Por HELENA PONTES DOS SANTOS*
A pergunta que o julgamento do STF responde não é sobre vínculos empregatícios, mas se a engrenagem que alimenta o genocídio negro pode, oficialmente, incluir a exploração até a exaustão como uma de suas ferramentas mais eficientes
“O ser humano é descartável no Brasil / Como modess usado ou Bombril / Cadeia? Guarda o que o sistema não quis / Esconde o que a novela não diz” (Racionais MCs, Diário de um detento).
Violências raciais e de classe se entrelaçam no Brasil. Pensando a partir da data de 02 de outubro de 2025, me revolta ver que não tiramos, enquanto sociedade, o dia para refletir sobre o modo cruel como pessoas negras, em geral, e homens negros, em particular, são tratados como “Modess usado ou Bombril”[i] neste país.
São os corpos negros – e estamos apontando há quase uma década apontando isso com pesquisas e textos realizados a partir dos dados oficiais, a fim de Negritar o Direito do Trabalho – os alvos principais da superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente brasileiro.
Este sistema tem, historicamente, nas jurisprudências e doutrina dominante do Direito do Trabalho, ferramentas importantes para a manutenção do imobilismo social do povo trabalhador negro em nosso país.
Neste sistema, de um lado temos as interpretações ideológicas do Direito do Trabalho que permitem a superexploração pela via da precarização e, de outro, o sistema prisional como meio de controle da massa rebelde que não se adéqua às regras do jogo de passividade na base da porrada.
Pelo dia 02 de outubro de 1992, deveríamos estar nos lembrando e rendendo homenagens aos 111 presos vitimados pelo braço armado do Estado, na cidade de São Paulo, no Carandiru: pessoas mortas por serem negras, pobres, periféricas; vitimadas pelo Estado e pelo racismo por omissão de toda uma sociedade que vê o encarceramento em massa de jovens negros e alega ignorância e desconhecimento. Uma sociedade que assiste sorridente e silente aos corpos negros tombados para manutenção de sua vida confortável como quem assiste um filme da Sessão da Tarde ou, como Gilberto Gil e Caetano Veloso[ii] poetizaram:
o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos.
O 02 de outubro de 1992 é só um dentre os tantos massacres e chacinas, capítulos que se somam na história do genocídio do povo negro brasileiro e que vão sendo esquecidos, não lembrados e seguem injustiçados.
Pelo que vimos e ouvimos dia 01 de outubro de 2025, no Supremo Tribunal Federal (STF) – quando os ministros começaram a julgar duas ações em que se debatem a natureza da relação de trabalho entre plataformas digitais de transporte de pessoas e de mercadorias e motoristas e entregadores Reclamação 64018 e Recurso Extraordinário 1446336 – deveríamos estar incomodados em ver, mais uma vez, o destino de uma maioria negra na mão de um judiciário majoritariamente branco que por vezes parece viver em um mundo paralelo, numa espécie de Lalaland pelo relatos e falas.
O que se está debatendo na Corte Suprema brasileira – e, portanto, em disputa – é se motoristas e entregadores que trabalham para empresas como Uber, 99, Rappi e similares são ou não empregados, devendo, em caso afirmativo, ter direito a carteira de trabalho assinada e todos os direitos trabalhistas básicos inerentes a isso – jornada, descanso semanal remunerado, horas extras, férias, 13º salário, previdência, dever do empregador em garantir um meio ambiente de trabalho saudável, dentre tantos outros.
Caso não, continuarão sem vínculo empregatício e sem proteção, submetidos apenas às regras feitas e definidas unilateralmente pelas plataformas.
Esse julgamento está permeado, como não se pode deixar de negritar, pela questão racial[iii].
Estudos recentes indicam que entre entregadores, cerca de 68% se autodeclaram pretos ou pardos, e entre motoristas essa proporção gira em torno de 62%[iv].
Esses dados, portanto, reforçam o que os olhos atentos vêm no dia a dia das cidades brasileiras: a disputa por vínculos de emprego nas plataformas não é neutra, pois atinge majoritariamente trabalhadores negros, comprovando o caráter racializado, também aqui, da precarização.
Não se pode deixar de anunciar o óbvio: se o STF decidir negar vínculo de emprego, o que dirá é que essa massa de trabalhadores negros não merece sequer o mínimo de direitos que a CLT garante.
E, convenhamos, isso não é novo no Poder Judiciário que criou a súmula nº 333 do TST e nega ainda hoje direitos mínimos às trabalhadoras domésticas “diaristas”.
Silenciar, o muito ou o pouco, naturaliza a ideia racista de que a pessoa negra é desqualificada e, portanto, sua força de trabalho, igualmente desqualificada, mais barata e sua vida descartável!
Afinal, é disso que se trata a ideia de que existem trabalhadores que podem vender diretamente sua força de trabalho e, em troca de direitos trabalhistas, terem sua mais valia extraída, ao passo que existem trabalhadores que não têm esse direito e que terão, sempre, que agradecer por ter sua força de trabalho intermediada e vendida por outrem, que aufere lucro sem dar contrapartida mínima: condições de reprodução da força de trabalho.
Eu nunca fui encarcerada e nem por isso me silencio ou deixo de render minhas homenagens todos os dias 02 de outubro, ano após ano. Eu não sou uma trabalhadora uberizada e nem por isso eu posso me calar e assistir o que está se passando. O momento exige reflexão e posicionamento.
Eu era nova, mas lembro daquele dia! Eu lembro do horror no rosto das famílias!
Eu tenho completa noção de que por não assumirmos a postura real de “ninguém solta a mão de ninguém”, numa unidade de pessoas exploradas nesse sistema capitalístico, acabamos vendo, anestesiados mortes e mais mortes, físicas ou não-fisicas de trabalhadores negros cotidianamente.
Sim, mortes não-físicas também.
Como vive uma mãe, esposa, amiga depois de atravessar a perda de um filho, companheiro de vida, amigo vitimado pelo terrorismo de Estado?
Como vivem as pessoas que passam por violência racial psicológica e verbal?
Como vivem os que movimentam as cidades, nos dias atuais, buscando e levando de tudo e que não recebem salários que lhes possibilitem viver com dignidade, passando por sede, fome, frio, expostos às intempéries, ajuntados nas esquinas – como nossos antepassados ganhadores, nos cantos – aguardando a próxima entrega?
Esse país mata pessoas negras com a conivência e o “silêncio sorridente” de pessoas brancas igualmente exploradas, que aceitam suborno sistêmico de não serem as primeiras vítimas do Estado, de terem acesso aos postos de trabalho com alguma estabilidade e direitos celetistas, de lhes ser permitidas voltar suas frustrações com o sistema contra seus pares de classe e desiguais de raça através de ódio racial. É preciso romper com essa lógica perversa que nos fragmenta e impede de avançar; com o pacto silencioso de manutenção da desigualdade,. Essa lógica que está levando a todas nós, pessoas trabalhadoras, a vivermos mais e mais doentes física, emocional e psicologicamente.
Mas o que existe aqui é um onde a branquitude precarizada aceita o privilégio mínimo de não ser o alvo principal — e, muitas vezes, se torna aliada da violência estrutural, reproduzindo exclusões e silenciamentos. Ou seja, aceita suborno sistêmico. Aliás, por isso também não se vê o recorte de raça aplicado nesse caso, sendo propositalmente escondido este viés essencial do debate.
Eu não consigo deixar de me manifestar e posicionar diante da chacina do Carandiru e lembrar que os assassinos foram inocentados pelo Judiciário. Esse mesmo Poder Judiciário, que não por coincidência, inocentou e inocenta assassinos de pessoas negras, é o mesmo que iniciou ontem o julgamento sobre o reconhecimento ou não de vínculo de emprego de trabalhadores explorados pelas plataformas como Uber e Rappi sem se ouvir citar, uma vez só que fosse, a questão racial.
Como conseguimos passar dia 02 de outubro sem lembrar dos irmãos massacrados pelo terrorismo de Estado? Será que teremos num futuro próximo o dia 01 de outubro como o dia fatídico em que se iniciou a negativa completa de acesso de negros a devida reparação via proteção de sua dignidade na exploração de sua força de trabalho?
Esse julgamento é um marco, mas também é um espelho.
O STF começou a discutir se trabalhadores de aplicativos devem ou não ser reconhecidos como empregados com direitos — e, mais do que isso, se o modelo de trabalho atual, ideologicamente vendido pelas empresas exploradoras como “flexível”, não é, na verdade, uma forma disfarçada de escravização moderna, vez que o que cada trabalhador aufere depois de longas jornadas de trabalho (que em muito extrapolam a jornada constitucional de oito horas) é menos do que o necessário para sustento seu e de sua família com a dignidade preconizada na Constituição Federal.
Esse julgamento pode significar um imenso retorno ao passado, com a pacificação, pelo Judiciário, do entendimento de que corpos negros são, também na seara trabalhista, descartáveis e sua força de trabalho poderá ser explorada sem descanso, sem direitos, sem voz, sem possibilidade de se organizarem coletivamente. O correspondente, na seara trabalhista, à autorização dada pelos Tribunais de Justiça de tantos estados brasileiros à desumanização de corpos negros. Não, não é exagero.
E é sobre isso que se trata todo o rememorar de 02 de outubro: desumanização do povo negro, pois o mesmo sistema que mata jovens negros com a bala “perdida” da polícia, que os encarcera para fazer morrer de pneumonia ou em chacinas nos presídios, mata também permitindo a exploração até a exaustão das forças, a morte pela fome, pelo adoecimento mental e físico de quem passa 12, 14, 16 horas por dia nas ruas para garantir uma renda que mal paga o alugue e alimentação diária rica em sódio e carboidratos, que encurtaram sua vida produtiva.
A lógica é a mesma: a vida negra vale menos. Seja na cela, na favela ou na corrida de aplicativo. E ainda há quem tenha a coragem de dizer que esses trabalhadores “escolhem” estar ali e que não querem CLT.
Não é escolha quando o Estado nega educação, saúde, moradia e políticas públicas que garantam uma vida minimamente digna. Não há opção quando os direitos da CLT, se chegam para o povo negro, chegam sempre rebaixado e descumpridos; quando ser CLT é sinônimo de que o empregador tem poder diretivo para impor absurdos e ao empregado é negado o direito de legítima defesa, mesmo em caso de franco abuso.
Não é humano escolher a CLT quando o Judiciário permite que a subordinação nas relações de emprego no Brasil, seja, na prática, sinônimo de assédio moral constante, com imposição de condições de trabalho, não raramente, adoecedoras, vez que a sociedade carrega no que tange a relações de trabalho, mentalidade escravocrata. O que existe é coerção.
No sistema capitalista eu preciso comer e se eu consigo tirar o que mais se aproxima do necessário me submetendo à exploração dos aplicativos, é ali que se fica, nas condições que existem… A tal da “escolha” se dá porque os direitos garantidos aos celetistas raramente se realiza na vida do empregado negro e porque não é possível pensar em direitos quando se luta por sobrevivência.
Se celetista fosse estável e todos os direitos presentes na CLT fossem de fato cumpridos, bem como o artigo constitucional referente ao salário mínimo, quem diria que não quer ser celetista? O que não se quer é precarização documentada, adotando-se o discurso ilusório de ser o dono do próprio tempo, promessa que não se configura em real para quem trabalha em plataforma, vez que é esta quem determina tudo: rota, tempo, preço, quem entrega para quem.
É por isso que a decisão do STF importa tanto. Não estamos falando apenas de direitos trabalhistas. Estamos falando de finalmente haver reparação histórica para o trabalhador negro ontem chamado de ganhador e hoje chamado de entregador. De começar a reconhecer que essas pessoas, majoritariamente negras, são exploradas dentro de uma engrenagem que lucra com o seu sofrimento e que como sociedade já chegou a hora de exigirmos o que a elite brasileira nega ao povo negro: que se assine a CTPS de todas estas pessoas precarizadas, conferindo reconhecimento ao digno trabalho executado por quem edificou este país, inclusive presos que trabalham para redução de pena.
Mas, independente do resultado, bebamos da rebeldia dos jovens que sentem e cantam: “Nunca fui fraco, sempre fui forte / Não vai cair uma lágrima de dentro dos meus olhos /Sabe por que? O Estado massacra demais”[v].
O STF ao decidir sobre quem tem e quem não tem direito ao trabalho digno, permitirá, caso siga a linha de permitir a precarização das relações de trabalho e descaracterizando as de emprego, que se prossiga com o genocídio do povo negro que morre, desde que pisou nessa terra, de tanto trabalhar.
STF, o povo negro trabalhador quer viver!
Resumo: Carandiru não é apenas memória, mas espelho do presente. Entre a bala e o aplicativo, a vida negra continua sendo tratada como descartável no Brasil. A escolha é nítida, escura e negritada: cabe ao Judiciário decidir se seguirá legitimando o genocídio do povo negro brasileiro ou se terá coragem histórica de reconhecê-lo e enfrentá-lo. É só mais um revés que não deterá a classe trabalhadora! Venceremos.
*Helena Pontes dos Santos é mestranda em direito do trabalho pela Faculdade de Direito da USP.
Notas
[i]RACIONAIS MC’S. Diário de um detento, 1997.
[ii] GIL, Gilberto. VELOSO, Caetano. Haiti, 1993.
[iii]PRETA, A. Jovens negros têm “uberização” do trabalho como uma das poucas alternativas ao desemprego. Disponível em: <https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/jovens-negros-tem-uberizacao-do-trabalho-como-uma-das-poucas-alternativas-ao-desemprego/>. Acesso em: 01 out. 2025.
[iv]HIRABAHASI, G. Mais de 60% dos motoristas e entregadores de aplicativo são negros, diz estudo. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/mais-de-60-dos-motoristas-e-entregadores-de-aplicativo-sao-negros-diz-estudo/>.
[v] ORUAM. In: Caxias24hs on Instagram: “O cantor Oruam postou em seu Instagram uma música que compôs dentro do Complexo de Presídios de Bangu. E aí, gostaram?” Disponível em: <https://www.instagram.com/reel/DPNNPZBDjL4/>. Acesso em: 1 out. 2025.
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