Marxismo sem utopia

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO MUSSE*

Considerações sobre o livro de Jacob Gorender

Sob muitos aspectos, Marxismo sem utopia é um livro notável. Diferentemente do usual na tradição do marxismo local, não busca adaptar as teorias de Marx e de seus seguidores à especificidade brasileira nem destacar as singularidades de nossa formação social (assunto abordado com brilhantismo por Jacob Gorender em O escravismo colonial). Propõe-se nada mais nada menos que atualizar o próprio marxismo. Sintoma de maturidade intelectual (do autor e do marxismo brasileiro), mas também de lucidez diante dos impasses da prática e da teoria depois da derrocada do socialismo do Leste europeu e da ascensão do neoliberalismo.

A flexibilidade, implícita no projeto de revisar as teses marxistas levando em conta a atual situação do mundo, destoa do disseminado dogmatismo de teóricos e militantes de esquerda e não deixa de ser inesperada (apesar de sua trajetória heterodoxa) em um antigo membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro. Tampouco é comum – numa época em que prevalecem expectativas de curto prazo – a atitude de elaborar propostas que assumidamente só poderão ser efetivadas pelas gerações futuras.

Por fim, o leitor haverá de se surpreender com a riqueza enciclopédica do livro. Encontram-se lá sumariados, com clareza, didatismo e uma espantosa capacidade de destacar o essencial: (i) as discussões contemporâneas acerca de temas como os desdobramentos do capitalismo no século XX, (ii) a história da tradição marxista e do “socialismo real”; (iii) a dita globalização e tudo que afeta a atualidade e o futuro do mundo do trabalho; (iv) a situação presente das classes, dos partidos e do Estado, bem como suas mútuas relações; (v) o debate acerca da pertinência da teoria de Marx acerca da extração da mais-valia, da queda tendencial da taxa média de lucro e das crises de superprodução; (vi) a questão da transição e das características da sociedade socialista etc.

A construção enciclopédica do livro nos esclarece sobre a variante do marxismo retomada por Jacob Gorender. A organização do legado de Marx como um sistema aberto, atento às discussões internas nos diversos campos do saber, foi a estratégia utilizada por Friedrich Engels para atualizar o materialismo histórico após a morte de Marx. Nessa versão, denominada “socialismo científico”, ascendeu ao primeiro plano a dicotomia ciência/utopia presente no título e retomada no decorrer do livro.

No que tange ao método, Jacob Gorender está mais próximo de Eduard Bernstein, um discípulo de Engels que, levando ao pé da letra a associação entre marxismo e ciência, não hesitou em adotar como fio a tese de que “Marx desviou-se da disciplina científica e cedeu a propensões utópicas”. A proximidade entre Eduard Bernstein e Jacob Gorender, no entanto, é puramente formal. Como a convergência entre teoria e prática, método e política é ainda apenas um ideal, Jacob Gorender pôde retomar o mote a partir do qual Eduard Bernstein procedeu à revisão do marxismo e, ao mesmo tempo, rejeitar peremptoriamente o reformismo social-democrata preconizado por ele. Mas nem por isso está imune, por exemplo, às críticas metodológicas que György Lukács endereçou a Eduard Bernstein em História e consciência de classe, particularmente à ilusão de que a simples seleção dos fatos relevantes já não contenha uma interpretação.

Para Jacob Gorender, a fonte dos equívocos de Marx e do marxismo, dado fundamental que o impele a revisar essa tradição, seria a constatação de que, ao contrário do que sempre se supôs, “o proletariado é ontologicamente reformista”. Para corroborar o que considera uma evidência, recorre ao artigo “Século Marxista, Século Americano” de Giovanni Arrighi (em A ilusão do desenvolvimento, Vozes) que destaca a cisão do marxismo em movimentos reformistas no centro e revolucionários na semi-periferia do capitalismo.

Entretanto, o que preocupa Giovanni Arrighi não é uma definição sobre o caráter ontológico da classe operária, mas sobretudo o fato de que a desigualdade do sistema interestatal (entre os países do núcleo orgânico e os demais) parece ter determinado a ação do proletariado mais fortemente que o objetivo socialista. Isto é, a classe operária das nações do centro esforça-se por manter a posição privilegiada de seu país, enquanto os trabalhadores da periferia anteviram (equivocadamente) na revolução um meio de alcançar o padrão dos países centrais.

