União e reconstrução

Imagem: Elyeser Szturm
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Por FABRÍCIO MACIEL*

É de ordem fundamental o lado positivo do simbolismo da brasilidade mobilizado pela posse de Lula

A posse de Lula foi marcada por um alto teor simbólico, o que indica a importância deste momento. Não por acaso, alguns dos principais grupos oprimidos de nossa sociedade foram representados, o que seria o mínimo a se esperar, depois do apagão democrático e do terror psicológico, além dos ataques reais, sofridos por todos aqueles que foram vítimas da política de ódio do governo anterior. Neste sentido, o rito que assistimos no dia primeiro de janeiro restaura, felizmente e com todo o significado necessário, a ordem democrática suspensa no fatídico dia da votação do impeachment de Dilma Rousseff.

A importância dos símbolos é maior do que muitas vezes aparenta à primeira vista. Não é mera alegoria ou inclusão de fachada, como hoje virou moda dizer, o fato de Lula performatizar este rito de passagem tão importante ao lado de um menino negro morador da periferia, um grande líder indígena reconhecido internacionalmente, uma catadora de lixo, um metalúrgico do ABC, um professor de português, uma cozinheira, um influencer na luta anticapitalista e portador de necessidades especiais e um artesão. Isso significa ao mesmo tempo uma promessa e um compromisso moral assumido diante da sociedade brasileira e diante do mundo.

Não por acaso, o simbolismo do governo Bolsonaro remeteu-se o tempo inteiro ao militarismo, e aqui precisamos refletir profundamente sobre isso, mesmo porque o governo perseguiu fielmente o caminho sugerido por seus símbolos, não realizando apenas o que não conseguiu.

O simbolismo militarista sugere o tempo inteiro a mobilização da força contra tudo e contra todos aqueles que discordam de algum governo autoritário vigente ou de algum grupo social que se acha moralmente superior aos demais. Todas as possibilidades de diálogo e de tolerância já foram esgotadas, quando todas as expectativas são depositadas na força bruta. No limite, presenciamos recentemente o nível de loucura ao qual o imaginário motivado por este tipo de simbolismo pode levar, com militantes bolsonaristas rezando em frente a quartéis e implorando por uma intervenção militar, como se esta fosse a força suprema de qualquer sociedade.

Este tipo de imaginário perpassa boa parte da sociedade brasileira desde sempre e ainda hoje, em grande medida, o que se traduziu nas urnas, com quase metade da população brasileira tentando reeleger Bolsonaro. No passado, o imaginário e o simbolismo militarista marcaram praticamente todos os nossos grandes momentos históricos, a começar pela Independência, depois passando pela Proclamação da República, a era Vargas e a ditadura de 1964, dentre outros momentos menores.

Jair Bolsonaro foi nada menos do que a atualização deste simbolismo e imaginário de guerra, intolerante em sua essência, pois quando falamos de guerra deveria ser óbvio que o objetivo único é a aniquilação do inimigo. Infelizmente, uma das teses absurdamente equivocadas que dominaram os debates sobre conjuntura no Brasil dos últimos anos é aquela que atribui ao PT ou à esquerda como um todo a responsabilidade pela redução do Brasil à lógica do “nós contra eles”.

A posse de Lula, com seu poderoso teor simbólico, deve deixar claro o equívoco de tal tipo de tese e a proposta deste novo governo, explicitamente defendida como sendo a de unificar o Brasil, além de iniciar o processo de reconstrução diante da devastação deixada pela irresponsabilidade bolsonarista, a começar pelo óbvio que é, como sempre, a economia.

Neste sentido, vale reforçar a proposta que está sendo transmitida pelo novo governo, sem idealizações e sem essencialismos, mas tendo uma pitada de realismo, diante de tempos tão confusos. Não por acaso, o bordão do novo governo é “União e reconstrução”, remetendo-se ao desafio de resgatar o Brasil da condição de terra devastada, o que se afina com o novo slogan colorido. Este retoma em certo sentido o simbolismo dos governos Lula 1 e 2, cujo slogan também era colorido, remetendo-se a diversidade cultural e identitária do país.

A mensagem do bordão de hoje precisa ser ainda mais forte, diante do desafio de governar depois do bolsonarismo. O bordão dos governos anteriores de Lula era “Brasil, um país de todos”, o que em certo sentido permanece vivo na proposta atual, em resposta ao falso patriotismo cínico e instrumental do pseudofascismo tupiniquim de araque, representado no bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, defendido por Bolsonaro.

Todas as vezes, na história brasileira e universal, nas quais a pátria foi mobilizada enquanto um ente abstrato acima de tudo, tratou-se de autoritarismo e intolerância, laica ou religiosa, ou um misto de ambas. No caso brasileiro, fiz uma análise do mito da brasilidade e seu papel na construção de nossa identidade nacional, desde a independência, em meu livro O Brasil-nação como ideologia (MACIEL, 2022). Uma das principais coisas que aprendi quando fui estudar alguns dos principais autores e autoras do pensamento brasileiro, em nossos principais momentos históricos, é que o símbolo verde e amarelo, articulado ao imaginário e a signos militares, foi sempre mobilizado em momentos nos quais as forças mais autoritárias da política brasileira chegaram ao poder.

Neste sentido, uma distorção importante sempre foi realizada. Em momentos de convulsão política, gerados normalmente por crises econômicas graves e a intervenção de forças externas contrárias aos verdadeiros interesses nacionais, os signos do verde amarelismo militarista sempre sugeriram que o povo e a cultura brasileira são essencialmente autoritários.

Essa tese foi defendida explicitamente por Gilberto Freyre, por exemplo, e reproduzida por grande parte de nossa intelectualidade ainda hoje. Na verdade, tratou-se sempre de governos autoritários, e não de um povo essencialmente autoritário, tese esta que nos rebaixa diante do mundo e legitima toda a ação de tais governos. Depois da ascensão do autoritarismo em escala global, que presenciamos nos últimos anos, cujo germe permanece vivo e precisa ser combatido, torna-se cada vez mais difícil a sustentação de tal tipo de tese.

Neste cenário, é de ordem fundamental o lado positivo do simbolismo da brasilidade mobilizado pela posse de Lula. Ele sinaliza os rumos de inclusão social múltipla a serem tomados nos próximos anos, o que deve guiar a formulação efetiva de políticas públicas e sociais em todos os fronts de batalha contra nossa desigualdade estrutural, aprofundada pela conjuntura bolsonarista. Se o governo será bem-sucedido, cabe ao tempo oferecer a resposta e não aos intelectuais, que não podem prever o futuro. De todo modo, a sinalização é que retomamos o caminho certo, e nele devemos permanecer.

*Fabrício Maciel é professor de teoria sociológica na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Referência


MACIEL, Fabrício. O Brasil-nação como ideologia. A construção retórica e sociopolítica da identidade nacional. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2022.

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