Coronavírus e pânico financeiro

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Antonio Martins*

O coronavírus serviu de estopim. Ele interrompeu parcialmente as cadeias produtivas de certas indústrias, serviços como aviação e turismo e, em certas localidades, a atividade comercial. Se revela então como o capitalismo financeirizado é tão devastador quanto frágil.

1.

“Nenhum vento ajuda quem não sabe a que porto quer chegar”, escreveu Sêneca, dramaturgo e filósofo estoico, há dois mil anos. A semana do Carnaval foi marcada por dois fatos de enorme profundidade e repercussão – e por um factoide banal e recorrente. O coronavírus espalhou-se pelo mundo, com grandes eclosões na Coreia do Sul, Irã e Itália, e um rastro de novos casos em dezenas de países – inclusive o Brasil, onde já há centenas de suspeitas de contaminação. Em sua garupa, um tremor está sacudindo os mercados financeiros do planeta. As bolsas de valores registram quedas expressivas e seguidas (com grande impacto na de São Paulo). Cresce o risco de uma crise prolongada, capaz de se espraiar pelas cadeias produtivas e atingir os bancos.

Os dois acontecimentos expõem, cada um a seu modo, a desordem global provocada pelo capitalismo em sua etapa financeirizada – e em especial os descaminhos do Brasil, em meio ao caos. Abre-se, portanto, enorme espaço para iniciativas, pedagogia e mobilização política. Mas a ficha não caiu. Bastou um tuíte patife, de um presidente parvo, e a oposição se desviou daquilo que importa e lhe daria força, para se perder, mais uma vez, na agenda do adversário. Há tempo para corrigir o rumo – mas haverá sagacidade e ânimo?

2.

Os vírus não têm, é claro, significação política – mas as epidemias provocadas por eles, sim. A atual torna claro o desastre de uma globalização sem instituições democráticas e sem políticas públicas. Diante de uma possível pandemia, faltam coordenação internacional, órgãos responsáveis, recursos, destacou o insuspeito The New York Times.

A Organização Mundial da Saúde, agência da ONU dedicada ao tema, tenta virar-se com o risível orçamento anual de 2,2 bilhões de dólares – 545 vezes menor do que o aumento de riqueza dos quinhentos maiores bilionários do planeta em 2019. A ausência de ação internacional será sentida na falta de medidas para conter a propagação do vírus pelo mundo, e nas consequências possivelmente trágicas, em países populosos e empobrecidos. Pense em Bangladesh, na Indonésia ou no Haiti.

Mas o coronavírus deixa a descoberto, em especial, as políticas neoliberais de desmonte dos serviços públicos e os governos que aderem a elas. O Brasil, onde Michel Temer e Jair Bolsonaro congelaram o gasto social e mantêm o SUS sob constante ameaça, é um caso clássico. As características particulares da doença exigem sistemas de saúde sólidos e equipados, e Estados capazes de investir com presteza e coordenar políticas.

A letalidade é moderada (em torno de 2% dos infectados); mas a facilidade do contágio é notável; e a necessidade de hospitalização, intensa. O exemplo chinês revela que, nas localidades atingidas, entre 25% e 70% da população pode ser contaminada, quando não há medidas rigorosas de controle. Cerca de 15% dos atingidos necessitam de internação; e 5%, cuidados intensivos. Basta fazer as contas, considerando a população de sua cidade, para constatar a gravidade da ameaça.

Enfrentá-la exige, em particular, três componentes: uma rede hospitalar robusta; medidas de prevenção e isolamento; capacidade de adotar vastas ações emergenciais, como a suspensão das aulas e espetáculos e, muitas vezes, a paralisação de quase todas as atividades produtivas. Reveja a China, onde o coronavírus parece agora regredir. Lá, uma região com 89 milhões de habitantes foi isolada, dois hospitais com mil leitos erguidos em dez dias, toda a população convidada a permanecer em suas casas. Repare também no Hotel Costa Adeje, nas Ilhas Canárias (Espanha), onde a identificação de um único caso levou as autoridades a manter em quarentena estrita 723 hóspedes, autorizados a sair de seus quartos, usando máscaras, apenas para breves refeições.

Nada no Brasil sugere que teremos um esforço semelhante. As autoridades tentam sustentar, com auxílio da mídia, um discurso de falsa tranquilidade – que bloqueia a conscientização e mobilização necessárias. Faltam máscaras e imunoglobina e arrasta-se o processo para adquiri-las no exterior. Os hospitais carecem de aparelhos de ventilação, um equipamento crucial contra a doença. O ministro da Saúde faz declarações estapafúrdias, dizendo esperar que o vírus “tenha comportamento” como na China – sem fazer referência alguma às medidas lá adotadas e aqui ausentes.

De um governo que se empenha em devastar os serviços públicos e que nega a própria Ciência, que se poderá esperar? A mobilização terá de surgir de fora. Mas ela permite, em contrapartida, evidenciar a necessidade de novos rumos. O Brasil constituiu, ao longo de décadas, vasta experiência e conhecimento em Saúde Pública. Ele está expresso, em especial, em centenas de pesquisadores extremamente qualificados, politizados, defensores do SUS, hoje distantes dos órgãos de governo. Não seria difícil mobilizá-los, construir com eles um conjunto claro de respostas à nova emergência, apresentá-las à população, cotejá-las com a paralisia oficial. Combinar denúncia com proposição de alto nível. Informar e mobilizar – inclusive nas ruas.

Abriria o elenco de propostas, certamente, a revogação da Emenda Constitucional 95, que congelou o gasto social por vinte anos. Foi uma decisão central do governo instalado após o golpe de 2016. O ambiente político da época tornou difícil questioná-la. Agora, abre-se uma brecha inédita: a Saúde da população está em risco; todos os esforços para protegê-la são necessários; não é possível aceitar que recursos públicos existentes sejam desviados para a especulação financeira.

As crises sempre geram oportunidade. Mas aproveitá-las exige enxergar e agir.

3.

À medida em que a semana evoluía, ergueu-se uma segunda crise global, estampada com todas as letras nas manchetes da mídia internacional relevante. Os mercados financeiros estão em pânico. As perdas nas principais bolsas de valores aproximam-se dos 15% e já se comparam às dos dias críticos de 2008. Mais: a própria economia será duramente atingida, com risco de falências e demissões em massa. Não está afastada a hipótese de um contágio dos bancos, o que multiplicaria a potência dos desastres. O Brasil, onde a reprimarização da economia vem de longe – mas acentuou-se nos últimos anos – está especialmente fragilizado. Também aqui, vai se abrir um enorme terreno de disputa política.

O coronavírus serviu apenas de estopim. Ele interrompeu parcialmente as cadeias produtivas de certas indústrias – a automobilística, que usa componentes produzidos em diversos países, é o caso típico. Também pode afetar gravemente serviços como aviação e turismo e, nas localidades fortemente atingidas, a atividade comercial. Mas o que se viu nos últimos dias tem raízes muito mais profundas e revela como o capitalismo financeirizado é tão devastador quanto frágil.

A revista The Economist explica. As quedas das bolsas de valores foram provocadas, e devem se propagar, principalmente devido a movimentos especulativos. Enormes fundos globais, que fazem aplicações visando o lucro financeiro sem investimento real, ficaram em situação de desequilíbrio, após sofrer com desvalorização das primeiras ações afetadas. Isso os obrigou a se desfazer de parte dos papéis; mas o porte destas vendas gerou novas ondas de instabilidade, numa reação em cadeia que ainda não foi interrompida.

Começou, então, uma corrida por ativos seguros, em que os grandes fundos tendem a tirar dinheiro de aplicações consideradas de risco. É o caso dos papéis que expressam empréstimos corporativos. Parte das empresas – mesmo as que têm condições de captar recursos nos mercados financeiros globais – passa a ter dificuldades de rolar suas dívidas, podendo tornar-se inadimplentes. Se o processo não é interrompido, os próprios bancos entram na linha de contágio. E a situação se agrava porque houve, nos últimos anos, novo movimento de desregulamentação financeira. Passados os efeitos mais dramáticos da crise de 2008, foram sendo removidos os limites então impostos operações temerárias, que geram grandes lucros e grandes riscos.

Assim como a crise sanitária, o vendaval financeiro e econômico abre imensa janela – tanto para denunciar as políticas em curso quanto para propor sua reversão em massa. O Brasil sofrerá forte impacto, porque em crises globais as vendas e os preços das commodities agrícolas e minerais são os mais expostos. Mas o debate central será sobre o que fazer. A receita neoliberal costumeira é dupla: obrigar a maioria a apertar os cintos; salvar os ricos.

Nada obriga a seguir este script vulgar. O caso norte-americano é o mais eloquente. Bernie Sanders cresceu nas últimas semanas, e tende a avançar ainda mais, ao expor aos eleitores um projeto oposto. Implica ampliar radicalmente os serviços públicos (em particular, a Saúde gratuita…); defender e alargar os direitos sociais; estabelecer a política de Emprego Digno Garantido; tributar os ricos e as corporações; combater fortemente a desigualdade e, em especial, a especulação financeira.

Seu exemplo demonstra: há imenso espaço para uma esquerda disposta a dialogar com as necessidades concretas da população e, ao mesmo tempo, propor mudanças profundas, de sentido pós-capitalista. A crise, com sua enorme potência para colocar em xeque o que parece normal, multiplicará esta condição. Alguém se dispõe a aproveitá-la?

4.

Nos últimos dias, ficou clara a tática velhaca de Bolsonaro em relação às manifestações de ultradireita marcadas para 15 de março. Mais uma vez, são duas caras. Por um lado, ele republicou – mas não assume… – a exortação ao golpe, claramente sugerida pelos organizadores (“Os generais aguardam a ordem do povo”). Por outro, dedica o próprio tempo a chorumelas contra suposta perseguição que diz sofrer por parte da mídia, o Congresso, os governadores, a esquerda – em suas palavras, “os poderosos”. O objetivo é óbvio: alimentar a manifestação, gerando se possível três semanas de polêmica incessante sobre ela. E, em especial, convertê-la no fato mais importante do período, livrando o governo de responder pelas crises que realmente importam e se possível reduzindo-as a fatos secundários.

A suposta “polêmica” com o Congresso, que foi acalentada por uma fala do ministro da Segurança Institucional, general Augusto Heleno, tem como foco as emendas parlamentares impositivas. O Executivo estaria contrariado por ter de empregar parte do Orçamento em despesas que os deputados e senadores criam e o Palácio do Planalto é obrigado a pagar (embora possa protelar).

A falsidade da disputa pode ser atestada por dois fatos simples. As emendas impositivas foram instituídas em 2015 com o voto do então deputado Jair Bolsonaro, e ampliadas em 2019 graças ao apoio do PSL, seu partido de então. Além disso, nenhum presidente liberou mais emendas parlamentares do que Jair Bolsonaro. Foram R$ 5,7 bilhões, em 2019 – 3,04 bi apenas na votação da contrarreforma da Previdência. A liberação é uma espécie de antecipação. Se não ocorre, os valores, embora “impositivos”, podem ficar disponíveis apenas ao final do ano ou cair no buraco negro dos “restos a pagar”. O Executivo mantém, portanto, poder de barganha. E nenhum presidente agradou mais os deputados e senadores que este mesmo, agora fingidamente contrariado…

A encenação de uma disputa falsa com o Congresso é uma patifaria calculada, que, além de desviar a atenção das crises, traz duas vantagens adicionais ao presidente. Primeiro, ele inventa para si um “adversário” fictício altamente impopular – e obtém nova chance de manter a máscara de “antiestablishment”, essencial para sua imagem. Segundo, coloca em sinuca a esquerda, seu inimigo real. Para contrapor-se a Bolsonaro, ela será vista pelas maiorias como aliada dos personagens mais associados à corrupção e que mais têm se empenhando em retirar direitos do povo e prestar favores ao grande poder econômico. Vale lembrar que agora, quando timidamente criticam o capitão, Rodrigo Maia e César Alcolumbre, os presidentes da Câmara e do Senado, o acusam de… tumultuar a tramitação das contrarreformas Administrativa e Tributária. Estas mesmas, que devastam ainda mais os serviços públicos e os direitos sociais…

5.

A opção de enfrentar Bolsonaro no terreno e nos termos que ele propõe é certamente um tiro no pé. A defesa da democracia está entre as causas mais nobres, mas é impossível sensibilizar a maioria da população em favor de um Congresso corrupto e antipopular. As Emendas Parlamentares Impositivas foram asperamente condenadas pela esquerda, quando impostas pelo Legislativo a Dilma em 2015, na forma de uma “pauta-bomba”. Cair na cilada armada pelo capitão significará permitir que ele paute os rumos do debate nacional no exato momento em que é possível expor os desastres concretíssimos produzidos por suas políticas; avançar em temas centrais como Saúde, Direitos Sociais, Trabalho e Serviços Públicos; retomar a iniciativa.

Ainda há tempo para corrigir os rumos. As duas crises – a sanitária e a econômica irão se desenvolver nos próximos dias, e podem aos poucos converter-se em temas inescapáveis. Um conjunto de propostas claras e capazes de desafiar frontalmente o bolsonarismo no terreno em que ele é mais frágil poderá polarizar o debate nacional.

Três jornadas de lutas irão se contrapor, nas próximas semanas, ao ato convocado pela ultradireita para 15/3. Em 8 de março, haverá o Dia Internacional da Mulher. Seis dias depois, a homenagem a Marielle Franco, no segundo aniversário de seu assassinato. Em 18/3, atos em defesa da Educação e dos Serviços Públicos. Qual será o caráter destas manifestações? Que se fará antes e depois delas? Duas hipóteses opostas parecem hoje possíveis.

A primeira é construída em torno do viés reativo e burocratizado que a esquerda institucional assumiu desde a crise do projeto lulista, no governo Dilma – e em particular após o golpe de 2016. Os partidos, e os movimentos que orbitam em torno deles, mantêm o controle. Repete-se a narrativa segundo a qual tudo, inclusive 2013, não passou de uma conspiração das elites.

Fala-se para os convertidos. Morde-se a isca infantil lançada por Bolsonaro. Nos atos – marcados pela presença ensurdecedora dos caminhões de som e a estética igualmente autoritária e rivalista dos enormes balões – a tônica será apenas a defesa contra mais um golpe. Os participantes sairão como chegaram, comentando as falas dos oradores centrais e despreparados para o que virá a seguir.

Na segunda hipótese, aflora outra tradição, que também compõe o repertório da esquerda. Retoma-se o gigantesco #elenão, as ondas feministas, as paradas LGBT+, os atos autoconvocados em repúdio ao assassinato de Marielle Franco, as chegadas dos sem-terra, dos sem-teto e dos indígenas ao centro das metrópoles, as marchas em defesa da Educação de maio de 2019. Os partidos estão presentes, mas o protagonismo é compartilhado com a multidão. Emerge a imensidão criativa de cartazes, de corpos pintados, de cantos e danças.

Acima de tudo, assume-se uma pauta que provoca, ao invés de (ou mesmo para) se defender. As marchas referem-se a uma democracia concreta – que implica o direito da sociedade ao Comum – a saúde, a educação, o trabalho, uma vida digna, uma nova relação com a natureza. Defende-se o Congresso contra as investidas autoritárias, mas fala-se também em reinventar a política com novas formas de participação e ação direta.

Enfrenta-se o bolsonarismo de fato. Inverte-se a dinâmica atual, forçando-o a responder. Cria-se uma situação em que cada participante encara os atos não como um espetáculo onde se assiste ao discurso de personalidades ilustres – mas como um momento onde se compartilham ideias, para tomar em seguida novas iniciativas. Inclusive, porque a luta contra o fascismo será prolongada e precisará de milhões de ativistas permanentemente capazes de falar, escutar o outro, criar.

A batalha em defesa da democracia e de um país respirável parece cada vez mais imbricada com o que a esquerda brasileira quer ser, no século XXI. Uma repetição improvável? Uma recriação possível? Como disse Bertolt Brecht, há quase um século: “não espere outras respostas, além das suas”…

*Antonio Martins é jornalista, editor do site Outras Palavras.

Artigo publicado originalmente no site site Outras Palavras.

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