógica de vitimização. “Alguém será culpado pelo que acontece comigo”: as pessoas trans, os desafortunados, os ambientalistas. Sustentam, assim, o mesmo sistema que fabrica a agitação em quantidades industriais.

É possível quebrar a conexão diabólica entre o princípio do rendimento e nossa energia física e inconsciente? Acalmar os comandos mortificantes e mortais do superego? Deixar de ser o hamster na roda? Ter uma relação diferente com desconforto, não vitimizada e negadora, mas afirmativa e criativa. Tomar conta da dor como energia de transformação e alavanca de mudança.

Freud supunha que o saber-fazer com mal-estar (o que ele chamava de “sublimação”) só estava ao alcance de alguns indivíduos brilhantes, como Michelangelo ou Leonardo. Desconfiava das massas, nas quais via apenas um fenômeno de regressão, de submissão a um novo pai, de autoabolição da singularidade. Ele não pode ser culpado já que as massas fascistas o perseguiram. Mas um movimento coletivo pode desempenhar a função de elaborar criativamente o mal-estar. Está comprovado historicamente. Não só Leonardo ou Michelangelo, mas também João ou Paulo. Ou seja, qualquer um. Pensamos no punk sem ir muito longe: não seria um trabalho alquímico com o mal-estar da época capaz de transformar o desespero em um modo de vida, um desafio ao estabelecido, a novas belezas e novos encontros?

As políticas do desejo, que aqui pensamos com a ajuda de Herbert Marcuse, Jean-François Lyotard ou Franco Berardi (Bifo), são precisamente formas de sublimação criativa, nem compensatórias nem repressivas, nem vitimistas nem revanchistas. Modos de saber-fazer com mal-estar que não são simplesmente autorreferenciais e privados, cada um isolado com sua própria neurose, mas sobretudo comuns e devidamente compartilhados. Sob a prática política, uma prática terapêutica, estética, erótica. Uma mutação antropológica da força de Eros.

“Só o amor nos liberta da repetição”, diz Jorge Luis Borges. “Só Eros pode subjugar a pulsão de morte”, explica Freud. “Só o amor pode condescender com o gozo no desejo”, sugere Lacan. A destrutividade de nossa cultura ocidental não é apenas institucionalizada, mas também foi já psiquicamente incorporada. Na adesão e fascínio pela força bruta, na indiferença e crueldade para com as populações supérfluas e os seres humanos em geral, no sentimento de culpa permanente e endividamento para com os mandamentos do superego. Só Eros pode falar com o escorpião. É o único freio de emergência capaz de interromper a corrida louca do hamster em sua roda.

Transformar a luta pela existência (struggle for life) que compõe tão decisivamente a vida no Ocidente – na forma de uma guerra de conquista de si mesmo, dos outros e do planeta Terra por meio do trabalho – em pacificação da existência. Que se suprima o mandamento da performance, por meio da aquietação do cada vez mais gozo, ou ainda por meio de uma atividade criativa e significativa que carrega a recompensa em si mesma. Pare de “ganhar a vida” – a vida como um troféu em um mundo considerado um campo de batalha – mas comece a viver.

*Amador Fernández-Savater é jornalista, editor e ativista social. Autor, entre outros livros, de Fuera de Lugar (A. Machado Libros).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Referência


Amador Fernández-Savater. Capitalismo libidinal. Por Amador Fernández-Savater. Barcelona, Ned Ediciones, 2024, 224 págs. [https://amzn.to/43jJHDE]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES