Despossessão – o performativo na política

Arthur Köpcke, Jogo de xadrez
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Por JUDITH BUTLER & ATHENA ATHANASIOU*

Prefácio das autoras ao livro recém-editado no Brasil

1.

Quando Judith Butler e Athena Athanasiou se conheceram, em dezembro de 2009, em Atenas, Grécia, Judith oferecia um curso para o Nicos Poulantzas Memorial, do Poulantzas Institute, afiliado ao Syriza (Coalização da Esquerda Radical), e também se apresentava no Departamento de Antropologia Social da Universidade Panteion, onde Athena é professora.

Começamos uma conversa sobre política, teoria, corporeidade e novas formações políticas de esquerda, concentrando-se, primeiro, na questão do quanto os velhos políticos de esquerda nunca conseguem responder às questões feministas e queer no que diz respeito a resistir à precariedade. Esta primeira conversa (publicada na Grécia), “Questioning the Normative, Reconfiguring the Possible: Feminism, Queer Politics and the Radical Left”, foi editada no volume Performativity and Precarity: Judith Butler in Athens (Atenas: Nissos, 2011).[1]

O trabalho de Athena Athanasiou se concentra na teoria feminista e no pensamento social radical, trazendo perspectivas de Luce Irigaray e de Michel Foucault para considerar, criticamente, as relações entre o masculinismo, a tecnologia e o humano. A publicação de Athena em coedição com Elena Tzelepis, Rewriting Difference: Luce Irigaray and the “Greeks” (Suny Press, 2010), parte do tropo derivado do mito da Grécia clássica em direção ao contexto contemporâneo transnacional, pós-colonial e corpóreo de práticas críticas.

Na Grécia, ela publicou o livro Life at the Limit: Essays on the Body, Gender, and Biopolitics (Ekkremes, 2007),[2] no qual oferece um relato pós-humano e pós-psicanálise lacaniana da tecnologia, da diferença, da corporeidade e dos corpos do conhecimento, concentrando-se em como esses elementos configuram a organização social contemporânea da vivibilidade, do desejo e da subjetividade generificada e sexualizada.

Ela também escreveu um livro (Crisis as a “State of Exception”: Critiques and Resistances. Savvalas, 2012)[3] sobre as dimensões corporais da crise da dívida grega; ali, ela endereça o caráter indefinido do estado de exceção a uma instância da racionalidade do governo neoliberal, conduzida em nome da emergência econômica e envolvendo forças de racialização e feminilização que estruturam fundamentalmente a condição de “tornar-se precário”.

Seu trabalho se concentra nas formas da desconstrução queer e nas formas feministas de política performativa, incluindo demonstrações públicas não violentas de luto e de resistência a regimes biopolíticos contemporâneos, tais como o trabalho transnacional e antimilitarista do movimento Women in Black. Considerando manifestações concretas de performatividade de gênero subversivas, Athena Athanasiou se inspirou na filosofia ético-política de Judith Butler, em seu trabalho sobre gênero e performatividade queer, sobre corporalidade, linguagem, violência normativa e violência de desrealização, sobre a vulnerabilidade da vida humana e a questão do que torna uma vida vivível.

E Judith Butler foi desafiada pelas perspectivas antropológicas e filosóficas de Athena Athanasiou, como as suas leituras de Irigaray e Heidegger e os desafios geopolíticos do neoliberalismo que foi tão agudamente registrado na Grécia. Como Judith, Athena se engajou em relatos não soberanos de agência, de relacionalidade do “eu”,[4] da liberdade com os outros, em questões de reconhecimento e desejo, assim como nas implicações da exposição corporal de pessoas generificadas, sexualizadas e racializadas. Nossa conversa explorou insistentemente essas questões, enquanto buscávamos transmitir e mapear o trabalho político e afetivo da agência crítica.

2.

Começamos a conversa com considerações sobre a posição pós-estruturalista que compartilhamos, notadamente a ideia de que a unidade do sujeito serve a uma forma de poder que precisa ser desafiada e desfeita, significando um estilo de masculinismo que apaga a diferença sexual e atua como senhor no domínio da vida.

Ambas reconhecemos que um pensamento responsável a respeito da ética e da política apenas pode emergir onde a soberania e a unidade do sujeito podem ser efetivamente desafiadas e que fissurar o sujeito, ou constitui-lo em sua diferença, prova-se central para uma política que desafia, de formas muito específicas, tanto a propriedade quanto a soberania.

No entanto, por mais que prezemos as formas de responsabilidade e resistência que emergem de um sujeito “despossuído” – aquele que admite os vínculos sociais diferenciados pelos quais é constituído e aos quais está obrigado –, também estávamos muito atentas para o fato de que a despossessão constitui uma forma de sofrimento para pessoas deslocadas, colonizadas, e, portanto, não pode ser um ideal político sem ambiguidades. Começamos pensando juntas sobre como formular uma teoria política da performatividade que pudesse levar em conta a versão da despossessão que valorizamos, assim como a versão à qual nos opomos.

