Por TODD MCGOWAN*
O gozo da emancipação ocorre por meio do confronto do limite, que é interno em vez de ser externo, por meio do confronto da restrição própria, ao invés de imposta como algo externo
1.
Compreender a política do gozo requer reconhecer a sua diferença em relação ao prazer. O gozo e o prazer existem em uma relação dialética, [pois um é negação determinada do outro]. O gozo é o termo privilegiado nessa relação, pois é ele que impulsiona o sujeito inconscientemente. As pessoas agem em prol do seu gozo, mesmo que o gozo nunca possa se tornar seu objetivo consciente.
É o desejo inconsciente que mobiliza o gozo, não o planejamento deliberado. O prazer, por outro lado, é frequentemente o objetivo consciente da pessoa, mesmo que ela não esteja ciente do que produz prazer. O prazer e o gozo funcionam dialeticamente da seguinte maneira: no esforço consciente para obter prazer, a pessoa produz gozo; e este é a meta inconsciente que fica implícita na tentativa consciente de obter prazer.
Embora possa parecer que a distinção entre prazer e gozo faça pouca diferença, que seja apenas como uma preocupação semântica ou psicanalítica, ela, na verdade, tem implicações políticas claras. O prazer obedece às coordenadas do campo social. Daí que seja fácil encontrar o sentido do prazer. Mas o gozo acontece no momento de ruptura desse sentido, quando a contradição irrompe no campo social, para além do que as pessoas estão vivenciando.
A contraditoriedade do gozo faz com que seja doloroso suportá-lo. Ademais, o seu estatuto de excessivo em relação ao campo do significado corrente permite que ele desempenhe um papel determinante na estruturação de nossa existência. Como o gozo excede o reino da significação corrente, parece que ele não tem sentido. Mas essa posição estrutural permite que ele dê direção ao que fazemos de uma forma que o prazer não é capaz de fazê-lo.
Experimenta-se prazer quando se permanece dentro dos limites da ordem social, quando se adquiri um objeto desejado disponível; ora, o gozo ocorre necessariamente nos limites dessa ordem, no ponto em que se está escapando dela. O objeto prazeroso pode ser um novo emprego, um parceiro romântico, uma recompensa em dinheiro ou até mesmo um hambúrguer suculento.
Não importa o conteúdo do que me dá prazer, pois, se permanece apenas prazeroso, ele precisa permanecer dentro dos limites do que a sociedade concede como possível. Todos os objetos de prazer se encaixam nas possibilidades disponibilizadas pela ordem social existente. Em geral, nenhum desses objetos ultrapassa os seus limites. [O gozo, no entanto, pode ser transgressivo].
2.
Freud define o prazer de uma forma precisa, mas que, inicialmente, parece contraintuitiva. Para ele, o prazer é obtido por meio da diminuição da excitação sentida pela pessoa – não por meio de seu aumento. De acordo com sua concepção do “princípio do prazer” formulada nas Conferências introdutórias à psicanálise, “o prazer está de alguma forma conectado com a diminuição, redução ou extinção das quantidades de estímulo prevalecentes no aparelho mental, assim como, de modo similar, o desprazer está conectado com seu aumento.”[i]
Tal como discute em sequência, a certeza dessa concepção e a sua prova vem do próprio ato sexual. Tudo nesse ato se move em direção à culminação, ou seja, ao orgasmo, o qual se experimenta como o maior prazer imaginável. Por isso, Freud continua: “Um exame do prazer mais intenso, que é acessível aos seres humanos, aquele de realizar o ato sexual, deixa pouca dúvida sobre a validade do princípio do prazer”.[ii] Embora a descarga de excitação seja mais evidente materialmente no caso dos homens do que das mulheres, a conduta sexual de ambos os sexos e dos intersexuais apoia, sim, a teoria de Freud.[iii]
A conclusão é, para quase todas as pessoas, o ponto alto do processo sexual – talvez até o ponto mais alto da própria vida – porque ela marca o auge do prazer.[iv] Quando se pensa dessa forma, quando se concebe o princípio do prazer como uma descarga – e não como acúmulo de excitação –, ele passa a ter muito mais sentido, deixando de parecer contraintuitivo. Livrar-se da excitação é experimentar uma grande, embora breve, onda de prazer. Mesmo aqueles abençoados com a capacidade de ter orgasmos múltiplos estão, no entanto, condenados à brevidade do prazer. Eles simplesmente conseguem experimentar essa brevidade com mais frequência do que aqueles menos dotados.
