Por SERGIO SCHARGEL*
Jair Bolsonaro não é conservador: é hora de tratar o bacilo pelo seu verdadeiro nome
Há alguns conceitos em teoria política que caem em desgraça, ao passo em que outros são utilizados excessivamente. Reacionarismo e fascismo são dois que estão nesse primeiro grupo, esquecidos e substituídos por aberrações teóricas, em geral acoplados com um prefixo desnecessário como “ultra” conservador. Pois não, Jair Bolsonaro não é conservador. Aliás, poucos políticos poderiam ser tão antitéticos em relação ao conservadorismo do que Jair Bolsonaro. Mas por quê?
É claro que conceito nenhum é estanque, congelado em uma interpretação unívoca. Liberalismos, socialismos, conservadorismos, fascismos e em diante são plurais, em permanente mutação. Pois, por exemplo, o liberalismo estadunidense é absolutamente distinto do liberalismo europeu. As ideologias e conceitos mudam dentro de si próprios, como foi o caso do fascismo italiano, que surge com um viés progressista, experimenta um período liberal, abraça o imperialismo e o corporativismo e, por fim, se funde ao nazismo.
Dito isso, é natural que o conservadorismo se altere infinitamente. Mas é preciso, quando se trabalha com esses conceitos, ideologias e noções, apreender suas interseções. São elas que permitem, mesmo com todas as diferenças, compreendê-los. É essencial, portanto, quando se desloca um conceito político de sua manifestação original, trabalhar com pontos de interseção, bem como com as dissidências.
No caso do conservadorismo, é preciso alguns pressupostos. Se tomarmos Edmund Burke e Joseph de Maistre, respectivamente como pais do conservadorismo e do reacionarismo, como comumente o são, então o conservadorismo se pauta pela oposição a uma ruptura baseada em abstracionismos, que quebre a noção que entende por verossimilhança, mas que não rejeite mudanças lentas e graduais. Como Edmund Burke diz, um “Estado onde não se pode mudar nada, não tem meios de se conservar. Sem meios de mudança, ele arrisca perder as partes de sua Constituição que com mais ardor desejaria conservar”.
Há, no conservadorismo, uma valorização do presente. Entende que as sociedades humanas não são perfeitas, mas também nunca o serão, e que a política é fruto do trabalho e dedicação de milhares de pensadores anteriores, de modo que essa construção coletiva não deve ser descartada em favor de um suposto ideal construído por um indivíduo. A verdadeira liberdade, portanto, decorreria dessas instituições e dessa construção gradual, que conectaria o passado, presente e futuro, os mortos, os vivos e os ainda por nascer.
Conservadorismo não é o único conceito referente ao pensamento de direita. Por algum motivo, criou-se um tabu em torno de dois outros conceitos: reacionarismo e fascismo. Como se, por algum motivo, eles não mais existissem no contemporâneo, mas fossem manifestações limitadas a experiências ultrapassadas. Ainda que as fronteiras muitas vezes não sejam tão claras, existem divisões nítidas entre esses três conceitos.
O reacionarismo é uma espécie de conservadorismo mais intenso. É justamente o que, sob o malabarismo midiático, se tornou “ultra” conservadorismo. Se a utopia do conservador está sobre o presente, para o reacionário o futuro reside no passado. Ele enxerga o presente – e as instituições que decorrem dele – como degenerado, fracassado, corrupto. Nesse mesmo sentido, o passado é idealizado e é empregada uma reação, ao menos retórica, sobre uma tentativa de retorno. O conservador pode facilmente estar incluído dentro do espectro democrático, o reacionário dificilmente. Há, em sua própria essência, uma rejeição dos princípios de democracia agonística, da ideia de uma permanente disputa entre grupos legítimos.
Também temos o fascismo. Talvez dos três o conceito mais controverso e certamente o mais difícil de compreender, dado suas diversas interpretações e a sua existência historiográfica como movimento e regime. Há os que entendem que é preciso um conceito genérico para o fascismo, considerando-o como a maior invenção política do século XX; mas há os que o limitam apenas à sua versão histórica. Seja como for, o fato é que o fascismo, histórico ou conceitual, não pode, por sua própria essência, ser conservador. A retórica de Benito Mussolini e Plínio Salgado é explícita: eles não desejavam conservar, manter, mas retornar. Para ambos a nação se encontrava em estado putrefato, capturada por forças corruptoras como o comunismo, o liberalismo e a democracia. E apenas com suas respectivas lideranças seria possível retomá-la à grandeza. Qualquer semelhança com o contemporâneo não é coincidência.
Jair Bolsonaro não é muito diferente. É possível até argumentar que Jair Bolsonaro não seja fascista, desde que o conceito de fascismo seja limitado à sua versão italiana de 1920 a 1940 – por mais que, como foi dito, o próprio fascismo se alterou enormemente em seus 20 anos de existência. Mas nem sob o melhor dos malabarismos seria possível classificar Jair Bolsonaro e seu séquito como conservador. Pois nada é mais sintomático do que um programa de governo chamado Projeto Fênix, do que um Messias que propõe o renascimento nacional. E o nome disso não é “ultra” conservadorismo, pois “ultra” conservadorismo é antitético ao conceito de conservadorismo. Jair Bolsonaro tem outro nome: reacionário. Isso na melhor das hipóteses, para não chamá-lo de fascista.
Não é só coincidência que um Messias do Brasil de 2022 flerte em tantas oportunidades com o nazifascismo, cite Mussolini, invente um avô que supostamente teria lutado por Hitler, recicle lemas como “Deus, pátria e família” e “Deutschland über alles”. Jair Bolsonaro não é conservador, tampouco apenas populista. É preciso chamar o bacilo pelo seu nome. Chamá-lo de conservador é falso, chamá-lo de populista não dá conta do movimento, pois o ex-presidente é muito mais do que só isso.
Com nossa democracia fragilizada após quatro anos de ataques, é sempre relevante lembrar do método Mussolini: depenar uma galinha, pena por pena, até não sobrar nada. A captura da democracia para ser utilizada na morte da própria democracia não é um fenômeno novo, mas uma característica tipicamente fascista de fragilização lenta das instituições. O golpe de Mussolini, afinal, somente ocorreu de fato em 1926, quatro anos depois de ter sido nomeado chefe de governo. A segunda eleição para o parlamento desde que assumiu o cargo se mostrou crucial para o seu autoritarismo, enfim o permitindo concentrar o poder necessário para instalar uma ditadura explícita. Com esforço, o Brasil rejeitou seguir o mesmo caminho.
*Sergio Schargel é doutorando em ciência política pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
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