Considerações sobre o marxismo ocidental

image_pdf

Por RICARDO MUSSE*

Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson

1.

Editor da New Left Review e uma das principais lideranças da Nova Esquerda inglesa, Perry Anderson realiza um balanço da tradição marxista em Considerações sobre o marxismo ocidental. O livro, escrito em 1974, carrega as marcas da época, em especial a expectativa de continuidade da voga revolucionária iniciada pelo Maio de 68, pelas manifestações contra a Guerra do Vietnã e pela Revolução dos Cravos em Portugal.

Essa conjuntura explosiva reverteu-se rapidamente, com a prevalência dos fatores de estabilização do capitalismo, enfraquecendo sobremaneira a perspectiva a partir da qual o autor critica o “marxismo ocidental”, variante oposicionista predominante na Europa na era do “capitalismo organizado”. O próprio Perry Anderson, em escritos posteriores, dedica-se ao exame de temas culturais, filosóficos e estéticos, aproximando-se assim do enfoque que condenara no marxismo europeu.

As modificações históricas dos últimos decênios concederam uma nova atualidade a Considerações sobre o marxismo ocidental. A reestruturação das formas de produção e domínio no interior do capitalismo, indícios da emergência de uma nova fase desse modo de produção, o desmoronamento do “socialismo estatal”, vigente no Leste Europeu, depois de 1989, ao mesmo tempo em que sepultaram o até então predominante “marxismo soviético” (também chamado de “marxismo-leninismo”) revigoraram a vertente abordada nesse livro.

É, portanto, como apresentação das coordenadas gerais do “marxismo ocidental” que o livro de Anderson ainda desperta interesse. Seu mérito principal assenta-se em sua metodologia, predominantemente histórica. A maior parte dos autores que aborda essa linhagem do marxismo procura explicá-lo a partir de uma presumível unidade lógica-teórica (caso de Maurice Merleau-Ponty e Jürgen Habermas) ou por meio de uma abordagem sociológica (como Alvin Gouldner, Russell Jacoby, Martin Jay e Michael Löwy) ou como resultado de uma tradição intelectual nacional (George Lichteim, Andrew Arato e Paul Breines).

Nem por isso, Perry Anderson escapa da armadilha de tentar atribuir “a posteriori” (post hoc) unidade a um movimento que se desenvolveu de forma independente e sem plano preestabelecido. Sua exposição estrutura-se como uma peça em dois movimentos. Primeiro, busca determinar as estruturas formais que permitem definir o marxismo ocidental como uma tradição intelectual comum, a despeito de suas divergências e oposições internas. Uma vez estabelecidas as coordenadas estruturais, promove, em seguida, um balanço histórico, confrontando as premissas e o legado do marxismo ocidental com as gerações anteriores.

2.

Antes mesmo de tentar qualquer tipo de comprovação da veracidade de uma provável unidade teórica ou formal subjacente ao marxismo ocidental, Perry Anderson vê-se forçado a adiantar os nomes dos componentes. Nessa antecipação (construída de forma a não comprometer o seu posterior esforço em destacar constantes estruturais) apoia-se no critério geográfico embutido no próprio nome (ocidental) para selecionar autores apenas entre alemães, franceses e italianos.

Na verdade, mais que a determinação dos locais onde se efetuou a formação e a atuação política desses intelectuais, o fator principal privilegiado por Perry Anderson foi a data de nascimento ou tudo aquilo que contribui para constituir uma nova “geração”. Afinal, sua escolha dos componentes só se torna factível ao se inserir numa série que expõe de forma breve e instigante a evolução do materialismo histórico (desde Marx e Engels) sob a forma de uma sucessão de gerações.

No entanto, o deslocamento produzido por essa nova configuração intelectual (em seus termos: a mudança do eixo da análise econômica e política para a crítica filosófica e cultural), não se explica por critérios geracionais ou geográficos. Consciente da insuficiência de uma interpretação assentada apenas na origem (seja social-familiar, cronológica ou territorial) de seus membros, Perry Anderson aduz uma outra consideração, que logo prepondera sobre as demais: o divórcio dessa geração com a prática política.

Esta primazia, além de tornar mais verossímil sua seleção, justifica-se não só pelo caráter, eminentemente histórico, da explicação, mas também por que resulta de uma comparação, em bloco, do marxismo ocidental com a geração anterior. Assim, a tese de que essa linhagem se definiu por meio de uma ruptura entre a teoria e a prática legitima o balanço histórico de Perry Anderson.

Entretanto, independentemente das premissas e da veracidade desse balanço impõe-se a seguinte objeção: como agrupar no mesmo bloco autores avessos à vida e à luta partidária – como Max Horkheimer, Lucien Goldmann ou Theodor Adorno – e importantes dirigentes políticos (participantes ativos e até mesmo organizadores de derrotadas insurreições revolucionárias) como Lukács, Korsch e Gramsci?

3.

Perry Anderson não ignora essa questão. Para respondê-la, divide os membros do marxismo ocidental em dois grupos. Composto pelos intelectuais que se formaram politicamente ou se radicalizaram por efeito da Primeira Guerra e das insurreições que lhe seguiram (1917-23), um deles teria entre seus integrantes Georg Lukács, Karl Korsch, Herbert Marcuse, Walter Benjamin e Antonio Gramsci.

Agrupando aqueles que atingiram a “maturidade” mais tarde e foram formados politicamente pelo avanço do fascismo e pela Segunda Guerra, o outro conjunto conteria Max Horkheimer, Galvano Della Volpe, Henri Lefebvre, Theodor Adorno, Jean-Paul Sartre, Lucien Goldmann, Louis Althusser e Lucio Colletti.

Entretanto, embora não falte a Perry Anderson consciência das vicissitudes históricas ele extrai poucas conseqüências do fato de que “duas grandes tragédias, fascismo e stalinismo, de maneiras tão diferentes, se abateram sobre o movimento operário europeu no período de entre guerras”, forjando um novo padrão para a tradição marxista.

A destruição das organizações partidárias, a integração do proletariado, a regulação keynesiana levaram os marxistas a privilegiar o exame dos fatores de estabilização da sociedade burguesa, buscando entender os motivos do “consentimento popular institucionalizado em relação ao capital no Ocidente”.

*Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Trajetórias do marxismo europeu (Editora da Unicamp). [https://amzn.to/40ZkKMz]

Referência


Perry Anderson. Considerações sobre o marxismo ocidental. Tradução: Fábio Fernandes. São Paulo, Boitempo, 2019, 214 págs. [https://amzn.to/48peDGL]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
7
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
8
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
11
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
12
A esquerda radical deveria apoiar Lula desde o primeiro turno. Por quê?
04 Dec 2025 Por VALEIRO ARCARY: O voluntarismo não é bom conselheiro. Ideias revolucionárias são poderosas e podem colocar em movimento milhões de pessoas até então desesperançadas. Mas é imprudente desconhecer a impiedosa força da realidade objetiva.
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
15
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES