Democracia coletiva no Brasil

Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*

Considerações sobre a disputa entre o Estado social e o Estado-plataforma.

De modo contundente, na largada do texto, podemos dizer que o Brasil enfrenta problemas históricos (racismo, patriarcalismo), estruturais (desigualdades colossais), antiquíssimos (elitismo, capacitismo, pensamento escravista) e pós-modernos: atavismo, negacionismos, fake news, descontrole do capital financeiro. Neste contexto, traremos uma primeira aproximação ao conceito de “democracia coletiva” – ao menos numa perspectiva complementar. Empregamos uma análise conceitual, intuitiva e criativa.

Chamaremos de “democracia coletiva” uma construção ideal (utópica) mas crível da democracia, e ainda que retida sob os marcos mais liberais da representação popular do poder instituído. Neste sentido, também seria uma resposta plausível para nós, especialmente no tempo político praticado entre 2022-2026, ao que denominamos de democracia reativa: luta pelo fortalecimento institucional sob as bases da urgente restauração dos postulados do Estado democrático de direito, no sentido do fortalecimento democrático, social, republicano e popular, como incisão de uma necessária desnazificação social (ADORNO, 1995), que se vincula aos melhores esforços da educação popular, e capaz de aliar política e técnica como substrato da liberdade e da emancipação (FREIRE, 1993).

Por democracia coletiva, além da própria recuperação e fortalecimento do Estado social e das salvaguardas constitucionais – justiça social (art. 193, caput, da Constituição Federal de 1988), função social da propriedade privada (art. 170, III, da Constituição Federal de 1988) –, entendemos haver uma série de mudanças e de ações legislativas e políticas de proteção, regulação (controle) e punição aos violadores do princípio democrático. No aspecto mais adstrito aos crimes cibernéticos contra a democracia, podemos mencionar a formulação legal prevista como disciplinarização das Big Techs, havendo a previsão da corresponsabilização criminal e pecuniária diante dos abusos e dos crimes cometidos no meio virtual.

A este rol, que, evidente, aqui não se esgota, inclui-se a eficácia na proteção e na promoção dos direitos, das garantias e das liberdades configuradas pela isonomia entre homens e mulheres, no enfrentamento e na mitigação de gravíssimos problemas sociais, culturais econômicos, como o feminicídio[i], o racismo, o escravismo evidenciados na cadeia de produção, no empobrecimento provocado pelas detrações dos direitos trabalhistas, na reforma da previdência, e tantas outras ações urgentes no sentido do “resgate da cidadania”, sob os marcos do Estado social desenhado na Constituição Federal de 1988.

O esforço analítico, que não se deslinda da realidade mais prosaica na vida privada ou pública, de todos nós, não quer olhar para o passado, no sentido idílico e condenatório da tecnologia – reconhecido como neoludita, próprio de Unabomber ou esposado em filosofia cínica (J. POSADAS, 1981) –, pois, ao contrário, recusar a modernidade e o futuro não só é ineficaz, inócuo, reacionário, como é insalubre ao processo civilizatório, atuando como forte veneno do esforço dialético e teleológico do futuro: as distopias atuais, aliás, são exatamente negacionistas do futuro. O esforço, ao menos nesta fase em que estamos, diante da democracia reativa – reaver as bases mínimas de segurança político-jurídica do Estado democrático de direito, na antevéspera do golpe de Estado de 2016 –, é um convite para abrirmos os olhos para o “futuro necessário”: popular, democrático, inclusivo, liberto das fake news fascistas.

Por isso, também podemos dizer que conhecemos a democracia, principalmente, pela consagração dos vencedores na disputa por votos, no pleito que deve consagrar a soberania popular, por meio da eficácia da cláusula pétrea que garante o voto livre, secreto e soberano (periodicamente). O que está certo, sobretudo, quando analisamos as últimas eleições (2018 e 2022): após 2018, o juiz que aprisionou um dos principais contendores (Lula) viria a ser entronizado como ministro da Justiça, a serviço do rival e vencedor daquele pleito; em 2022, com graves riscos ao próprio sistema eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atuou, inclusive, acima dos contornos do Estado de direito a fim de que a mínima democracia fosse assegurada.

As investidas em contrário foram de toda ordem, a começar pela fábrica de fake news – sem controle e livres de uma legislação específica (que só tem início agora no país)[ii] –, a última eleição trouxe à tona uma verdade absoluta, que, porém, vem sendo descartada: a intrínseca correlação entre democracia e a República, em especial porque, sob a égide da coisa pública, há que prevalecer o princípio da verdade e isto, por óbvio, não condiz com a mentira contada, forjada, planejada, a partir dessa imensa fábrica de fake news (“gabinete do ódio”) que nos assola todos os dias.

Por outro lado, ampliando-se o leque democrático, muito além dos sistemas de defesa da democracia, estão predicadas a natureza e o alcance do princípio democrático, que incluem, além de mecanismos, pressupostos e princípios, processos e procedimentos, também a garantia de que a democracia é pautada como direito fundamental – desde que contabilizemos o artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DHDUs).

Neste sentido, ainda entendemos que o constitucionalismo dirigente (CANOTILHO, 1990) nos forjou – desde o Processo Constituinte de 1985 – uma Constituição social/socialista derivada do constitucionalismo socialista da Espanha (1978) e de Portugal (1976). Este é outro debate, bem específico, que foge ao nosso esforço, entretanto, não é (ou não deveria ser) portador de nenhuma novidade (DÍAZ, 1993).

A história, no entanto, antecede ao que conhecemos mais de perto: a Constituição iugoslava (1953), seguida das constituições portuguesa (1976) e espanhola (1978), reafirmou os compromissos do Estado social como caminho salutar de convívio ético e civilizatório, obrigando-se ao poder público patrocinar meios e mecanismos necessários e eficazes ao descortínio de formas incrementadas de sociabilidade democrática.