O prazer é necessariamente momentâneo porque vem a ser uma culminação. Experimenta-se o prazer conforme diminui da excitação; por isso, essa experiência termina rapidamente, no ponto exato em que as excitações acabam. A natureza fugaz do prazer é evidente não apenas em atos sexuais, mas também no caso em que se come um doce ou um donut; também nesse caso ele desaparece após alguns segundos de puro deleite. Isso se aplica até mesmo ao novo BMW que se possa comprar. Nas primeiras vezes que se o dirige, sente-se o prazer de ser dono e motorista de um carro possante, mas isso acaba se dissipando. O prazer não pode durar. Mais tarde, pode-se ter o prazer de lembrar da experiência anterior; contudo essa lembrança não dá continuidade à momento primeiro de prazer – em verdade, trata-se de um prazer distinto.
Isso levou Freud a lamentar que as pessoas sejam assim estruturadas psiquicamente, ou seja, que elas não consigam obter prazer de modo sustentado. Embora seja possível imaginar utopicamente um prazer constante, a estrutura da psique humana torna impossível que essa utopia possa se realizar. O melhor que se pode esperar consiste na repetição rápida da experiência prazerosa por meio da qual se descarrega o excesso de excitação. Mas cada acúmulo de excitação traz desprazer consigo até que seja possível de descarregar o que foi antes acumulado. A realização dessa utopia implicaria em maximizar o desprazer para maximizar em sequência o prazer, uma meta que pode parecer menos que utópica.[v]
A teoria do prazer de Freud – o princípio do prazer – permitiu que ele entendesse, ainda que indiretamente, por que dificuldades variadas são buscadas. Faz-se isso porque ao pôr fim a essas dificuldades, sejam quais forem, obtém-se prazer.
Com o conceito do princípio do prazer, Freud explica implicitamente a tendência autodestrutiva humana ao oferecer sua versão da velha piada sobre o homem que continuamente bate na própria cabeça com um martelo. Um seu amigo, em certo momento, lhe pergunta: “Por que você faz isso já que isso é patentemente absurdo?” Eis como o homem responde: “Porque é muito bom quando eu paro”. Ora, essa sensação boa que surge quando alguém para de bater na própria cabeça fornece a base do princípio do prazer.
É assim que Freud explica sonhos desagradáveis em A interpretação dos sonhos. Tal como os concebe, não se é atraído pelos pensamentos negativos como tais, pois, simplesmente, o que se quer é criar um caminho pelo qual se possa experimentar o prazer de realizar um desejo. Nesse livro, Freud gasta pouco tempo, aliás de modo suspeito, com sonhos ruins, dada a sua ubiquidade nas mentes dos adormecidos.
Quando aborda os pesadelos, afirma: “o que é angustiante não pode ser representado em um sonho, ou seja, em nossos pensamentos oníricos; aquilo que se afigura como angustiante consegue entrar num sonho, a menos que, ao mesmo tempo, empreste um disfarce à realização de um desejo”.[vi] Embora Freud considere brevemente o pesadelo em A Interpretação dos Sonhos, ele lhe dá um status de evento necessariamente derivado, devido à proeminência que o princípio do prazer tem nessa obra. O momento acentuado é aquele em que se quer se livrar das perturbações, não aquele anterior em que se deseja encontrá-las.
3.
Freud pensa apenas em termos da oposição entre o princípio do prazer e seu corolário, o princípio da realidade (no qual se leva em conta as restrições sociais no caminho para a liberação da excitação). Ao fazê-lo, ele não consegue considerar a possibilidade do gozo, ou seja, a eventualidade de uma experiência que traga satisfação ao sujeito por meio da própria estimulação que ele causa em si mesmo – e não por meio da liberação da estimulação. Esta é a posição que predomina no pensamento inicial de Freud sobre como a psique funciona. Isso o deixa incapaz de explicar por que as pessoas desejam objetos que lhes trazem grande sofrimento, o que é um fato teimoso da psique.[vii]
Por meio de sua concepção do princípio do prazer, Freud explica a acumulação de excesso de excitação – nas preliminares, por exemplo – como algo simplesmente anterior à liberação eventual. A pessoa acumula tensão ou excitação apenas para dar a si mesma algo para descarregar. Para ele, não há valor intrínseco na produção de excitação em si mesma. O estado de excitação e de incomodo só é importante porque é o prelúdio para uma liberação futura, a qual porá fim a esse estado desagradável, produzindo prazer.
Surge um problema e ele será resolvido por meio da descarga de excitação – é bem isso que o princípio do prazer descreve. Assim, o problema tem valor por causa apenas de sua sequência final. Nessa perspectiva, o prazer está apenas no fim da estória para o sujeito. Contudo, o gozo ocorre antes de que esse fim seja atingido. Ora, é isso o que Freud eventualmente conseguiu ver quando, em 1920, escreveu Além do princípio do prazer. Aí, ele concebeu a pulsão de morte, a qual prospera ao longo das perturbações, ao invés de ocorrer no esforço para eliminá-las.
A pulsão de morte é uma agência contraditória. Ela ergue obstáculos em seu caminho e se excita com os obstáculos – não com o ato de superá-los. Na pulsão de morte, a primazia do obstáculo faz com que a distinção entre sofrimento e prazer se dissipe. Desfruta-se com o que frustra o desejo consciente, com o que causa problemas. Enquanto o prazer deriva da superação de contradições, o gozo sobrevém ao vivenciá-las, quando se luta com elas.
Tal como Freud reconhece quando escreve Além do princípio do prazer, experimenta-se prazer por meio da diminuição, mas se experimenta gozo por meio da criação de excitação.[viii] Em contraste com o prazer, deriva-se gozo daquilo que produz perturbação em nosso equilíbrio psíquico. Mas não se pode simplesmente criar excitação desejando que ela exista. A psique, na verdade, excita-se diante do surgimento de um problema. O que torna nossa existência gozável é a formulação de perguntas, não a resposta delas; é a descoberta de problemas, não a sua solução; é a construção de obstáculos, não a sua eliminação.
Para falar em termos psicanalíticos, a excitação provém do surgimento de um objeto que desperta o desejo, à medida que ele se afigura como momentaneamente inatingível. O gozo requer um objeto faltante, perdido ou ausente que não se tornará presente imediatamente e que se põe como objeto perdido. O objeto gozável é necessariamente contraditório: mostra-se como tal apenas na medida em que não está presente. Quando se desfruta de tais objetos, desfruta-se do que não está presente; ora, é o próprio sujeito que assume, assim, essa posição contraditória.
Objetos que estão aí, que estão presentes e que não guardam essa contradição [ou seja, que está aí e não está aí como objeto de um desejo], não têm valor transcendente. Pode-se valorizá-los como objetos úteis, mas não se os trata como objetos sublimes capazes de proporcionar gozo. A disponibilidade fácil de um objeto indica que ele é apenas uma coisa cotidiana. Ele não tem valor transcendente, mas apenas o status de algo que está aí para ser usado.
Tem valor transcendente, aquele que vai além da utilidade imediata, aquilo que está ausente e que é difícil de alcançar. Os únicos objetos com valor transcendente são aqueles que não se pode acessar, que estão perdidos. A condição de faltante gera um excesso de excitação que leva ao gozo, razão pela qual o sujeito deve sofrer esse gozar em vez de encontrar prazer nele. A relação entre gozo e perda, uma perda que produz excitação e dá ao sujeito algo pelo qual lutar, representa a chave para a política do gozo.
Considere-se a transformação que sofre um objeto comum quando ele está perdido. Suponha-se que se perde as chaves do automóvel. Apesar de procurá-las em todos os lugares possíveis, não se consegue encontrá-las. Ao contrário do telefone celular, não se pode ligar para elas com a finalidade de localizá-las. Quanto mais se procura essas chaves sem conseguir encontrá-las, mais elas se tornam objeto de gozo. É assim mesmo se, em circunstâncias típicas – quando se as têm em mãos – elas sejam o objeto mais banal imaginável. Mas, à medida que assumem a forma de coisa perdida, algo que se procura obstinadamente, tornam-se objeto de um gozo transcendente.
4.
As chaves perdidas ganham um valor que vai muito além daquele que consiste em permitir a operação do veículo. Encontrá-las parece ser uma chave para todo gozo possível, pois todo o resto fica em segundo lugar diante da necessidade de buscá-las. Mas o gozo não vem realmente do ato de encontrá-las. Quando finalmente são encontradas, quando se tornam presentes novamente como um objeto empírico, elas imediatamente deixam de ser aquilo que causa gozo. Simplesmente, sente-se alívio ao encontrá-las, talvez mesmo um pouco de prazer. Mas, nesse mesmo momento, o gozo termina. Eis que ele provém do excesso de excitação que o objeto perdido produz naquele que o procura e que desaparece quando o objeto se torna novamente presente.
O gozo acontece diante do que não está presente, mas é objeto de desejo. Quando um objeto está constantemente presente, é-se incapaz de apreciá-lo. Mas quando se o perde ou ele desaparece, vivencia-se o objeto como verdadeiramente gozável. A ausência dos objetos de desejo anima o sujeito. Ora, essa dinâmica é mais claramente visível em relacionamentos amorosos.
Quando o sexo com o parceiro é uma possibilidade cotidiana por anos, ele pode se tornar um dever mecânico; torna-se um dever que muitas pessoas, as quais se encontram envolvidas em relacionamentos longos, optam por abrir mão. Mas quando se sabe que o tempo com o parceiro é limitado ou quando o parceiro está ausente há muito tempo, o encontro sexual se torna recompensado com gozo. A maioria dos ditados é risível, mas aquele que diz que “a ausência torna o coração mais afeiçoado” consegue sugerir bem como se dá a lógica do gozo. Como o gozo envolve um engajamento com a ausência, ele está sempre acompanhado por um certo sofrimento.
Como o gozo envolve necessariamente sofrimento, qualquer tentativa de eliminá-lo encontrará forte resistência. Eliminar o sofrimento [associado ao esforço para alcançar algo que se deseja vem a ser eliminar o gozo. Para preservar a possibilidade do gozo, os sujeitos se apegam à perda e ao sofrimento que ele acarreta. [E isso tem consequências políticas].
Os planos utópicos para organizar uma sociedade que querem eliminar o sofrimento fracassam, pois o esforço sofrido é necessário para que se possa obter gozo. Se se conseguisse livrar a vida do sofrimento em uma sociedade futura, criar-se-ia assim, supostamente, uma sociedade livre de gozo. Tal mundo não se configuraria apenas como impossível praticamente, mas também teoricamente. Se a utopia não contém elementos não utópicos, ela deixar de ser gozável para as pessoas – e, portanto, deixa também de ser desejável.[ix] Uma utopia sem elementos não utópicos seria apenas uma utopia – algo sem lugar.
Portanto, se a concepção de esquerda sobre o futuro toma o gozo em consideração, ela não pode se configurar meramente como utopia.[x]
Uma sociedade opressiva, como o capitalismo contemporâneo, esforça-se continuamente para manter uma divergência entre o sofrimento e o gozo. E é isso o que a torna opressiva. [O objeto faltante se afigura como medíocre para o explorado ao mesmo tempo que se mostra como excepcional para o explorador. O primeiro fica com o sofrimento maior, obtendo parco gozo, o segundo fica com o sofrimento menor, mas obtém muito gozo. Aquilo que a crítica da economia política mostra examinando a sociedade centrada na relação de capital tem uma contrapartida na economia psíquica dos agentes econômicos diferenciados em classes, exploradores e explorados].
A hierarquia social e a divisão de classes tendem a fazer com que aqueles que estão no topo desfrutem, enquanto aqueles que estão embaixo arquem com o sofrimento. Mas essa distinção não pode se manter. Não se pode manter a capacidade de desfrutar quando se confina todo o sofrimento aos outros. Essa mentira sustentada pela sociedade de classes vem a ser a fonte do sofrimento desnecessário que ela produz. Se não se goza com o seu próprio sofrimento, ele se torna perdido. Isso vale tanto para os ricos quanto para os miseráveis, mesmo que os ricos tentem burlar essa verdade.
