Jeremy Corbyn entra em campo

Imagem Elyezer Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

A plataforma eleitoral do líder do Partido Trabalhista britânico reconhece a indignação das multidões. Mas em vez de atiçar seu ressentimento, acena com uma enorme transformação social e ambiental

Por Antonio Martins*

Em época especialmente áspera, quando o neoliberalismo teima em não sair de cena e emerge, ao mesmo tempo, uma ultradireita pronta para capturar o sentimento anti-establishment das maiorias – que espaço resta à esquerda? Fazer concessões à aristocracia financeira? Assumir a defesa da ordem burguesa, ameaçada pelos protofascistas?

Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista britânico e personagem incomum na política institucional, acaba de colocar na mesa uma saída audaciosa, que nega as alternativas anteriores. O Manifesto, a plataforma com a qual concorrerá às eleições de 12 de dezembro, reconhece a indignação das multidões, diante de um sistema que as amedronta e as despossui, e de uma “democracia” que já não lhes dá voz alguma. Mas em vez de atiçar seu ressentimento, em falatório hipócrita contra o sistema, acena com uma enorme transformação social e ambiental.

Quer financiá-lo por meio de uma reforma tributária de dimensões históricas e de uma visão heterodoxa sobre finanças públicas. Corbyn tem apenas três semanas para descontar os cerca de 15 pontos percentuais de vantagem que as pesquisas dão a seu rival conservador, Boris Johnson – uma espécie de Donald Trump inglês. Tem contra si o poder econômico e a mídia. Nestas condições, uma eventual virada – difícil, mas não impossível – terá imensa repercussão internacional e abrirá novos horizontes para os que defendem e constroem lógicas pós-capitalistas.

Três eixos essenciais compõem o núcleo do manifesto trabalhista. O primeiro é um choque de direitos sociais – algo já presente na trajetória de Corbyn. Em 2015, ele partiu do quase anonimato, derrotou a velha burocracia do partido e assumiu sua liderança ao propor que o velho Labour reassumisse sua condição de defensor das maiorias, contra a brutalidade do capital.

Quatro anos depois, apresentou um programa vasto e coerente de transformação dos serviços públicos. Quer, por exemplo, o fim das taxas nas universidades públicas – introduzidas, sintomaticamente, por Tony Blair, trabalhista acomodado. Em compensação, acabará com os subsídios à educação privada. Defende a revalorização do Sistema Nacional de Saúde (NHS, inspiração para o SUS), elevando seu orçamento em 4,3% ao ano e tornando novamente públicos os serviços transferidos, ao longo do tempo, a corporações empresariais.

Sugere uma vasta reforma urbana. Quer restaurar o sistema de habitação social que marcou o Reino Unido no pós-guerra, oferecendo um milhão de casas em uma década. Para ajudar a enfrentar a especulação imobiliária e a segregação, proporá que as prefeituras sejam autorizadas a congelar ou mesmo a estabelecer preços máximos para os aluguéis. No programa do Labour, os transportes serão reorganizados, com a garantia de passe livre urbano também para os menores de 25 anos e com a expansão da rede de trens rápidos. Aliás, além das ferrovias, serão renacionalizados a geração de energia, os correios e a banda larga de internet – gratuita para todos, em dez anos. A renacionalização dialoga com a crítica contra a piora generalizada dos serviços entregues à iniciativa privada – um fenômeno global.

Um segundo eixo do Manifesto é de construção mais recente. Corbyn defende uma sólida agenda de transformações ambientais. Mas, em sintonia com o Green New Deal proposto pela deputada latina Alexandra Ocasio-Cortez, nos Estados Unidos, quer dar também a ela sentido social, articulando-a com a ideia de emprego garantido para todos. A lógica é simples. Em ruptura com o descaso paquidérmico dos governos diante do aquecimento global, o Partido Trabalhista tenciona a reduzir drasticamente as emissões de CO² até 2025.

Mas sabe que, para tanto, não bastam apelos à boa vontade individual. Quer fazê-lo por meio de uma transformação da matriz energética do Reino Unido. Sabe que isso exigirá enorme investimento em infraestrutura. Esta necessidade pode ser uma vantagem: permitirá ocupar milhões de trabalhadores, hoje desempregados, na construção de centrais eólicas e solares, na garantia de eletricidade aos que não podem pagar por ela ou na adaptação de 27 milhões de casas a novas tecnologias mais eficientes.

O desdobramento mais importante, contudo, é político. Associar a agenda ambiental à garantia de ocupação para todos permite quebrar a resistência de parte dos trabalhadores (e, em especial, dos sindicatos) às causas ecológicas.

Ao lançar o Manifesto Corbyn referiu-se explicitamente aos trabalhadores na indústria do petróleo – que, segundo o programa trabalhista, deverá ser gradativamente desativada. Propôs que tenham emprego garantido; direito a retreinamento por seis anos; reincorporação às novas centrais de energia limpa. A nova postura abre uma enorme avenida política. Pense, no Brasil, nas milhões de ocupação – das mais elementares às mais sofisticadas – que seriam necessárias à despoluição dos rios, à garantia de saneamento básico para todos ou à construção de metrôs e ferrovias.

O terceiro aspecto central do Manifesto é o financiamento dos dois eixos anteriores. Corbyn propõe um grande esforço para reduzir a desigualdade, por meio de uma reviravolta tributária. Um “livro cinza” anexo ao programa explica de onde virão os recursos para realizar as propostas sociais e ambientais. Em sentido oposto ao neoliberalismo, defende-se o aumento expressivo dos impostos sobre as grandes corporações (especialmente multinacionais); cobrança de tributos suplementares das empresas poluidoras; novos impostos sobre patrimônio (grandes fortunas) e renda (até 50% de desconto sobre os maiores salários).

Há refinamentos: tributos pouco importantes em potência arrecadatória, mas de forte caráter dissuasório: um “imposto milkshake” aos doces e bebidas açucaradas. Uma taxa sobre as embalagens pretende obrigar os produtores de líquidos engarrafados a eliminar os vasilhames descartáveis (como as garrafas pet) e reintroduzir os retornáveis.

Embora o resultado da eleição seja incerto, o caminho percorrido pelo Labour nos últimos quatro anos é notável. Em 2015, além de derrotado eleitoralmente, o partido vivia crise existencial. Os trabalhadores o abandonavam, a militância envelhecia. As campanhas que levaram Corbyn à liderança e lá o mantiveram (ele foi duas vezes derrubado pela bancada parlamentar e, em seguida, reconduzido pelas bases) também resultaram em dezenas de milhares de novas filiações. O fantasma político voltou à vida. Nas eleições parlamentares de 2017, o Labour obteve um resultado surpreendente, que quebrou a maioria absoluta dos conservadores no Parlamento. Sua volta ao governo parecia uma questão de tempo.

O processo foi interrompido, porém, pela intensa polêmica em torno do Brexit. Uma “nova” direita – expressa principalmente pelo atual primeiro-ministro Boris Johnson e por Nick Farage, do Partido Independentista do Reino Unido (UKIP) – passou a apontar a União Europeia (UE) como causa do empobrecimento das maiorias. Os setores populares lhes deram razão.

A frustração aumentou com as divisões e a incapacidade do Parlamento para negociar a saída da UE, decidida num plebiscito em 2016. Assessorado por Steven Bannon, Johnson construiu uma narrativa simplória, por meio da qual divide o país entre o establishment – que resiste a separar-se do bloco europeu – e ele próprio, que supostamente quer garantir o desejo da maioria. Seu programa resume-se, em essência, a concretizar o Brexit. Sua liderança nas pesquisas vem daí.

O Manifesto lançado pelos trabalhistas é também, nesse sentido, uma tentativa de resgatar o debate coletivo sobre o futuro, de livrá-lo das mistificações e fake news, de restaurar o espaço da Política. Por isso, não é só o destino da Inglaterra que estará em jogo nas próximas semanas.

