Por RENATO ORTIZ*
O charme esconde alguma coisa, seu apelo vem do ocultamento, o segredo não desvendado; fala nas entrelinhas, contém uma certa indeterminação
1.
“Há uma diferença entre o fancy e o charme. O fancy é rico, bem acabado, sinal de opulência, mas nele subsiste algo de anacrônico, um pouco como o kitsch, um descompasso entre ser e estar. Mas não se deve confundir as coisas, o kitsch é marcado pelo excesso das cores e das formas, dimensões superlativas que manifestam sua inclinação estética. O fancy peca também pelo excesso, mas de controle, a vontade de organizar as coisas e as reações numa cadeia de eventos. Tudo é milimetricamente concebido e realizado, daí a sensação de artificialidade que evoca.
O charme esconde alguma coisa, seu apelo vem do ocultamento, o segredo não desvendado; fala nas entrelinhas, contém uma certa indeterminação. É preciso tempo para entendê-lo. O fancy se revela à primeira vista nada há a dissimular, importa a exposição da abundância e do refinamento.
Alguns autores, ao se contrapor o erotismo à pornografia, retomam o tema do segredo e do óbvio. Roland Barthes dizia que “l’érotisme est là où les vêtements baillent” (o erotismo está no bocejo das roupas), entre o corpo a ser desnudado e o farfalhar da saia incrusta-se o olhar. O charme aproxima-se do erotismo, ambos dissimulam e desvelam, contrariamente à pornografia que tudo mostra. Entretanto, é um equívoco dizer que o fancy seja pornográfico, seria uma incompreensão, sua natureza é o politicamente correto, entre o erotismo e a pornografia exprime a apatia do bom comportamento”.
“Os iluministas apreciavam as formas geométricas e as linhas retas, o plano da razão certeira e linear encontrava sua correspondência no reino das coisas. Parei diante do monumento do Carrossel e mirei o traço retilíneo à minha frente, no horizonte a perspectiva do Arco do Triunfo; a arquitetura do Louvre e o Jardim das Tulherias estão alinhados de maneira convergente e harmoniosa com sua imponência.
Entretanto, a pirâmide de Mitterrand foge à geometria do cenário, encontra-se deslocada deste ideal de projeções abertas e cristalinas. Com sua beleza e transparência introduz uma dissonância no pátio do museu. Fixei-a com o olhar e perguntei, o que ela significa? Uma interpretação possível é dizer que ela é um objeto estranho inserido em um lugar ao qual não pertence (esse é o argumento dos críticos).
Porém, olhando-a atentamente, sem a-priori algum, pode-se afirmar que ela sempre esteve ali, o Louvre tendo sido acrescentado depois. Nos dois casos a sensação de incongruência persiste, a dimensão arquitetônica de cada uma dessas edificações teria origem e intuitos discrepantes. Entretanto, outra alternativa lógica subsiste: a forma pirâmide e a forma museu seriam duas matrizes que fazem parte da caixa de ferramentas de um bricoleur (como pensava Claude Lévy-Strauss). Existem em potencial para serem usadas.
O arquiteto-bricoleur poderia manipular os pedaços heteróclitos a sua disposição ignorando as restrições do espaço e do tempo histórico. Segundo sua inclinação, sua vontade estética, simultaneamente os colocaria no mesmo lugar. O sentimento de paradoxo espacial assim se desfaz, como em um filme de efeitos especiais onde as formas se aglutinam em um jogo aleatório de aproximações”.
2.
Último dia do ano: a luta entre o desejo e o mar. Nas praias as pessoas trazem flores para Iemanjá. Palmas, rosas. São flores com hastes longas como se a extensão dos ramos os ajudasse a deslizar na correnteza das águas. Homens, mulheres, velhos e moças, atiram as oferendas ao mar, imóveis perscrustam o destino das embarcações improvisadas. Uma adversidade atravessa o caminho do desejo formulado.
A praia do Flamengo é um remanso fica distante da entrada da Baía de Guanabara, sua localização geográfica a protege das ondas e oscilações do oceano. A calmaria das águas lhe confere uma condição de letargia. As pessoas fixam com os olhos as flores, ansiosas querem impulsioná-las para longe. Mas o mar resiste, interpõe-se entre a esperança e a decepção, deixa Iemanjá alheia aos presentes e galanteios profanos.
Os ramos molhados afastam-se um pouco da praia, alguns metros, entretanto, não conseguem deslizar mais, tampouco têm força para retornar. As oferendas ficam à vista no limbo que as separam do orixá-destino. Iemanjá contempla à distância os pedidos dos mortais, na sua paciência divina espera que a corrente marítima se inverta na sua direção. Cansada se vai, sem cruzar a tênue linha que aparta o eterno do mundo fugaz dos humanos”.