Enfim, se a lógica não traiu a análise, essa é a força dialética que levou à ação e também redimensionou o Estado socialista, a partir da aurora do século XX. Portanto, uma conclusão possível é de que o movimento socialista do futuro, mas iniciado ontem, é o resultado da concreção do Estado democrático de direito social[iii]: a realidade do amanhã não abdica da utopia de hoje. Trata-se da dinâmica ou dos marcos históricos que conformam o Estado democrático de direito no pós-guerra. No entanto, podem ser outras, como salienta Jorge Miranda (1997), no sentido de que são quatro as linhas de força dominantes na sequência imediata das duas guerras mundiais.

Porém, mesmo que Jorge Miranda (1990) ressalte outros aspectos dessa profunda transformação pela qual passou o Estado ao longo do século XX – como a luta pela emancipação dos povos coloniais – é preciso destacar as respostas dadas aos regimes autoritários, configurando-se a defesa e a prevalência dos direitos humanos.

No seu conjunto, este seria o melhor link da democracia com a inteligência coletiva, uma vez que a soberania popular não é só fundamento do Estado democrático de direito como também é, em essência, um direito humano inexpugnável – como aposta histórica, seminal, certeira na esteira de que a democracia é um direito fundamental: toda pessoa tem o direito à participação democrática (art. 21 da DUDHs).

Por fim, a democracia coletiva também se equilibra no que podemos chamar de 5ª geração de direitos humanos: um clássico dos direitos humanos assentado no artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, já em 1948, porém, agora sob o foco dos tempos de avanço irrefreável da tecnociência e do poder econômico das Big Techs, sobretudo, na forma ampliada da financeirização do capital dominante e hegemônico.[iv]

Sem as ilusões de que a tecnologia é uma aliada constante da democracia, inclusive porque os algoritmos parecem sugestionados pelo pensamento racista e elitista (fascista), pensamos, concluímos, que há uma real, notória, verdadeira, interação entre os postulados indicados desde a origem da ideia de rede (MARTINEZ, 2001),[v] como se fossem princípios e suposições verificáveis tanto no final do século XX quanto na vigência deste breve século XXI: da comunicação todos-todos, da interação digital como instrumento político de dissolução do arbítrio e do aprofundamento democrático (LÉVY, 1998).

A democracia coletiva, portanto, apresenta-se como constructo apto ao ensejo de perfectibilidade, posto que estaria pautada entre a democracia virtual (Martinez, 2002) e a democracia reativa – antifascista, restauradora das condições básicas de sociabilidade, capacidade de interação inclusiva e de promoção da inteligência social.

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Lisboa, Almedina, 1990.

DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y sociedad democrática. Madrid, Taurus, 1998.

FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo, Cortez, 1993.

J. POSADAS. A ciência, os cientistas e a construção do socialismo. Editora Ciência, Cultura e Política, 1981.

LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência: o Futuro do Pensamento na Era da Informática. Rio de Janeiro, Editora 34, 1993.

______ O que é o virtual? São Paulo, Editora 34, 1996.

______ O digital e a inteligência coletiva. Folha de São Paulo, 06 de julho de1997.

______ A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo, Edições Loyola, 1998.

MARTINEZ, Vinício Carrilho. A rede dos cidadãos: a política na Internet. Tese de doutorado em Educação. São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2001.

_____ Democracia Virtual: o nascimento do cidadão fractal. 2ª Edição. Editora Práxis, São Paulo, 2002.

MIRANDA, J. (Org.). Textos históricos do Direito Constitucional. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1990.

Notas


[i] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/03/lula-prepara-pacote-para-mes-da-mulher-de-olho-em-efeito-politico-eleitoral.shtml. Acesso em 6.3.2023.

[ii] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/03/06/lei-de-servicos-digitais-europa-pl-das-fake-news.htm. Acesso em 6.3.2023.

[iii] O Estado Socialista o precedeu e o seguirá, como desdobramento possível – ao menos, esta é a intenção original do modelo de Estado português.

[iv] A forma-Estado no eixo dessa imbricação entre o Poder Público (ou sua negação) e o capital financeiro, necessariamente, traz outros desafios estruturais, porque que o próprio Estado Rentista é o maior beneficiário dessa estruturação político-econômica. Seria uma virtualidade aplicar os enormes rendimentos públicos advindos da especulação financeira, em Políticas Públicas de combate à fome e às desigualdades sociais? O rentismo poderia atuar em favor do Estado Social ou tudo não passaria de mera atualização do Estado Burguês, em que a expropriação suplanta os benefícios sociais? Isto também exige análise específica, para além do esforço aqui anunciado. Entretanto, pode-se consultar em: https://blogdaboitempo.com.br/2022/04/13/logica-disruptiva-do-capital-rentista/ & https://www.gentedeopiniao.com.br/politica/vinicio-carrilho/capitalismo-de-estado-rentista.  Acesso em 6.3.2023.

[v] Em suma, para Lévy, subsumir o individual no coletivo significa passar da inteligência coletiva ao coletivo inteligente: “A programação cooperativa do sofware no ciberespaço ilustra de maneira evidente a autopoiese (ou produção de si) da inteligência coletiva, especialmente quando o programa visa ele próprio a melhorar a infraestrutura de comunicação social (…) Navegar no ciberespaço equivale a passear um olhar consciente sobre a interioridade caótica, o ronronar incansável, as banais futilidades e as fulgurações planetárias da inteligência coletiva. O acesso ao processo intelectual do todo informa o de cada parte, indivíduo ou grupo, e alimenta em troca o do conjunto. Passa-se então da inteligência coletiva ao coletivo inteligente” (1996, p. 116-7).


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