Coronéis de milícias

Imagem: Max Fleischmann
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Por ARACY P. S. BALBANI*

A crítica à cultura punitiva e a defesa de um debate qualificado sobre segurança pública evidenciam que a violência policial e a letalidade estatal são heranças perversas de nossa estrutura social arcaica, que precisa ser urgentemente superada

“O Vito tinha duas qualidades que são qualidades excepcionais quando alguém se diz militante político na luta por uma sociedade mais justa: alegria e coragem. Então eu acho que é isso que estamos precisando” (Orlando Zaccone).

1.

A tese de doutorado defendida por Orlando Zaccone D’Elia Filho na Universidade Federal Fluminense em 2013, muito bem escrita e que originou um livro com o mesmo título, é sempre uma rica fonte de inspiração. Nela encontramos críticas consistentes do autor para tentar compreender a violência – tanto a do crime organizado quanto a de parte das forças policiais brasileiras –, e para buscar soluções civilizadas para a questão da segurança pública.

Destacamos algumas visões importantes do assunto, apresentadas nessa obra de Orlando Zaccone: “contribuir com um olhar crítico que revele a opção política, inserida na cultura punitiva do nosso país, que nos afasta da pena de morte e nos aproxima da morte sem pena”.

“A militarização da segurança pública, ao produzir a pacificação de territórios segregados, passa a constituir uma ‘legalidade autoritária’, que se processa como permanência histórica, a ensejar decisões de incremento da letalidade estatal, no marco de uma cultura punitiva de extermínio daqueles que se opõem ao modelo jurídico-institucional.” “A sociedade brasileira se moderniza sem abrir mão do arsenal de maldades do absolutismo e da escravidão”.

Na sociedade cruel em que cidadãos bem-nascidos agridem mulheres ou matam trabalhadores e depois vão malhar em academias de ginástica, e PMs atiram, por engano, e pelas costas, na cabeça de jovens negros inocentes que estavam no caminho entre a casa e o trabalho, fica a sugestão para ler essa tese.

O livro correspondente deveria ser reeditado com grande número de exemplares, para que o debate sobre segurança no Brasil seja qualificado, e não se limite às águas rasas e turvas do clichê troglodita “bandido bom é bandido morto”.

2.

Até o documento trôpego sobre violação de direitos humanos no Brasil publicado há poucos dias pelo (des)governo de Donald Trump mencionou o massacre perpetrado na Operação Escudo na Baixada Santista em 2023 pela polícia do Governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e de seu Secretário de Segurança Guilherme Derrite (PP-SP).

A situação de Tarcísio de Freitas e Guilherme Derrite se complicou. Governador, Secretário e seus familiares terão os vistos para entrar nos EUA cancelados por ordem de Donald Trump?

Na sequência, quando estourou o escândalo bilionário de sonegação investigado pelo Ministério Público paulista, o governador prometeu usar a “mão pesada” contra fraudes na Receita Estadual.

Se essa investigação de Tarcísio de Freitas começar por proprietários de imóveis em condomínios de luxo em Porto Feliz – dizem que alguns seriam vizinhos do próprio governador – e nos municípios adjacentes, vai se chamar Heavy Hand ou Operação Bandeirantes, rememorando a famigerada Oban da ditadura militar?

Try your hand. Melhor dizendo: responda quem puder.

No dia 16/07, Hugo Motta, Presidente da Câmara dos Deputados, determinou a instalação de uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 18/25, apresentada pelo Governo Federal para constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

Desmoralizado, não só por não mandar esvaziar a Mesa Diretora ocupada por duas dezenas de parlamentares baderneiros antes de ir se sentar na cadeira da Presidência – o que quase lhe custou o vexame de dividir o assento com um arruaceiro –, mas também ao ser denunciado por empregar o caseiro da própria fazenda como assessor de gabinete na Câmara, Hugo Motta vai ter de encontrar uma brecha na agenda para fazer a pauta da PEC 18/25 avançar antes que o crime organizado e a violência policial dizimem o eleitorado indefeso.

Do contrário, pode sobrar pouca gente maior de 16 anos viva e disposta a sair de casa para eleger governadores, deputados e senadores em 2026. Pois é. Eleitor bom é eleitor vivo e seguro, senhor presidente Hugo Motta.

3.

Uma jovem deputada estadual, cujo nome sequer merece ser lembrado, encabeça a “Frente Parlamentar de Apoio às Mulheres Virtuosas” na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. A dita parlamentar apresenta-se como “defensora do armamentismo e da mulher”. Um perfil desse, convenhamos, é uma dose cavalar da filosofia profunda de Mario Quintana direto na veia. Foi o poeta gaúcho que disse: “Quem nunca se contradiz deve estar mentindo”.

Diante da notícia “Mulher esfaqueada pelo ex carregava medida protetiva no momento do crime; foto mostra documento manchado de sangue”, questionamos a parlamentar por escrito em 31/03/2024. Afinal, essa e muitas outras ocorrências registradas no Estado de São Paulo evidenciam que as políticas de segurança pública ainda deixam a desejar na proteção efetiva das mulheres contra a violência, mesmo das que já estão sob medida protetiva judicial.

Já que o custo elevado da contratação de segurança privada armada – legalizada, evidentemente – torna essa opção inviável para as mulheres virtuosas pobres e da classe média, residentes e contribuintes no Estado de São Paulo, o que a Frente Parlamentar coordenada por Sua Excelência propõe para remediar, no curtíssimo prazo, a carência na nossa proteção contra a violência?

Quase 17 meses depois, a deputada ainda não respondeu a nossa pergunta. Porém, outras centenas de mulheres foram agredidas, estupradas ou assassinadas no Estado.

Notícias recentes apontam que crimes cibernéticos superam furtos e roubos e já vitimaram mais de 24 milhões de brasileiros. Na Itália, criminosos invadiram sistemas de informática de hotéis e roubaram as imagens e informações de passaportes e outros documentos de milhares de turistas. Os dados das vítimas foram vendidos na darkweb.

Roubo de dados pessoais, fotos, vídeos ou textos. Inserção de mensagens ofensivas, pornográficas ou ameaçadoras em aplicativos de mensagens. Fraudes bancárias. Clonagem de celulares. O leque de ilicitudes cometidas via computador ou smartphone é amplo.

Tão covardes e perigosos quanto os demais meliantes, os bandidos que se escondem atrás de telas e seus mandantes também podem se apresentar como defensores de Deus, da família, da pátria e da liberdade. Não passam de hipócritas.

Vai saber se usam crachá, farda ou distintivo policial, andam em carro oficial e cometem os crimes virtuais usando um acesso livre a estruturas da administração pública. Atualmente, a terceirização de serviços públicos para intermediários privados escancara avenidas virtuais até os dados sensíveis da população.

Não basta nacionalizar os programas e aplicativos de uso governamental para restringir o acesso das big techs estrangeiras aos dados dos cidadãos brasileiros e dos nossos setores estratégicos e de defesa.

Assim como se exigem bons antecedentes para ingressar mediante concurso público e permanecer na Polícia Federal, é preciso estabelecer os mesmos critérios de admissão e monitorar continuamente a atuação dos servidores públicos, civis e militares, que usam ou controlam sistemas de informática nos Três Poderes em todo o país.

Não se trata apenas de dados, de sistemas de defesa nacional ou de dinheiro. Estamos falando de vidas humanas.

4.

Maquiavel já dizia que o desejo dos grandes é oprimir e comandar. Em vários escalões da República, latifúndios e grandes empresas, muita gente se regozija em usar o poder político ou econômico até se lambuzar. Esse comportamento narcisista e sádico, típico de coronéis escravocratas, é replicado, inclusive, em fabriquetas familiares, botecos de esquina e biroscas de praia.

Quando os fins parecem justificar os meios, não há limites. Vale tudo: trair a/o cônjuge; chantagear; aplicar rasteira em parentes ou sócios; assediar funcionários; falir empresas; intimidar opositores; subornar agentes públicos; fraudar balanços contábeis; forjar provas contra adversários; espionar e sabotar concorrentes, etc.

Quanta coisa perversa cabe nesse et cetera. Até empurrar a esposa ranzinza, o cunhado chato e os descendentes gamers mimadinhos para disputarem cargos eletivos quando o político profissional destacado da família está inelegível, após ser condenado por corrupção. É a mutreta clássica da formação de família.

Muitos desses poderosos se dizem pessoas de grande fé, mas, no fundo, professam mesmo é a crença no ditado “Entre Deus e o dinheiro, o segundo vem primeiro”. Não raro, cultuam o Ato Institucional no. 5, o macabro AI-5 da ditadura militar, no mesmo altar de Mamon.

No teatro do poder, eles têm lugar garantido no camarote VIP dos grandes… hipócritas deslumbrados.

Cientistas políticos e juristas alertam que o crime organizado já ocupa um espaço perigoso na vida política brasileira. A mobilização social ativa, altiva e organizada junto às instituições é fundamental para reverter isso. Governantes e parlamentares cujos vínculos com milícias e outras facções criminosas forem provados precisam ser julgados com direito à ampla defesa e condenados.

Resistir aos espetáculos grotescos da extrema direita brasileira sem perder o bom humor é condição sine qua non para mantermos nossa saúde física e mental. Que venham os memes espirituosos, as paródias e as manchetes do Sensacionalista como antídotos para as patacoadas dos nossos extremistas caricatos e ignorantes. Alegria!

De olho em 2026 no país e no mundo que queremos para nós e as gerações que nos sucederão, apliquemos sempre nossa militância inteligente, incansável e muita coragem.

À vitória!

*Aracy P. S. Balbani é médica. Atua como especialista no SUS no interior paulista.

Referências


Núcleo Piraitninga de Comunicação. Entrevista com Orlando Zaccone, autor do livro “Indignos da vida: A Desconstrução do poder punitivo”. In: https://nucleopiratininga.org.br/entrevista-com-orlando-zaccone-autor-do-livro-indignos-da-vida-a-desconstrucao-do-poder-punitivo-2/

Orlando Zaccone D’Elia Filho. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013, 177p. Em: https://dcp.uff.br/wp-content/uploads/sites/327/2020/10/Tese-de-2013-Orlando-Zaccone-D_Elia-Filho.pdf

Mario Vitor Santos. Relatório de “direitos humanos” dos EUA mira Lula e acerta em Tarcísio. Brasil 247. Em: https://www.brasil247.com/blog/relatorio-de-direitos-humanos-dos-eua-mira-lula-e-acerta-em-tarcisio

Agência Câmara de Notícias. Proposta do governo muda estrutura da segurança pública em busca de maior integração na área. 28/04/2025. Em: https://www.camara.leg.br/noticias/1153668-proposta-do-governo-muda-estrutura-da-seguranca-publica-em-busca-de-maior-integracao-na-area


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