A emancipação não implica na eliminação do esforço sofrido, mas a eliminação da luta constante da classe dominante para divorciar o sofrimento e o gozo. A aproximação do sofrimento ao gozo permitiria, por exemplo, a demolição das mansões, pois elas tentam excluir e manter o sofrimento fora de seus muros. Outrossim, a criação de uma forma igualitária de moradia permitiria a todos experimentar a interdependência do sofrimento e do gozo. Uma sociedade que considera a conexão intrínseca entre sofrimento e gozo não permitiria a existência de relações sociais que põe uma hierarquização classista.
5.
Uma sociedade igualitária seria aquela em que o sofrimento e o gozo fossem distribuídos uniformemente. Nesse caso, os empregos mais bem pagos seriam os mais revoltantes; aqueles penosos, como os de professores e corretores da bolsa, pagariam salários menores. De acordo com uma posição de esquerda, é preciso pagar o preço do próprio gozo ao invés de tentar colocá-lo nas costas dos menos afortunados. Um movimento nessa direção seria um movimento emancipatório. Mas seria bom ver como aí o gozo supera o prazer.
É possível entender o contraste entre o prazer e o gozo voltando a considerar aos atos sexuais. De acordo com a concepção de Freud do princípio do prazer, a culminância do ato – a descarga da excitação – é tudo. Mas uma vez que se foca no gozo, diminui-se o estatuto do princípio do prazer e, por isso, a visão das coisas sofre uma grande transformação.
Em vez de ver o flerte inicial, o beijo apaixonado e o toque íntimo como meramente preliminares ao evento principal, ou seja, ao orgasmo, passa-se a ver este último apenas como um prazer momentâneo, algo que põe fim ao gozo obtido em tais preliminares. A existência do orgasmo permite que a consciência aceite todos os obstáculos que se antepõem a ele – o flerte, as peças de roupa inconvenientes que devem ser removidas, a barreira fundamental do desejo dos outros. São esses obstáculos, não o grande final, aqueles que produzem o gozo sexual. Entender essa reversão é entender como o gozo funciona em contraste com o prazer.
As barreiras para a culminação do ato sexual são o que tornam o ato gozável; contudo, ninguém, exceto aqueles de orientação perversa, seria capaz de permanecer contente apenas com as barreiras, sem levar o processo ao seu ponto final. O orgasmo leva o gozo obtido com os obstáculos ao ato sexual além das suspeitas da consciência. Embora ele nunca o articule completamente, é isso que a descoberta de Freud de um impulso além do princípio do prazer implica.[xi] O ponto crucial deixa de ser o orgasmo final para se tornar aquele em que se manifesta o próprio problema.
Se a emoção do orgasmo como exemplo de gozo sexual é muito difícil de aceitar, poder-se-ia pensar em vez disso na montanha-russa de um parque de diversões (que reproduz de certa forma a dinâmica do ato sexual). O prazer produzido pela montanha-russa ocorre durante os momentos em que se desce as encostas íngremes em um ritmo de tirar o fôlego. Nesses momentos, a pessoa experimenta a diminuição da excitação e sente prazer ao final. Mas o gozo produzido pela montanha-russa ocorre antes – naquele momento em que se está subindo lentamente a rampa em preparo para a explosão de prazer que vem em sequência. A pessoa encontra gozo no acúmulo de excitação ou no encontro com um obstáculo (a grande colina) que ocorre no movimento lento; este, aliás, como bem se sabe, não proporciona prazer.
Ninguém andaria em uma montanha-russa que só subisse e nunca proporcionasse prazer porque a psique deve encontrar uma maneira de traduzir seu impulso de gozo na consciência do prazer. Mas, ao mesmo tempo, ninguém andaria em uma montanha-russa que só descesse e não proporcionasse nada além de prazer. A expectativa do prazer eventual é aquele ponto em que se goza no processo da vida. Não se pode, simplesmente, renunciar de modo completo ao prazer. Se não houvesse prazer, também não haveria gozo. Mas o prazer funciona como uma recompensa que o inconsciente paga à consciência para que ela aceite o sofrimento inerente ao gozo – eis que ele precisa passar pela censura da consciência.
O sofrimento é um ingrediente necessário do gozo, tal como ilustra a ansiedade produzida na subida da montanha-russa. O gozo ocorre por meio de alguma forma de autodestruição, razão pela qual é absolutamente irredutível à intenção consciente. A forma autodestrutiva do gozo exige que a pulsão para gozar seja inconsciente. Embora se possa conscientemente lutar pelo prazer, não se pode conscientemente lutar para gozar, pois o gozo envolve sofrimento e danos à psique.
Se se tentasse gozar de modo consciente, transformar-se-ia, inevitavelmente, o sofrimento em motivo de prazer; veja-se, se se tentasse perder um jogo, a perda obtida seria transformada numa forma de vitória. Se realmente se perde o jogo, é porque ele foi perdido como tal. Ao se tentar sofrer conscientemente, pode-se até ter sucesso, mas esse sofrimento causa perversamente prazer. Nesse sentido, como o gozo requer sofrimento, como é preciso sofrer para obtê-lo, a busca por ele deve permanecer inconsciente. Eis que a ligação fundamental com um objeto ausente provê o gozo de um potencial político radical. E é assim mesmo que não possa ser o resultado de um planejamento consciente. Ora, isso põe um problema sobre como integrar o gozo conscientemente nas lutas políticas.
6.
Ora, o gozo tem uma radicalidade que falta ao prazer. Prazeres são sempre prazeres reconhecidos ou prazeres associados ao reconhecimento. Eles acontecem quando a ordem social autoriza, como a compra de mercadorias caras ou a experiência de aprovação social. Até mesmo atividades ilegais, que não são mera diversão, podem ser socialmente aceitáveis e trazer prazer. É o que ocorre quando as pessoas furtam em lojas, recebem propinas ou sonegam impostos. Esses atos violam a lei, mas permanecem dentro do reino daquilo que a sociedade capitalista reconhece como aceitável porque participam da demanda para acumular sem limites. Qualquer um que se submeta a essa demanda permanece no terreno da sociedade capitalista; está se conformando às suas regulamentações não escritas. Ao se comportar assim, fica-se principalmente nos limites dos prazeres.
O gozo, em contraste, pode ocorrer num momento em que deixar de existir reconhecimento. Aa autoridades sociais em geral nunca sancionam oficialmente o gozo. Eis o que Joan Copjec disse sobre isso: “o gozo floresce apenas quando ele não é validado pelo Outro”.[xii] Isto é, autoridade social não pode fornecer uma estrutura por meio da qual se possa desfrutar de gozo, já que este último ocorre sempre além dessas estruturas simbólicas.
Ele ocorre nos pontos contraditórios das estruturas que marcam a sua impossibilidade. Alguém desfruta do que está ausente dentro da estrutura simbólica, não do que lá tem um lugar nela. Mesmo quando o gozo opera de forma conservadora, trata-se, no entanto, de uma experiência potencialmente radical já que há uma força em operação, mesmo se ela tomou uma direção conservadora.
Todo gozo vem de um não pertencimento. Desfruta-se por fugir do reconhecimento e da validação, da liberdade em relação às autoridades sociais. O gozo é emancipatório porque coincide com a liberdade do sujeito em relação às restrições postas por determinações externas.[xiii] A contradição que habita a ordem social e mina toda autoridade se torna a fonte do gozo do sujeito em vez de se constituir como um limite externo. O gozo da emancipação ocorre por meio do confronto do limite, que é interno em vez de ser externo, por meio do confronto da restrição própria, ao invés de imposta como algo externo.
*Todd McGowan é professor na Universidade de Vermont. Autor, entre outros livros, de The end of dissatisfaction? Jacques Lacan and the emerging society of enjoyment (State University of New York Press) [https://amzn.to/4g0Ryeq]
Tradução: Eleutério Prado.
Notas
[i] Sigmund Freud, Introductory Lectures on Psycho-Analysis, trans. James Strachey, in The Complete Psychological Works of Sigmund Freud, ed. James Strachey (London: Hogarth Press, 1963), 16:356.
[ii] Sigmund Freud, Introductory Lectures on Psycho-Analysis, 16:356.
[iii] Não se pode dizer que haja um sexismo inerente ao conceito do princípio do prazer; contudo, isso não significa que se deva aceitá-lo como a palavra final, especialmente porque o próprio Freud não o fez.
[iv] Até mesmo os oponentes da psicanálise tendem a concordar com Freud neste ponto. Michel Foucault fantasiou sobre morrer no momento do orgasmo porque este é o momento de máximo prazer. Esta correlação incomum entre o fundador da psicanálise e seu oponente intransigente confirma o status de senso comum do princípio do prazer. Também oferece uma razão convincente pela qual devemos questioná-lo como a última palavra sobre essas coisas.