Diante desse dilema não basta propor a substituição da força social preponderante no processo revolucionário, como fez Jacob Gorender ao apostar suas fichas nos assalariados intelectuais (os assim chamados “colarinhos brancos”). A existência de um sistema interestatal hierarquicamente estruturado e imune a alterações tornou-se uma questão incontornável para quem quiser propor modificações no modo de organizar o mundo, sejam marxistas ou não.

*Ricardo Musse é professor no Departamento de Sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de Émile Durkheim: Fato social e divisão do trabalho (Ática).

Versão modificada de artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 6 de fevereiro de 2000 [http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0602200012.htm].

Referência


Jacob Gorender. Marxismo sem utopia. São Paulo, Ática, 1999, 288 págs.


Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Luís Fiori Marilia Pacheco Fiorillo Andrew Korybko Marcelo Módolo Marcus Ianoni Daniel Brazil Luciano Nascimento José Costa Júnior Gabriel Cohn Carlos Tautz Ari Marcelo Solon Walnice Nogueira Galvão Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Carlos Loebens Luiz Bernardo Pericás Marjorie C. Marona Julian Rodrigues Leonardo Boff Bruno Machado Jean Pierre Chauvin Slavoj Žižek Henry Burnett Francisco Fernandes Ladeira Eleonora Albano Yuri Martins-Fontes Milton Pinheiro Michel Goulart da Silva Armando Boito Denilson Cordeiro Lorenzo Vitral Luiz Carlos Bresser-Pereira Andrés del Río Mário Maestri Tadeu Valadares Alexandre de Freitas Barbosa Fernando Nogueira da Costa José Raimundo Trindade Osvaldo Coggiola Antonio Martins João Paulo Ayub Fonseca Airton Paschoa Paulo Fernandes Silveira Fernão Pessoa Ramos Ricardo Abramovay Alexandre de Lima Castro Tranjan Gilberto Lopes Atilio A. Boron Salem Nasser Rodrigo de Faria Francisco Pereira de Farias Daniel Costa Liszt Vieira Antonino Infranca Vanderlei Tenório Lucas Fiaschetti Estevez Otaviano Helene Claudio Katz Caio Bugiato Ricardo Fabbrini Carla Teixeira João Feres Júnior Marcos Silva João Adolfo Hansen Flávio R. Kothe André Singer José Geraldo Couto Annateresa Fabris Renato Dagnino Jorge Branco Paulo Nogueira Batista Jr Vladimir Safatle Celso Favaretto Kátia Gerab Baggio Michael Löwy Matheus Silveira de Souza Ronald León Núñez Luiz Marques Dennis Oliveira Marilena Chauí Chico Alencar Bernardo Ricupero Jean Marc Von Der Weid Alexandre Aragão de Albuquerque Vinício Carrilho Martinez Boaventura de Sousa Santos Érico Andrade Paulo Martins Chico Whitaker Remy José Fontana Gilberto Maringoni Rubens Pinto Lyra Ricardo Musse André Márcio Neves Soares Luis Felipe Miguel Bruno Fabricio Alcebino da Silva Juarez Guimarães João Carlos Salles Eduardo Borges Valerio Arcary Manchetômetro Samuel Kilsztajn Valerio Arcary Dênis de Moraes Leonardo Sacramento Marcos Aurélio da Silva Marcelo Guimarães Lima Anselm Jappe Priscila Figueiredo Luís Fernando Vitagliano Luiz Werneck Vianna Gerson Almeida Ronald Rocha José Machado Moita Neto Eliziário Andrade Igor Felippe Santos Eleutério F. S. Prado Celso Frederico Francisco de Oliveira Barros Júnior Heraldo Campos Lincoln Secco Rafael R. Ioris Elias Jabbour Luiz Roberto Alves Alysson Leandro Mascaro Tales Ab'Sáber Daniel Afonso da Silva Tarso Genro Paulo Capel Narvai Jorge Luiz Souto Maior Ricardo Antunes Leda Maria Paulani Eugênio Trivinho Everaldo de Oliveira Andrade Berenice Bento Luiz Eduardo Soares Luiz Renato Martins Maria Rita Kehl Thomas Piketty Manuel Domingos Neto João Sette Whitaker Ferreira Ronaldo Tadeu de Souza Leonardo Avritzer Paulo Sérgio Pinheiro Eugênio Bucci Flávio Aguiar Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Henri Acselrad Ladislau Dowbor José Micaelson Lacerda Morais Afrânio Catani Sergio Amadeu da Silveira Antônio Sales Rios Neto José Dirceu Benicio Viero Schmidt Fábio Konder Comparato João Lanari Bo Mariarosaria Fabris Bento Prado Jr. Michael Roberts Sandra Bitencourt

NOVAS PUBLICAÇÕES