3.
A Bodley Library é uma construção majestosa que guarda as marcas do passado, Oxford, desde a Idade Média, sempre foi um centro de estudos. O edifício é quadrangular do tamanho da metade de um quarteirão e a construção contém um grande pátio interno. Cada um dos lados do quadrado tem três andares, pé direito elevadíssimo, e na parte dianteira e traseira, mais ou menos no meio de cada um dos lados, ergue-se uma espécie de torre larga, aumentando o número de andares disponíveis. Simetricamente o teto é decorado com pontas em cone apontando para o céu.
Há três entradas, as laterais são mais estreitas, a principal possui um enorme pórtico de madeira. No frontal da entrada principal há uma dessas inscrições ditirâmbicas, “Quad Fieliciter Academici Oxonies”, e no pátio existem pequenas portas de madeira dando acesso às antigas escolas medievais: “schola vetus medicine”, “schola naturalis philosophae”, “schola musicae”, schola astronomiae (são nove ao todo). O acesso à biblioteca fica nos fundos não muito distante da estátua de um acadêmico oxfordiano, na base da escultura lê-se em algarismos romanos: 1723.
Entretanto, para se frequentar esse mundo de erudição e saber há uma exigência, o leitor deve obrigatoriamente declarar suas intenções. O funcionário que me atendeu foi polido e metódico, em uma pequena sala escura e empoeirada sacou de uma mesa uma brochura de textos, todos idênticos, mas traduzidos em inúmeros idiomas.
Perguntou pela minha língua materna e diligentemente separou a página em português; embora não entendesse uma palavra do que eu dizia pediu para eu ler o juramento em voz alta, o fiz de maneira sincopada e solene. “Pela presente comprometo-me a não retirar, nem danificar ou desfigurar de modo algum, qualquer volume, documento ou objeto pertencente a esta Biblioteca, assim como não entrar com chama ou fogo aceso, nem fumar ou acender qualquer fogo no recinto. Comprometo-me ainda a acatar todos os regulamentos desta Biblioteca”. O silêncio de sua incompreensão abriu-me as portas da sabedoria”.
4.
Diálogos weberianos. Estávamos os dois na esteira da academia de ginástica, andávamos. Eu olhava de esguelha o seu corpo firme, belo, vista integral, refletido no espelho a menos de um metro de nós. Sabia que era modelo e seus seios exuberantes tinham sido objeto de uma intervenção cirúrgica: silicone. Outro dia, também na esteira, pude ouvi-la conversando em voz alta, muito alta, com uma amiga, ponderando sobre as vantagens da operação. Desta vez ela se dirigiu a mim, desconheço o porquê. Disse, entre um passo e outro, a velocidade do andador marcava 6,4km/h, “não era você que estava no aeroporto”?
De fato tínhamos nos cruzado no saguão de embarque em Congonhas, eu partia para algum lugar e ela, acompanhada de duas colegas, pintadas e maquiadas, iriam talvez participar de uma sessão de fotos qualquer. Surpreendi-me com sua abordagem casual, interpretei, quer conversar. Não falei muito, ela se ocupou disso, apresentou-se como modelo fotográfico, tendo sido capa de várias revistas. A forma como pronunciou capa não deixava margem a dúvidas, era uma qualidade que minha ignorância tinha dificuldade em apreender.
Perguntei sua idade, vinte e dois. Quando polidamente acrescentei, “é jovem”, ela retrucou, “nem tanto assim para minha profissão”. Contou que ganhava bem, vivia só e era proprietária de um apartamento na Avenida Angélica, tinha um Mercedes-Benz, não disse o ano, mas estava subentendido, era usado. Vinha à academia todos os dias. Tinha consciência que sua juventude era passageira, deveria cuidar do corpo, seu patrimônio. Não bebia, não fumava e deitava-se cedo.
Poucas farras ou festas, unicamente os encontros profissionais. Frisou ser diferente de suas companheiras de trabalho, vivia frugalmente, mesmo sua vida sexual parecia ser muito bem administrada: “prefiro uma transa sem compromisso, na minha profissão é melhor não ter marido ou namorado”. Cuidar do corpo e economizar era sua meta. Vinha do interior e sentia muito orgulho de ter prosperado. Foi quando lhe perguntei o que fazia o seu pai. A resposta iluminou a cena. Pastor evangélico, retorquiu. Compreendi então sua obsessão, ela havia deslocado o ascetismo protestante para o seu corpo esbelto, nele investia seu capital transmutando-o em fonte de renda permanente”.
*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]
Publicado originalmente no blog da BVPS.
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