Os sertões

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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

Considerações sobre o livro de Euclides da Cunha, quando se completam 120 anos de sua publicação

A experiência da Guerra de Canudos, para Euclides da Cunha, confere uma dimensão especial ao sentido da viagem, que, embora não negue implicações românticas, assume contornos próprios. O tema, para ele, tem o cunho de um outro mito, o mito da busca da autenticidade na aventura viril. É indo rumo ao inóspito que o caráter é temperado, como o aço, através de provações quase sobre-humanas.

Desde os primeiros escritos, constituídos por poemas que uma nota da mão de Euclides adulto atribui aos 14 anos, o sertão está presente e já é um anseio predominante em seu espírito.

Várias vezes Euclides expressaria, escrevendo a amigos e familiares, uma velha fantasia sua, recorrente, e que virá à tona em certos passos de sua biografia: a de internar-se pelo país adentro, abandonando os centros urbanos. Assim seria, sucessivamente, engenheiro de obras públicas no interior de São Paulo, repórter na Guerra de Canudos e, mais tarde, explorador na missão ao Alto Purus; todas elas posições que despendeu esforços para conquistar. Em sua imaginação, tal como se manifesta nos poemas e na epistolografia, é explícito o desejo de evasão rumo aos sertões – tal como era de praxe dizer e escrever à época, assim no plural –, o que vinha de longe, radicando na educação absorvida na Escola Militar.

Nesse período, dominado pela galomania da Belle Époque, tal traço compõe o perfil de vários intelectuais desviantes, que voltam as costas às galas dos salões e às modas da capital, então em acelerado processo de modernização. Euclides não era o único e, dentre os vários desse tipo que sua geração na Escola produziu, talvez o fruto mais característico seja seu colega Cândido Mariano da Silva Rondon, instalando as linhas de telégrafo que através do sertão cingiram o país de Sul a Norte, além de ser pioneiro na proteção aos índios e criador do indigenismo.

Os sertões vêm a ser para Euclides um misto de Pasárgada espartana e Ilhas Afortunadas, lugar da plenitude, da realização pessoal e do exercício das virtudes viris, removido da urbana Sodoma. Esta se encarnava na única cidade digna desse nome no Brasil de então, em que mesmo São Paulo mal atingia os 200 mil habitantes, e que era a capital, Rio de Janeiro, onde os desmandos dos novos donos do poder eram ostensivos.

Deixaria o Exército, reformando-se em 1896 para exercer a engenharia nas obras públicas do Estado de São Paulo, o que significava morar em cidades pequenas – São Carlos do Pinhal, São José do Rio Pardo, Lorena e depois Guarujá – e viajar incessantemente, de trem e a cavalo, ausentando-se dos confortos do lar e expondo-se às intempéries por longos períodos. Era capaz de fazer autocrítica, pois numa carta dá-se ao balanço desses impulsos: “Sou incorrigível, meu caro João Luís: não sei quando acabarei de iniciar e destruir carreiras” – o que faria sem cessar, até à morte.

Dentre as carreiras malogradas estão a política e o magistério, ambas tentativas de sedentarização desse nômade contumaz. No primeiro episódio, não seria, embora o desejasse, deputado constituinte estadual paulista. No segundo, foi seu grande amigo e correspondente maior Francisco Escobar, tarimbado político, que tentou fazê-lo deputado federal por Minas Gerais. Naquele momento em alta na vida pública, Escobar também cogitou em Euclides para ministro da Viação, projeto que igualmente gorou.

Quanto ao magistério, Euclides, que já dera aulas na Escola Militar em 1892, frustrara-se sucessivamente ao tentar atuar na Escola Militar do Rio Grande do Sul, na Politécnica paulista e nos ginásios de Campanha e de Campinas. Mas finalmente o conseguiria semanas antes de morrer, no colégio Pedro II (Ginásio Nacional), após mal contado concurso em que Farias Brito tiraria o primeiro lugar, mas Euclides, graças ao empenho de amigos poderosos, seria nomeado. Ao episódio nosso autor se referiu como “o mais atrapalhado, confuso e inconsequente dos concursos”. Acrescentando a zombaria: “Não fosse ele um concurso de lógica! (…).”

Na fase de definição profissional, enquanto pondera diferentes soluções e hesita entre elas, passaria um período tentando trabalhar na fazendola do pai e ser “roceiro”; mas tampouco se adaptaria.

Bem mais tarde, já famoso, mesmo após a publicação de Os sertões não desdenharia da quimera desbravadora ao deparar-se com a possibilidade de participar da missão de reconhecimento do Alto Purus então em preparo, que viria a chefiar. Ainda haveria aventuras em seu futuro, como essa jornada à Amazônia que o reteve por 18 meses longe de casa, numa verdadeira expedição cheia de percalços, executada a pé em longas marchas e num batelão que percorreu as vias fluviais. O contato com aquelas terras, exóticas para ele, espicaçaria sua inteligência e resultaria em escritos invulgares, bem como no projeto, irrealizado, de dedicar um livro à região. Mas escreveu vários ensaios, que formariam a primeira parte de À margem da história. De todos esses ensaios, “Judas-Asvero” e “Os caucheros” têm sido considerados como dignos de figurar entre seus trabalhos mais valiosos, bem como entre os mais valiosos que a Amazônia já suscitou.

Mas bem antes disso ingressaria de corpo presente no território de seus devaneios tendo por ímã a Guerra de Canudos, para onde seguiria, como vimos, na qualidade repórter de O Estado de S. Paulo em 1897.

 

Canudos

Dois artigos da autoria de Euclides da Cunha – ou um artigo em duas partes levando o título comum de “A nossa Vendeia” – são estampados no jornal O Estado de S. Paulo no ano de 1897. Saem quando lavra o alarme nacional causado pela derrota e debandada da 3ª. Expedição contra Canudos. O título estabelece uma comparação que ficaria célebre e seria repetida por todos, ao equiparar o levante na Bahia com aquele de caráter religioso e contrarrevolucionário coligando camponeses e nobres em reação à Revolução Francesa, em 1793.

Não foi, portanto, de surpreender quando o jornal paulista incumbiu o articulista de ser seu correspondente de guerra especialmente enviado ao palco dos acontecimentos. Por essa época, já as principais folhas do Rio de Janeiro e da Bahia se tinham adiantado a O Estado de S. Paulo e mandado os seus correspondentes, publicando regularmente a cobertura dos acontecimentos a partir de julho e agosto.

Assim é que Euclides, embora a essa altura já reformado do Exército, seguiria finalmente para o sertão acompanhando o marechal Machado Bittencourt, após trajeto de navio entre 3 e 7 de agosto, data da chegada a Salvador.

Deixando Salvador em 30 de agosto, seguiria de trem por Alagoinhas até Queimadas, dali cavalgando via Tanquinho, Cansanção e Quirinquinquá até Monte Santo, de onde atingiria Canudos em 16 de setembro. Vai mandando reportagens sob o título de Diário de uma expedição, descrevendo a viagem e datando-as de suas várias etapas, passando pelas novas da guerra a que assistiu de corpo presente, até deixar Canudos em 3 de outubro.

Tais reportagens, começando já a bordo do navio Espírito Santo, que conduzia tropas no percurso Rio de Janeiro-Bahia, impressionam por serem tão bem escritas, quando se sabe que as condições materiais de trabalho eram penosas, e piorariam a partir da capital. Escreveria ao embalo do trem, em lombo de montaria ou, literalmente, no joelho, enquanto vivia em barracas no acampamento militar, sob o troar da metralha. Já em Salvador fora tocado pelo testemunho de um jagunço de 14 anos, feito prisioneiro. Este negara o que os inquisidores sugeriam, que o Conselheiro fazia milagres e que garantia a ressurreição dos mortos em combate. Indagado, então, quanto ao que o Conselheiro prometia como recompensa aos canudenses que arriscavam a vida, respondera: “Salvar a alma.” Surpreendido, Euclides observa: “… não mentem, não sofismam e não iludem, naquela idade, as almas ingênuas dos rudes filhos do sertão”.

Esse é o primeiro sinal de que a inteligência de Euclides está prestes a captar algum engano no ar. Penetrando no sertão e chegando até Canudos, o escritor vai gradativamente intensificando esses sinais, e mitigando o entusiasmo patriótico que no início demonstrara, sem todavia perdê-lo de vez. Desviando-se dos demais repórteres, fará reflexões sobre o cunho equivocado da acolhida a bala dada aos canudenses, quando outro tipo de tratamento mais civilizado poderia resolver os problemas. E dali a um palmo está o surgimento da admiração que por eles passa a manifestar.