*Antonio Martins é jornalista, editor do site Outras Palavras

Artigo publicado originalmente no site Outras Palavras.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Henry Burnett Manuel Domingos Neto Paulo Fernandes Silveira Sandra Bitencourt Valerio Arcary André Singer Alexandre de Lima Castro Tranjan Tales Ab'Sáber Celso Favaretto Fernando Nogueira da Costa Bruno Machado Gilberto Lopes Mário Maestri Priscila Figueiredo Tarso Genro Mariarosaria Fabris Luiz Bernardo Pericás Érico Andrade Airton Paschoa Eleonora Albano Antônio Sales Rios Neto Daniel Afonso da Silva Lucas Fiaschetti Estevez Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luciano Nascimento Thomas Piketty José Dirceu José Luís Fiori Michel Goulart da Silva Heraldo Campos Liszt Vieira Fábio Konder Comparato Ricardo Fabbrini Maria Rita Kehl Ronald León Núñez Armando Boito Celso Frederico Rafael R. Ioris Chico Whitaker Ricardo Abramovay Andrew Korybko Luís Fernando Vitagliano João Feres Júnior Renato Dagnino Otaviano Helene Matheus Silveira de Souza Valerio Arcary João Carlos Loebens Luiz Carlos Bresser-Pereira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Silva Andrés del Río Gerson Almeida Ladislau Dowbor Luiz Marques João Sette Whitaker Ferreira João Carlos Salles Afrânio Catani Elias Jabbour Ronaldo Tadeu de Souza Denilson Cordeiro Tadeu Valadares Milton Pinheiro Eugênio Bucci Jean Pierre Chauvin Michael Roberts Fernão Pessoa Ramos Igor Felippe Santos Francisco de Oliveira Barros Júnior Leda Maria Paulani Luiz Roberto Alves Boaventura de Sousa Santos Jorge Branco Eliziário Andrade Leonardo Avritzer Marjorie C. Marona Ricardo Musse Antonino Infranca Ari Marcelo Solon Francisco Pereira de Farias Gabriel Cohn José Costa Júnior Annateresa Fabris Paulo Martins Marilia Pacheco Fiorillo Osvaldo Coggiola Luis Felipe Miguel Walnice Nogueira Galvão Slavoj Žižek Ronald Rocha Vinício Carrilho Martinez Leonardo Sacramento Dennis Oliveira Carla Teixeira Daniel Brazil Manchetômetro Dênis de Moraes Luiz Werneck Vianna José Micaelson Lacerda Morais Sergio Amadeu da Silveira Francisco Fernandes Ladeira Jorge Luiz Souto Maior Anselm Jappe Yuri Martins-Fontes Eleutério F. S. Prado Julian Rodrigues Vladimir Safatle Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ricardo Antunes Lorenzo Vitral Atilio A. Boron Leonardo Boff Salem Nasser Paulo Sérgio Pinheiro José Geraldo Couto João Lanari Bo Eduardo Borges Alysson Leandro Mascaro Lincoln Secco José Machado Moita Neto Paulo Nogueira Batista Jr Benicio Viero Schmidt Rubens Pinto Lyra Juarez Guimarães Caio Bugiato Kátia Gerab Baggio Flávio Aguiar Bernardo Ricupero Gilberto Maringoni Samuel Kilsztajn Marcelo Módolo Rodrigo de Faria Luiz Eduardo Soares Alexandre de Freitas Barbosa Vanderlei Tenório José Raimundo Trindade Daniel Costa Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Capel Narvai Luiz Renato Martins Henri Acselrad Bento Prado Jr. Eugênio Trivinho João Adolfo Hansen Marcelo Guimarães Lima Marcus Ianoni Marilena Chauí André Márcio Neves Soares João Paulo Ayub Fonseca Antonio Martins Remy José Fontana Flávio R. Kothe Berenice Bento Carlos Tautz Alexandre Aragão de Albuquerque Chico Alencar Jean Marc Von Der Weid Marcos Aurélio da Silva Michael Löwy Claudio Katz

NOVAS PUBLICAÇÕES