[v] A maioria das utopias segue o princípio da realidade em vez do princípio do prazer. Por exemplo, em sua Utopia, Thomas More minimiza todas as formas potenciais de construir excitação: ninguém usa roupas sensuais; ninguém come comida diferente dos outros; ninguém acumula riqueza; e assim por diante. A teoria de More, que quase todos os utopistas posteriores seguem, é que aderir ao princípio da realidade e, assim, manter a excitação no mínimo produzirá uma sociedade mais estável e contente.
[vi] Sigmund Freud, The Interpretation of Dreams (Second Part), trans. James Strachey, in The Complete Psychological Works of Sigmund Freud, ed. James Strachey (London: Hogarth Press, 1953), 5:470-471.
[vii] A brevidade dos prazeres permite que eles existam sem se misturar com sofrimento. Alguém pode chorar quando seu sorvete acaba, mas essa tristeza subsequente é distinta do prazer que alguém teve ao comê-lo. A ausência de qualquer mistura com sofrimento permite que o prazer pareça atraente, mas sua transitoriedade coloca um limite fundamental em sua valência política. Como eles acabam tão rápido, não há prazeres radicais.
[viii] Embora Freud dê o grande salto à frente de teorizar a pulsão de morte, ele não torna o gozo (ou Genuss) central em seu pensamento. Cabe a Lacan, em sua teorização posterior, preencher essa lacuna quando ele toma o gozo como um de seus principais pontos de referência.
[ix] O que torna a utopia recente de Fredric Jameson possível de desejar é sua deficiência óbvia, e não suas perfeições. Em American Utopia, Jameson faz o argumento ultrajante de que deveríamos universalizar os militares e forjar uma utopia dessa forma, já que o apoio aos militares é tão forte e já funciona como uma instituição socialista. Esse argumento elide completamente o fato de que o apoio aos militares depende da violência nacionalista que ele perpetua e que a utopia de Jameson eliminaria. Mas essa falha (fatal) na visão utópica torna possível imaginar desfrutar do mundo que Jameson imagina.
[x] Walter Davis fornece uma base poderosa para rejeitar o pensamento utópico ao reconhecer sua ligação com o pensamento reacionário. Ele afirma: “A utopia é a nostalgia projetada no futuro.” Walter Davis, The Ohio State University, conversa privada. Como Davis reconhece, a nostalgia conservadora inconsciente por um passado supostamente melhor assombra o desejo no cerne do projeto utópico, embora esse projeto esteja conscientemente centrado em um futuro diferente.
[xi] Freud vai além do princípio do prazer em 1920 quando ele escreve o texto epônimo em que faz esse movimento para frente. Ver Sigmund Freud, Beyond the Pleasure Principle, trans. James Strachey, in The Standard Edition of the Comple Psychological Works of Sigmund Freud, ed. James Strachey. London: Hogarth Press, 1955, 18:1-64.
[xii] Joan Copjec, Imagine There’s No Woman: Ethics and Sublimation (Cambridge: MIT Press, 2002), p. 167. Embora o gozo ocorra em uma lacuna contraditória na estrutura da significação, ele ainda assim depende do Outro para se formar. Não existe um gozo isolado, um gozo que ocorre sem referência à alteridade. O gozo quebra a barreira entre o eu e a alteridade.
[xiii] O modelo para o gozo livre não é a transgressão final, mas a lei moral kantiana. Como Kant a concebe, dar a lei moral a nós mesmos é a única maneira de nos libertarmos das determinações que acompanham nossa situação social. A lei moral não deriva dessa situação social, mas de nossa auto-relação espontânea como sujeitos de significação. Assim, ela abre um campo para agir que não tem causa na situação que, de outra forma, nos determinaria completamente. Desfrutamos da liberdade dos ditames de nossa sociedade ao atender ao comando que damos a nós mesmos por meio da lei moral. À sua própria maneira (embora não dita), Kant teoriza a oposição entre prazer e gozo, entre os prazeres de seguir as regras da sociedade e o gozo da liberdade que vem quando obedecemos à lei moral.
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