Entre muitas de suas perspicazes anotações, registra, mais para o fim da campanha, que as tropas e mesmo os oficiais abandonariam a farda e combateriam à paisana, a maioria passando a adotar as folgadas bombachas gaúchas.

Suas observações coincidem com o que se pode contemplar nas fotos provindas da objetiva de Flávio de Barros, pois, como se vê, não eram só as tropas do Rio Grande do Sul que assim trajavam. A metamorfose é profunda: “A cor muda revestindo-se de tons ásperos de bronze velho; como que mirram as carnes e os ossos incham; rapazes elegantes transformam-se rapidamente em atletas desengonçados e rígidos…”.

E Euclides continua, propondo um neologismo para dar conta do processo: “Quase que se vai tornando indispensável a criação de um verbo para caracterizar o fenômeno. O verbo ‘ajagunçar-se’, por exemplo. Há transformações completas e rápidas”. Tal fenômeno, como se sabe, é largamente explorado e com grande eficácia no trecho final de Os sertões, servindo de concretização para a metáfora de uma guerra fratricida, em que ambos os lados tendem ao denominador comum não só na indumentária mas até fisicamente.

 

O “livro vingador”

Voltando da guerra, Euclides dedica-se a acumular uma notável gama de saberes para enfrentar seu objeto; e só em 1902, cinco anos depois, seu “livro vingador”, como ele mesmo o denominou, é lançado, com êxito fulminante. É com a primeira parte, intitulada “A Terra,” abrindo a narrativa como um majestoso pórtico, esplêndido em suas galas literárias, que o leitor entra em contato com Os sertões.

Considerando a região de Canudos de três pontos de vista, a saber, o topográfico, o geológico e o meteorológico, o autor a trata com paixão, dando margem a imponentes quadros naturais. Os rios se precipitam, saltam e tombam em catadupas, enquanto a terra firme imita a movimentação fluvial nas contorções de seus acidentes e nos embates entre as diferentes camadas geológicas que a sustentam. Em suma, uma paisagem extraordinária, que mais parece obra da mão do homem, mas em escala monumental, à feição de menires colossais ou ruínas de coliseus ciclópicos.

Mas tudo isso é visto de tão alto e de tão longe que só se deixa identificar através de uma espécie de olhar de Deus, vislumbrando um deserto imemorial, morto de sede, morto de insolação. As próprias forças cósmicas só podem ser expressas por antíteses.

O flagelo das secas merece especial atenção, dedicada sucessivamente a várias hipóteses sobre sua gênese, que vão desde a influência das manchas solares até o peculiar regime dos ventos. Mais adiante passará das hipóteses a propostas de solução.

As plantas da Caatinga se desenvolvem entre dois meios desfavoráveis, quais sejam, o terreno árido e o calor do Sol. Assim, suas mutações adaptativas vão todas no sentido de proteger-se da morte por sede e por insolação. Mas as estratégias defensivas variam: atrofiar-se, resultando em nanismo que expõe menos superfície às intempéries; enterrar-se, e mal aparecer acima do solo; ou congregar-se em plantas sociais, retendo com suas raízes emaranhadas no subsolo a água e a terra, além de reforçar a segurança mútua.

O autor, em suma, conclui que o sertão de Canudos é único, pois suas características não coincidem exatamente com nenhuma taxonomia pré-existente, ao enfatizar como “a natureza se compraz em um jogo de antíteses”.

Do meio físico, o autor passa ao exame das etnias. A questão primacial – e por isso a mais complexa – no estudo do homem brasileiro é para ele a mestiçagem, nó conceitual com que se debatiam à época todos os pensadores do país. Dela resultou o sertanejo, com suas características próprias, de corpo e de espírito, herdadas do embate entre as três etnias que lhe deram origem. Tais características, segundo o autor, implicam em vantagens e desvantagens. Entre as primeiras, enumera a adaptação ao meio hostil, a resistência, o estoicismo. Entre as segundas, conta o fanatismo religioso, a superstição, o equilíbrio psíquico instável, além de um considerável atraso com relação à marcha da civilização.

O determinismo que preside a essa minuciosa análise do meio físico e dos componentes étnicos vai eclodir na pessoa de Antônio Conselheiro. Com efeito, este constituiria uma síntese do processo histórico em que as correntes de povoamento resultaram, através da miscigenação no isolamento.

O diagnóstico do Conselheiro é contraditório, o leitor percebendo a hesitação do autor entre considerá-lo um grande homem e decretá-lo “doente grave,” afetado de paranoia. “Condensando o obscurantismo de três raças,” a pessoa do condutor de povos “cresceu tanto que se projetou na história”.

Tentando elucidar a origem da Guerra de Canudos, Euclides mostra como o advento da República acarreta alterações que perturbam o ânimo dos conselheiristas: novos impostos, separação entre Igreja e Estado, liberdade de culto e instituição do casamento civil, que contradizia frontalmente um sacramento católico.

Ao término da guerra, como vimos, os defensores não eram mais que quatro. Sempre lembrado, esse final inglório tornou-se representativo daquela que foi uma guerra de extermínio contra uma população inerme.

O cadáver de Antônio Conselheiro, que morrera de doença no dia 22 de setembro, pouco antes do final, foi exumado. Sua cabeça foi cortada e levada para a Faculdade de Medicina da Bahia para ser autopsiada, com a intenção de descobrir-se a origem de seus descaminhos, o que, segundo rezavam as teorias lombrosianas então em vigor, podia ser inferido a partir das dimensões do crânio e da dissecação do cérebro. Entretanto, o laudo oficial furtou-se a apresentar alguma conclusão definitiva, adensando o mistério, para desapontamento de quantos queriam responsabilizar algo palpável, como a anatomia do líder.

 

Chacina

A Guerra de Canudos acabaria por revelar a ignomínia de uma chacina de pobres-diabos. Tornou-se evidente que não houvera conspiração alguma e que esse bando de sertanejos miseráveis não tinha qualquer ligação com os monarquistas instituídos – gente branca, urbana e de outra classe social, com horror a “jagunços” e “fanáticos” –, nem qualquer apoio logístico, seja no país, seja no exterior.

A reviravolta resultante foi notável: a opinião mudou de lado e passou a lamentar o massacre de valentes compatriotas numa luta fratricida. Ademais, deixou de ser segredo que a conduta do Exército estivera longe de ser irreprochável. Começa a ser revelada a prática de degolar em público os prisioneiros indefesos, sancionada por todos, inclusive pelos comandantes.

Com a Guerra de Canudos, completa-se o processo de consolidação do regime republicano. Graças a ela, exorcizou-se o espectro de uma eventual restauração monárquica. Posteriormente, tendo à vista os testemunhos, pode-se dizer que a opinião pública foi manipulada e que os canudenses serviram de bode expiatório nesse processo. Eles desempenharam involuntariamente o papel de adversário comum a todos, aquele que se enfrenta coletivamente e que permite forjar a união nacional. À falta de um inimigo externo, capaz de promover a coesão do corpo social e político, infalível em caso de guerra internacional, suscitou-se um inimigo interno, com invulgar eficácia.

 

O livro

Cinco anos, como é sabido, ou um pouco menos computando os trâmites editoriais, foram necessários para a verdadeira metamorfose que vai das reportagens a Os Sertões: cinco anos e uma grande ambição. A massa de informações científicas e históricas acumuladas no livro aponta para o risco da dispersão. Mas, ali reunidas, ganham uma certa unificação, que lhes é conferida pelo estilo naturalista, então predominante na literatura brasileira, junto com um tratamento parnasiano da paisagem. A mescla de descrição impessoal com preocupação genética, à maneira do Naturalismo, é posta aqui a serviço da crônica de uma guerra. E a guerra, como se sabe, é literariamente a figuração do drama, ou confronto entre dois lados.

Como que por contaminação da guerra que será narrada depois das duas primeiras partes, a formação da “Terra” na primeira parte e a do “Homem” na segunda parte são igualmente tratadas como um drama. No que concerne à Terra, os seres da natureza, antropomorfizados, são dotados de sentimentos ou mesmo de desígnios. No caso do homem, o tema central é o confronto feroz de três raças em disputa de hegemonia. E, como ocorre amiúde nas obras naturalistas, as ideias e as teorias são a cada passo postas em relevo, adquirindo autonomia. O cientificismo, o determinismo, o evolucionismo, a noção da linearidade do progresso, a preocupação com os fatores hereditários, tudo isso tem frequentemente voz ativa na narrativa. Por isso, o caráter polifônico do livro em seu conjunto é um primeiro elemento de composição que importa reter.

