Que Henry Kissinger não descanse em paz

Imagem: Julissa Helmuth
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ARIEL DORFMAN*

Sempre sonhei que chegaria um dia em que Henry Kissinger teria que se apresentar perante um tribunal de justiça e responder por seus crimes contra a humanidade.

É estranhamente apropriado que Henry Kissinger tenha morrido no ano que marca os cinquenta anos do golpe militar de 1973 que derrubou o presidente Salvador Allende e pôs fim à fascinante tentativa chilena de criar, pela primeira vez na história, uma sociedade socialista sem recorrer à violência. Como assessor de segurança nacional de Richard Nixon, Kissinger opôs-se ferozmente a Salvador Allende e desestabilizou seu governo democraticamente eleito por todos os meios possíveis, porque acreditava que, se nossa revolução pacífica fosse bem sucedida, a hegemonia norte-americana seria afetada. Temia, segundo ele, que o exemplo se espalhasse e afetasse o equilíbrio mundial de poder.

Henry Kissinger não só encorajou ativamente a derrubada violenta de um líder estrangeiro eleito por uma nação soberana e um povo livre, como também apoiou posteriormente o regime assassino do general Augusto Pinochet, uma adesão que não levou em consideração a violação massiva dos direitos humanos de seus cidadãos pela ditadura, cuja manifestação mais brutal foi a prática cruel e aterradora do “desaparecimento” de opositores.

É naqueles “desaparecidos” que penso agora, quando Henry Kissinger é festejado pela elite bipartidária desavergonhada de Washington. Cinquenta anos depois do golpe de Estado no Chile, ainda não sabemos o paradeiro final de 1.162 homens e mulheres, e seus corpos ainda não foram sepultados por suas famílias. O contraste é revelador e significativo: enquanto Henry Kissinger terá um funeral memorável, provavelmente majestoso, muitas vítimas de sua “Realpolitik” ainda não encontraram um pequeno lugar na terra onde possam ser enterradas.

Se meus primeiros pensamentos, ao ouvir a notícia da partida de Henry Kissinger do planeta que ele espoliou e desonrou, se encheram com as memórias de meus compatriotas chilenos desaparecidos – vários deles, queridos amigos –, logo me veio à mente uma torrente de outras vítimas: inúmeros mortos, feridos e desaparecidos, no Vietnã e no Camboja, no Timor Leste e no Chipre, no Uruguai e na Argentina. E lembrei-me também dos curdos que Henry Kissinger traiu, e do regime de apartheid na África do Sul que ele reforçou, e dos mortos de Bangladesh que ele menosprezou.

Sempre sonhei que chegaria um dia em que Henry Kissinger teria que se apresentar perante um tribunal de justiça e responder por seus crimes contra a humanidade.

Quase aconteceu. Em maio de 2001, enquanto estava hospedado no Hotel Ritz em Paris, Henry Kissinger foi intimado a comparecer perante o juiz francês Roger Le Loire para responder a perguntas sobre cinco cidadãos franceses que “desapareceram” durante a ditadura de Augusto Pinochet. No entanto, em vez de aproveitar a oportunidade para limpar seu nome e reputação, Henry Kissinger fugiu imediatamente da França.

Paris não foi a única cidade de onde fugiu em 2001. Também escapou de Londres quando Baltasar Garzón pediu à Interpol que prendesse o ex-secretário de estado dos Estados Unidos para que testemunhasse no processo de Pinochet (em prisão domiciliar nesta cidade). Henry Kissinger também não se dignou a responder ao juiz argentino Rodolfo Canicoba Corral sobre seu envolvimento na infame “Operação Condor”, nem ao juiz chileno Juan Guzmán sobre o conhecimento que este “estadista idoso” poderia ter do assassinato do cidadão estadunidense Charles Horman pelos capangas de Pinochet nos dias imediatamente posteriores ao golpe (caso que inspirou o filme de Costa Gavras, “Missing”).

E, no entanto, continuei alimentando esse sonho impossível: Henry Kissinger no banco dos réus, Kissinger sendo responsabilizado por tanto sofrimento. Um sonho que inevitavelmente se desvanecerá com sua morte.

Mais uma razão para que esse julgamento ocorra no tribunal da opinião pública, dentro destas palavras cheias de dor que estou escrevendo neste momento. Os desaparecidos do Chile, os mortos esquecidos de todas as nações que Henry Kissinger devastou com suas estratégias impiedosas, clamam por justiça ou, pelo menos, por essa pretensão de justiça que se chama memória.

Por isso, apesar de como se supõe que devemos reagir quando alguém morre, não desejo que Henry Kissinger descanse em paz. Espero, pelo contrário, que os fantasmas dessas multidões às quais ele fez mal de forma irreparável perturbem seu funeral e rondem seu futuro. Que essa perturbação espectral ocorra, depende, evidentemente, de nós, os vivos, depende da vontade da humanidade de ouvir as vozes remotas e silenciadas das vítimas de Henry Kissinger no meio do estrondo e do dilúvio de louvores e elogios, depende de que nunca nos esqueçamos.

*Ariel Dorfman é escritor, professor de literatura da Universidade de Duke (EUA). Autor, entre outros livros de O longo adeus a Pinochet (Companhia das Letras).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no jornal Página12 [https://www.pagina12.com.ar/691335-que-no-descanse-en-paz].

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Mísseis sobre Israelmíssel 07/10/2024 Por MÁRIO MAESTRI: Uma chuva de cintilantes mísseis iranianos cortando os céus de Israel, passando pelo mítico Domo de Ferro, como a farinha por peneira
  • A felicidade negadapexels-enginakyurt-2174627 10/10/2024 Por MARCIO SALES SARAIVA: Comentário sobre o livro de Domenico De Masi
  • A poesia no tempo dos incêndios no céucultura quadro branco 04/10/2024 Por GUILHERME RODRIGUES: Considerações sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade
  • Israel: que futuro?luminoso 09/10/2024 Por CARLOS HENRIQUE VIANNA: Não há dúvida que Israel, seus cidadãos e seus governos, consideram-se um país especial no concerto nas nações. Um Estado com mais direitos que os demais
  • Ultrapassando os limites constitucionaissouto-maior_edited 06/10/2024 Por JORGE LUIZ SOUTO MAIOR: Luís Roberto Barroso leva adiante a sua verdadeira Cruzada, destinada a atender a eterna demanda do setor empresarial de eliminação do custo social da exploração do trabalho
  • A queda de Israelpexels-nemanja-ciric-241845546-12301311 10/10/2024 Por SCOTT RITTER: Mesmo alguns sobreviventes do Holocausto reconhecem que o Israel moderno se tornou a manifestação viva do próprio mal que serviu de justificação para sua criação – a ideologia brutalmente racista da Alemanha nazista
  • Annie Ernaux e a fotografiaannateresa fabris 2024 04/10/2024 Por ANNATERESA FABRIS: Tal como os fotógrafos atentos ao espetáculo do cotidiano, a escritora demonstra a capacidade de lidar com aspectos da civilização de massa de maneira distanciada, mas nem por isso menos crítica
  • Coach — política neofascista e traumaturgiaTales-Ab 01/10/2024 Por TALES AB´SÁBER: Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach
  • Pablo Marçal na mente de um jovem negroMente 04/10/2024 Por SERGIO GODOY: Crônica de uma corrida de Uber
  • A vingança do bom selvagemRenato Janine Ribeiro 10/10/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: Posfácio do livro recém-lançado de Gérard Lebrun.

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES