Por FLÁVIO AGUIAR*
Na crise de agosto de 1954 os ministros militares deram um ultimato ao presidente Getúlio Vargas: ou ele renunciava ou seria deposto
Eu tinha sete anos e três meses de idade. Oito e meia da manhã, 24 de agosto de 1954. Bateram à porta de casa. Como era costume, fui abrir. Entrou, sem sequer me cumprimentar, a vizinha do lado direito da nossa casa, Dona Wanda, aos berros e aos prantos: “Dona Elsa (minha mãe), acenda o rádio, o doutor Getúlio se matou!”.
Minha mãe acendeu o dito cujo rádio. No tempo das válvulas a gente acendia o rádio, coisa que no Rio Grande do Sul se faz até hoje, tanto com o rádio quanto com a televisão. Esquentadas as devidas válvulas, deu para ouvir um pedaço da Carta Testamento, com aquele final dramático, trágico e épico ao mesmo tempo: “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”. Seguiu-se a data e a assinatura: “Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1954 – Getúlio Vargas”.
Uma espécie de estupor, um silêncio pesado caiu sobre a casa, só entrecortado pelos soluços da Dona Wanda, que continuava chorando sem parar.
Depois de algum tempo, o locutor (a gente dizia ainda speaker), depois de dar a notícia do suicídio, recomeçou a leitura: “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam; insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes”… Na sequência de elementos que os “grupos internacionais”, aliados a “grupos nacionais revoltados com o regime de garantia do trabalho”, precisavam destruir constavam a valorização do salário mínimo e, é claro, a Petrobras e a Eletrobrás. Como hoje.
Foi como se os relógios parassem. Eu tinha lições a fazer, tinha aulas à tarde. Mas logo ficou claro que eu não iria à escola, as aulas tinham sido suspensas. Meu irmão mais velho, que cursava o ginásio pela manhã, reapareceu, o colégio fora fechado e os alunos dispensados. Minha mãe era professora de desenho e geometria no ginásio e dava aulas à tarde: não iria trabalhar. Mais adiante chegaria o meu pai: o escritório da empresa onde era contador também fechara. Enquanto o dia se desorganizava e se reorganizava, o rádio continuava martelando a Carta Testamento.
Dona Wanda se retirara com suas lágrimas ainda escorrendo pelo rosto. Por volta do meio dia, outra vizinha entrou em casa, desesperada. Contou para minha mãe que seu marido voltara do trabalho, pusera o revólver na cintura e saíra para a rua. Pelo rádio chegavam notícias espantosas: um gigantesco quebra-quebra se espalhava pela cidade. Sintonizamos a Rádio Farroupilha. Aos gritos, o speaker narrava que uma multidão invadia o prédio da emissora anti-getulista, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, pondo-o em chamas. A rádio ficava na esquina da Rua Duque de Caxias com o Viaduto Otávio Rocha, que atravessava pelo alto a Avenida Borges de Medeiros. Era um sobrado, e no segundo piso funcionava a Rádio Difusora. Com o incêndio, que acabou por destruir o prédio, um dos jornalistas da Difusora se jogou do segundo andar e fraturou a espinha.
Mais de quarenta prédios, da imprensa e dos partidos conservadores, foram atacados pela multidão em fúria. Alguns foram incendiados. Atacaram a sede de um dos partidos anti-getulistas, em frente ao Hospital do Pronto Socorro. A Brigada Militar, a PM do Rio Grande do Sul, reprimiu o ataque à bala. Três dos manifestantes morreram na hora. Um quarto morreria meses depois, em consequência dos ferimentos.
As notícias continuavam chegando pelo rádio: o quebra-quebra corria solto também no Rio de Janeiro. Além dos jornais dos Diários Associados, a multidão em fúria também atacava camionetas do jornal O Globo, da família Marinho.
Em suma, o dia 24 de agosto de 1954 consumiu-se em fogo. O golpe militar para derrubar Vargas, que se armara pela campanha insidiosa da imprensa conservadora, foi adiado sine die. Depois deste desafogo, no dia seguinte os ânimos começaram a serenar, transformando a fúria em luto. As cerimônias fúnebres, com um cortejo pelas ruas no Rio de Janeiro, foi das maiores manifestações que se realizaram no Brasil. Logo depois que o avião com o corpo do ex-presidente levantou voo para o Rio Grande do Sul, houve novas manifestações perto do aeroporto Santos Dumont: soldados da Aeronáutica abriram fogo contra a multidão. Em São Borja, na fronteira com a Argentina, cidade natal da família Vargas, houve novo cortejo gigantesco para o tamanho da cidade, com milhares de acompanhantes.
Logo em seguida do suicídio começou a circular a versão de que “ao ouvir a leitura da Carta Testamento, a multidão, que saía à rua para comemorar a queda de Getúlio, voltou-se contra seus adversários”. Hoje tenho consciência de que esta versão era patrocinada pela direita e também por alguns setores da esquerda. Alguns anos atrás ouvi de uma amiga, veterana militante do antigo Partido Socialista Brasileiro, que ela e alguns companheiros de fato se preparavam para comemorar a queda “do ditador” no interior de São Paulo. Murcharam e desistiram ao ouvir a leitura da Carta.
É certo também que não faltava gente que comemorasse a programada queda de Vargas, derrubado, mais uma vez, por um golpe militar, além do empresariado reacionário e setores da classe média engolfados pela campanha de Lacerda, da UDN e outros golpistas contra o “mar de lama” da “corrupção getulista”. Porém estou convencido de que tanto no Rio de Janeiro quanto em Porto Alegre, e também em outras cidades do país, não havia “multidões saindo às ruas” para festejar o golpe e a queda. As multidões, sobretudo de trabalhadores, saíram às ruas enfurecidas, isto sim, pela leitura da Carta Testamento e pela morte de seu idolatrado líder. Porque, sem dúvida, Getúlio Vargas foi o maior líder popular que este país já viu, até a chegada, décadas depois, de um certo Luís Inácio da Silva, rebatizado como Lula.
Não vamos comemorar seu autoritarismo nem erros que tenha cometido. Mas não dá para tapa-lo com alguma peneira. Luís Carlos Prestes também teve uma enorme popularidade. Na República Velha, certamente foi o maior, como o Cavaleiro da Esperança da Coluna que levou o seu nome. Depois do fim do Estado Novo, elegeu-se senador pelo Distrito Federal, com 157 mil votos. Também foi eleito deputado federal pelo Distrito Federal, Pernambuco e Rio Grande do Sul, já que a legislação da época admitia que uma mesma pessoa se candidatasse a vários cargos simultaneamente.
Sem fazer campanha, no “exílio” de sua estância fronteiriça, na mesma eleição Getúlio foi eleito senador pelo Partido Social Democrático (PSD), que fundara, no Rio Grande do Sul, e pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que também fundara, por São Paulo. Foi eleito também deputado federal pelo Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Bahia, estado do Rio de Janeiro e o Distrito Federal. Recebeu no total 1 milhão e 300 mil votos. Ambos, Prestes e Getúlio, optaram pelo mandato de senador. Depois disto, a popularidade de Prestes oscilou muito, com a cassação de seu mandato, a proibição do Partido Comunista e a volta à clandestinidade. A de Getúlio aumentou mais ainda.
Lembro dos discursos inflamados de meu pai, petebista, à mesa, na hora do almoço: “Getúlio foi o único neste país que fez algo pela classe trabalhadora”. Ele e minha mãe detestavam Carlos Lacerda, a UDN e os demais políticos conservadores. Também não gostavam dos comunistas, que viam como adversários de Getúlio Vargas. Numa travessa da rua da casa de meus pais, ficava a de uma tradicional família de comunistas porto-alegrenses. Nas madrugadas de 7 de novembro eles acordavam a vizinhança com um foguetório comemorativo da Revolução de 1917, pelo Calendário Gregoriano, que o governo soviético adotara depois da ascensão ao poder, substituindo o Juliano. Numa destas madrugadas, agoniado pela barulheira, perguntei a minha mãe o que se passava. “São os vizinhos comemorando o aniversário do Luís Carlos Prestes”, foi a resposta, com um muxoxo.
Vendo (e ouvindo nos ouvidos da memória) tudo isto agora, há quase setenta anos de distância, me chama a atenção o papel de proa desempenhado pelos oficiais da Aeronáutica na campanha contra Vargas, transformados numa espécie de guarda miliciana do ídolo da direita, Carlos Lacerda. Depois do atentado da rua Tonelero e da morte do Major Rubens Vaz no incidente, até hoje mal contado, deixando atrás de si uma esteira de interrogações, os oficiais da arma criaram a famigerada “República do Galeão”, transformando a base aérea junto ao aeroporto no epicentro do Inquérito Policial-Militar que investigava o atentado, com acusações de recurso à tortura física e psicológica.
Não faltou o requinte de Lacerda mandar imprimir uma edição falsa (fake news…) do jornal Tribuna da Imprensa, noticiando a fuga de Benjamim Vargas, irmão do presidente, para o exterior, a fim de que fosse lida por Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do presidente e acusado de planejar o crime. Foi a famosa edição de um único exemplar de jornal, hoje desaparecido, bem como a arma de Lacerda, que não foi periciada, embora fosse utilizada na ocasião do tiroteio na rua Toneleros. Benjamim era visto como um protetor do “Anjo Negro”, apelido de Gregório.
Os oficiais da Aeronáutica viam-se como uma espécie de “corpo de elite” das Forças Armadas, cuja oficialidade, desde o fim da Segunda Guerra foi se inclinando mais e mais para o lado “americanófilo”, como se dizia então, dentro do mapa da Guerra Fria e da campanha anti-comunista liderada pelos Estados Unidos. Essa campanha visava também os movimentos nacionalistas na América Latina e em outras latitudes e longitudes do planeta, como na África, no Oriente Medio e na Ásia, transformando-se na política de estímulo e apoio, por parte de Washington, de golpes e ditaduras sangrentas.
Em 1952 houve uma eleição decisiva no Clube Militar, em que a chapa nacionalista, defensora da criação da Petrobras e do monopólio estatal da exploração do petróleo, liderada pelo general Newton Estillac Leal, foi derrotada pela chapa da recém-criada “Cruzada Democrática”, liderada pelo general Alcides Etchegoyen, que defendia a parceria com os norte-americanos e tinha o apoio destes. A eleição marcou o progressivo distanciamento de muitos comandantes militares em relação a Vargas, fator chave na crise de 1954.
Na crise de agosto os ministros militares deram um ultimato ao presidente: ou ele renunciava ou seria deposto. Não aceitariam sequer o seu simples afastamento temporário, enquanto durasse a investigação sobre a morte do major Vaz. Na noite de 23 de agosto Vargas reuniu no Palácio do Catete o que lhe restava de apoio em seu ministério e mais alguns correligionários, entre eles Oswaldo Aranha. Este ofereceu-se para ficar do lado de Getúlio e resistirem à bala, só os dois, “como nos velhos tempos”. De madrugada, Getúlio Vargas mandou que todos se retirassem, inclusive Aranha, dizendo-lhe algo como “vai dormir, Osvaldo, eu já pensei em tudo”. Resistiu à bala, com um único tiro, que sustou o golpe em marcha.
Penso que, açulados pela campanha contra Getúlio Vargas na imprensa, os militares e os civis golpistas tampouco esperavam a reação popular que se seguiu. Ela foi decisiva para provocar o recuo do golpe.
Recuo? Depende. Ao assumir a presidência, o vice Café Filho afastou os ministros getulistas e nomeou outra penca de ministros ligados à UDN de Carlos Lacerda. Assim Café Filho levava adiante os planos e reivindicações dos que arquitetaram a derrubada de Vargas. Mas o novo presidente cometeu um erro que foi fatal para seus propósitos. Pensando em acalmar os quartéis, nomeou como Ministro da Guerra (como se chamava então o atual Ministro do Exército) um general de grande prestígio no meio militar, não ligado aos movimentos nacionalistas, que fora até mesmo simpático ao afastamento de Vargas, sob o signo de uma “pacificação” dos ânimos. Acontece que o novo ministro era também, desde sempre, um ferrenho legalista: o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott.
Para finalizar, lembro que Gregório Fortunato foi assassinado em 1962, na prisão em que cumpria pena de 25 anos pela morte de Vaz. Tinha um caderno de anotações que desapareceu, o que levantou a suspeita de queima de arquivo.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
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