O segundo elemento é constituído pela intertextualidade. Ao longo das páginas, e é o que lhe dá fôlego enciclopédico, autores e textos são incessantemente citados e submetidos a discussão. Em “A Terra”, são mobilizados peritos em geologia, em meteorologia, em botânica, em zoologia, em física, em química. Em “O Homem”, o mais polêmico e que gera toda espécie de conjecturas, são passados em revista escritos de etnologia, de história da colonização, de folclore, de psiquiatria, de neurologia, de sociologia. Na parte de “A Luta”, o autor recorre não somente a suas próprias reportagens e anotações em cadernetas de campo, mas também aos registros de outros correspondentes, às ordens do dia do Exército, aos relatórios de governo.

Entre esses dois elementos, que sem se opor se complementam, a dificuldade de lidar com uma tal avalanche de saberes é evidente, e se concretiza em paráfrases discordantes que se sucedem sem se resolver. Na impossibilidade de realizar uma síntese, ou mesmo sínteses parciais, o texto avança jogando com todo tipo de antítese, que pode tomar o aspecto de uma figura privilegiada, que aproxima extremos, o oxímoro – “Troia de taipa”, “Hércules-Quasímodo” –, ou aparecer no encadeamento de paráfrases que se contradizem.

Tal é, em linhas gerais, a complexa questão da composição de Os sertões. E a maneira como o texto a enfrenta está à altura, ao pôr em jogo recursos nada simplistas ou lineares, acentuados pelas galas de uma retórica do excesso e pela exacerbação de um discurso persuasivo.

Para amarrar a matéria, Euclides tomou ainda emprestada dos canudenses milenaristas e messianistas – que ali se concentraram para esperar o Juízo Final anunciado pela chegada do novo século, numa vida de oração e penitência para salvar a alma – a visão escatológica. E mostra como, através da inversão demoníaca das imagens bíblicas que presidem à crença salvacionista, é possível aderir ao ponto de vista deles. Isso se efetiva através da mimese do grande sintagma narrativo do Velho Testamento, por meio do qual é traçado o arco que vai da criação do arraial de Canudos, o Gênese bíblico, até seu aniquilamento pelo fogo, o Apocalipse, em conjunção com as profecias das sagradas escrituras.

Euclides, por sua formação como engenheiro militar, era adepto do progresso e da ciência, o que já se vê na escolha da profissão. Nunca lhe tinha ocorrido que a modernização é causa de dores e perdas para os pobres, aos quais chacina sem piedade quando os encontra em seu caminho. Abrir uma estrada de ferro; escavar uma barragem; perfurar uma mina; implantar um aeroporto ou base aérea; urbanizar o centro de uma cidade; automatizar uma fábrica; adotar a reengenharia em uma empresa; grilar, registrar no cartório e cercar áreas devolutas, tornando de um só aquilo que era de todos; desativar ou relocalizar uma indústria; alinhar a economia de um país ao mercado globalizado; ou mesmo substituir uma monarquia por uma república. São todos, em diferentes instâncias, fenômenos de modernização.

Tanto Euclides acreditava nela que termina por condenar a guerra, no fecho do livro, dizendo que os canudenses deviam ter sido tratados a cartilha e não a bala, concluindo pela ilusão ilustrada de acreditar na educação como panaceia para a iniquidade. Seu grande feito foi ter conseguido expressar (e nisso reside o alcance universal do livro) o que a modernização faz aos pobres, atormentando-os de tal maneira que seu mundo – o Belo Monte, na denominação que deram a Canudos, ou Nova Jerusalém, segundo Os sertões –, que tinha tudo para ser o paraíso no qual aguardariam o Juízo Final, se metamorfoseia no seu contrário, ou seja, no inferno.

Coerentemente, nessa visão escatológica, o imaginário apocalíptico, baseado no dogma salvacionista, sofre uma inversão demoníaca. A “Cidade de Deus”, um quadriculado de ouro e pedras preciosas, degrada-se num labirinto cor de terra. O “Cordeiro de Deus”, que tira os pecados do mundo, transforma-se em bode. O “Rio da Água da Vida”, que corre no paraíso, não é mais que o rio seco que passa por Canudos, o Vaza-Barris. A “Árvore da Vida” se transforma na árvore da morte. E assim sucessivamente. Dessa maneira, Euclides legou seu libelo à posteridade.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).

Trecho do livro Euclides da Cunha – Um militante da República. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

 

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