Não houve debate algum

Francis Bacon, Três estudos para figuras na base de uma crucificação, 1944
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ EDUARDO SOARES*

O correto seria Lula recusar-se a participar com Jair Bolsonaro de qualquer entretenimento perverso do tipo que vimos na Band

Não houve debate algum. Quem poderia apresentar um projeto para um país em quatro minutos? Chamar de debate o que se viu é um escárnio, um desrespeito ao distinto público e uma heresia ante um conceito precioso -o debate, o diálogo- que, pelo menos no Ocidente, tem mais de dois mil e quinhentos anos. O espetáculo que vimos ontem na Band foi um misto de entretenimento lúdico (aliás, pouco atraente nessa modalidade) e reality show, em que a audiência contempla humilhações e ataques mútuos, salpicados por platitudes e refrões doutrinários.

Excepcionalmente, cintila uma ideia, uma sentença relevante, um gesto verdadeiramente genuíno e significativo. Quem está por baixo atira para cima: a prioridade, nesse caso, é aparecer e causar uma boa impressão. Quem está por cima, tenta se equilibrar, não fazer muita marola, seja pensando em possíveis apoios no segundo turno, seja para não desgastar seu capital político – as intenções de voto acumuladas.

Sucederam-se performances estudadas que visam conquistar a audiência mais ou menos do mesmo modo que a propaganda de mercadorias procura sensibilizar consumidores. Por isso, todos avaliam cada palavra, cada gesto, nas famigeradas qualis (pesquisas qualitativas, em geral, grupos focais). Postos na prateleira, os produtos brigam entre si para se diferenciarem. Por isso, o primeiro efeito do “Debate”, assim como da “Entrevista com o candidato” (no Jornal Nacional), é neutralizar o fascismo e a singularidade de nosso momento histórico. Imaginem um genocida sentado ao lado de pessoas razoáveis que o entrevistam, ou de pé ao lado de outros candidatos, respondendo a perguntas comuns, seguindo regras comuns, inscrevendo-se na série que dá sentido aos personagens e que os iguala antes de diferenciá-los.

Nesse jogo, a monstruosidade desaparece. Todos se tornam veículos de propostas para o Brasil e vocalizam ideias aparentemente tão legítimas quanto as demais. O monstro fala português, usa a voz como os demais seres humanos, move-se de um modo parecido com quem está ao lado. Pronto, a excepcionalidade está anulada, os crimes reduzem-se a opiniões -cada um tem a sua-, os insultos e as bravatas são idiossincrasias de um homem como os outros, as aberrações são absorvidas e absolvidas, transformam-se em virtudes de um homem comum espontâneo ou meras grosserias de um capitão rude.

As mentiras mais despudoradas não passam de pontos de vista ou “verdades alternativas”. A máquina da política institucional engatada na mídia corporativa liquidou a diferença matricial sem cujo reconhecimento não pode haver debate, o qual, por sua vez, só poderia acontecer entre atores publicamente comprometidos com a aniquilação do fascismo. Facismo que é, afinal de contas, o avesso do debate e da política.

Como todos e todas sabemos, o dilema brasileiro, hoje, é Lula ou o fascismo. Ou seja, não se trata de polarização, porque as posições em causa não são polos de uma mesma linha -são incomensuráveis. Lula não se saiu bem no “debate” da Band. É verdade. Mas a pergunta decisiva é a seguinte: Como é que se poderia “sair bem” quando o único gesto adequado seria chamar a abominação pelo nome?

Sabendo-se, entretanto, que esse nome se esvaziaria se fosse pronunciado como uma opinião entre outras, numa roda que liquidifica, por sua estrutura, a diferença essencial. Encenar um debate impossível, igualando a monstruosidade e a defesa da vida como polos em disputa normalizada e normatizada, determina a priori o triunfo da morte, qualquer que seja o resultado nas medições da opinião pública. O fascismo vence quando assume a face humana que o neutraliza.

O correto seria Lula recusar-se a participar com Jair Bolsonaro de qualquer entretenimento perverso do tipo que vimos na Band. Mas se fizesse isso, seria crucificado por seus adversários como aquele que se nega ao diálogo, aquele que se esconde, a quem faltam respostas e projetos. Os abutres se abateriam sobre a cadeira vazia e explorariam a seu favor a decisão mais sensata. Portanto, só resta a Lula aceitar esse calvário para reduzir danos, porque o que está em jogo é o futuro do país. Aos analistas, cabe por o dedo na ferida.

Se as instituições não funcionaram ao permitir que tantos crimes fossem perpetrados pelo titular do poder executivo, a promoção de debates estende essa cumplicidade, legitimando a ignomínia. Não podemos assistir passivamente à negação do abismo que separa o confronto com a barbárie da saudável divergência. Bolsonaro não é um simples candidato, é uma ameaça: a ameaça de perpetuação de um crime continuado.

*Luiz Eduardo Soares foi secretário nacional de segurança pública (2003). Autor, entre outros livros, de Desmilitarizar – Segurança pública e direitos humanos (Boitempo).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES