Não houve debate algum

Francis Bacon, Três estudos para figuras na base de uma crucificação, 1944
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Por LUIZ EDUARDO SOARES*

O correto seria Lula recusar-se a participar com Jair Bolsonaro de qualquer entretenimento perverso do tipo que vimos na Band

Não houve debate algum. Quem poderia apresentar um projeto para um país em quatro minutos? Chamar de debate o que se viu é um escárnio, um desrespeito ao distinto público e uma heresia ante um conceito precioso -o debate, o diálogo- que, pelo menos no Ocidente, tem mais de dois mil e quinhentos anos. O espetáculo que vimos ontem na Band foi um misto de entretenimento lúdico (aliás, pouco atraente nessa modalidade) e reality show, em que a audiência contempla humilhações e ataques mútuos, salpicados por platitudes e refrões doutrinários.

Excepcionalmente, cintila uma ideia, uma sentença relevante, um gesto verdadeiramente genuíno e significativo. Quem está por baixo atira para cima: a prioridade, nesse caso, é aparecer e causar uma boa impressão. Quem está por cima, tenta se equilibrar, não fazer muita marola, seja pensando em possíveis apoios no segundo turno, seja para não desgastar seu capital político – as intenções de voto acumuladas.

Sucederam-se performances estudadas que visam conquistar a audiência mais ou menos do mesmo modo que a propaganda de mercadorias procura sensibilizar consumidores. Por isso, todos avaliam cada palavra, cada gesto, nas famigeradas qualis (pesquisas qualitativas, em geral, grupos focais). Postos na prateleira, os produtos brigam entre si para se diferenciarem. Por isso, o primeiro efeito do “Debate”, assim como da “Entrevista com o candidato” (no Jornal Nacional), é neutralizar o fascismo e a singularidade de nosso momento histórico. Imaginem um genocida sentado ao lado de pessoas razoáveis que o entrevistam, ou de pé ao lado de outros candidatos, respondendo a perguntas comuns, seguindo regras comuns, inscrevendo-se na série que dá sentido aos personagens e que os iguala antes de diferenciá-los.

Nesse jogo, a monstruosidade desaparece. Todos se tornam veículos de propostas para o Brasil e vocalizam ideias aparentemente tão legítimas quanto as demais. O monstro fala português, usa a voz como os demais seres humanos, move-se de um modo parecido com quem está ao lado. Pronto, a excepcionalidade está anulada, os crimes reduzem-se a opiniões -cada um tem a sua-, os insultos e as bravatas são idiossincrasias de um homem como os outros, as aberrações são absorvidas e absolvidas, transformam-se em virtudes de um homem comum espontâneo ou meras grosserias de um capitão rude.

As mentiras mais despudoradas não passam de pontos de vista ou “verdades alternativas”. A máquina da política institucional engatada na mídia corporativa liquidou a diferença matricial sem cujo reconhecimento não pode haver debate, o qual, por sua vez, só poderia acontecer entre atores publicamente comprometidos com a aniquilação do fascismo. Facismo que é, afinal de contas, o avesso do debate e da política.

Como todos e todas sabemos, o dilema brasileiro, hoje, é Lula ou o fascismo. Ou seja, não se trata de polarização, porque as posições em causa não são polos de uma mesma linha -são incomensuráveis. Lula não se saiu bem no “debate” da Band. É verdade. Mas a pergunta decisiva é a seguinte: Como é que se poderia “sair bem” quando o único gesto adequado seria chamar a abominação pelo nome?

Sabendo-se, entretanto, que esse nome se esvaziaria se fosse pronunciado como uma opinião entre outras, numa roda que liquidifica, por sua estrutura, a diferença essencial. Encenar um debate impossível, igualando a monstruosidade e a defesa da vida como polos em disputa normalizada e normatizada, determina a priori o triunfo da morte, qualquer que seja o resultado nas medições da opinião pública. O fascismo vence quando assume a face humana que o neutraliza.

O correto seria Lula recusar-se a participar com Jair Bolsonaro de qualquer entretenimento perverso do tipo que vimos na Band. Mas se fizesse isso, seria crucificado por seus adversários como aquele que se nega ao diálogo, aquele que se esconde, a quem faltam respostas e projetos. Os abutres se abateriam sobre a cadeira vazia e explorariam a seu favor a decisão mais sensata. Portanto, só resta a Lula aceitar esse calvário para reduzir danos, porque o que está em jogo é o futuro do país. Aos analistas, cabe por o dedo na ferida.

Se as instituições não funcionaram ao permitir que tantos crimes fossem perpetrados pelo titular do poder executivo, a promoção de debates estende essa cumplicidade, legitimando a ignomínia. Não podemos assistir passivamente à negação do abismo que separa o confronto com a barbárie da saudável divergência. Bolsonaro não é um simples candidato, é uma ameaça: a ameaça de perpetuação de um crime continuado.

*Luiz Eduardo Soares foi secretário nacional de segurança pública (2003). Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar – Segurança pública e direitos humanos (Boitempo).

 

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