3.

Este livro representa um diálogo abrangente que aconteceu durante muitos meses em reuniões, conversas e textos, principalmente por e-mail, até nos encontrarmos em Londres em fevereiro de 2011 para planejar qual seria o caminho dessa troca. Durante a reunião em Londres, a revolução egípcia estava em plena ebulição, e nas últimas semanas da escrita deste texto conjunto, a esquerda grega apresentou um sério desafio para a política neoliberal de austeridade, abrindo a possibilidade de uma nova esquerda europeia se opor à distribuição diferencial de precariedade e à supressão tecnocrática da democracia.

Nossas reflexões registram esses acontecimentos de maneira oblíqua, e, no curso desta troca, referimo-nos a muitos movimentos políticos, demonstrações e atos que nos ajudaram a formular o que entendemos por política do performativo. Nossas abordagens convergem e diferem. A posição geopolítica de Athena Athanasiou configura suas reflexões sobre modos de resistência e luto público, e ela se baseia no trabalho de Irigaray, na crítica de Heidegger à técnica, na noção foucaultiana de biopolítica e na psicanálise pós-lacaniana.[5]

O trabalho de Judith Butler emerge da leitura de Michel Foucault, mas também da teoria dos atos de fala, da teoria crítica de gênero, do ativismo queer e de uma psicanálise heterodoxa. Ambas retornamos aos mitos gregos para compreender o presente, o que significa que esses mitos são avivados de novas formas, como no extraordinário filme que discutimos, Strella (direção de Panos Koutras, 2009), no qual uma trabalhadora sexual transgênero vive uma versão contemporânea do mito de Édipo na Atenas do século XXI.

Durante esse caminho, procuramos formas convergentes de apresentar Hannah Arendt para uma esquerda com a qual ela não teria concordado e adentramos questões sobre afeto e ética pensando no quadro político por meio de formas recentes de mobilização política. Juntas, retornamos à questão “o que faz a responsividade política possível?”. A condição de ser tocado pelo que se vê, pelo que se sente e pelo que se vem a conhecer é sempre uma condição na qual se é transportado para outro lugar, outra cena, ou para um mundo social em que não se é o centro.

E essa forma de despossessão é constituída como uma forma de responsividade que dá origem a ações de resistência, de aparecer junto com outros, em um esforço de demandar o fim da injustiça. Essa injustiça assume uma forma de despossessão sistemática, por exemplo, de pessoas forçadas à imigração, ao desemprego, ao desabrigo, à ocupação e à dominação. Assim, abraçamos a questão de como se tornar despossuído da soberania do “eu” e adentrar formas de coletividade que se opõem a formas de despossessão e expulsam sistematicamente essas populações dos modos coletivos de pertencimento e justiça.

*Judith Butler é professora de filosofia na University of California, Berkeley. Autora, entre outros livros de Vida precária: os poderes do luto e da violência (Autêntica).

*Athena Athanasiou é professora de Antropologia social e teoria dos gêneros na Panteion University of Social and Political Sciences.

Referência


Judith Butler e Athena Athanasiou. Despossessão: O performativo na política. Tradução: Batriz Zampieri. Revisão técnica: Carla Rodrigues. São Paulo, Unesp, 2024, 254 págs. [https://amzn.to/4fSY0n5]

Notas


[1] Amfi svitontas to “Kanoniko,” Anadiamorfonontas to Dynato: Feminismos, Queer Politiki kai Rizospastiki Aristera. In: Epitelestikotita kai Episfaleia: I Judith Butler stin Athina.

[2] Zoe sto Orio: Dokimia gia to Soma, to Fylo kai ti Viopolitiki.

[3] I Krisi os “Katastasi Ektaktis Anagkis”: Kritikes kai Antistaseis.

[4] Em traduções anteriores, sempre que possível, “self-”, quando aparece como prefixo, tem sido transportado para o prefixo em português “auto-”, enquanto “self ”, substantivo, vem sendo traduzido como “si mesmo”, seguindo, por exemplo, a solução de “soi-même”, do francês, opção bem estabelecida na língua portuguesa em diferentes contextos filosóficos. Na conversa deste livro, no entanto, percebemos que essa solução apresentava limites, o que nos levou a preferencialmente traduzir self como “eu” para acentuar que ambas estão operando com a relação entre “eu” e “tu” a fim de pensar a relação com a alteridade. Para traduzir “I”, usamos a forma Eu, em maiúscula, indicador da soberania individual que o termo carrega.

[5] Cf. Athanasiou, Athena. Technologies of Humanness, Aporias of Biopolitics, and the Cut Body of Humanity. Differences: A Journal of Feminist Cultural Studies, v.14, n.1, p.125-62, 2003.


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