Por JOÃO LANARI BO*
O rastilho de pólvora que liga o conflito na Ucrânia com o que se passa atualmente na Faixa de Gaza, é assustador
“Guerra é cinema, e cinema é guerra” (Paul Virilio).
Após 19 meses de conflito, e às vésperas de mais um inverno rigoroso, a guerra da Ucrânia parece ter entrado em um impasse estratégico sem alternativas claras de solução. O que está claro é a fadiga – esse é o termo – que vem tomando conta dos discursos sobre a guerra, inclusive dos alinhados com a posição ucraniana. Fadiga militar, mas também fadiga midiática.
E que deixa rastros: o rastilho de pólvora que liga esse conflito com o que se passa atualmente na Faixa de Gaza, é assustador. Uma lógica de guerra, que se reproduz sem controle ou freios, e que se alastra com rapidez. Um rastilho que passa pela cobertura midiática online e pela repercussão nas redes sociais – gerando a (falsa) impressão da proximidade das guerras, da intimidade voyeurística da violência.
O registro documental aparece como linguagem de distanciamento, mesmo que captada no calor do acontecimento. Dois filmes – 20 dias em Mariupol (2023) e Gaza (2019) – ilustram essa proposta, ambos filmados em zonas de guerra sitiadas.
Mariupol
20 dias em Mariupol, primeiro documentário em longa-metragem do fotógrafo e jornalista ucraniano Mstyslav Chernov, finalizado em 2023, funciona como capsula de tempo e informação sobre a devastação humanitária que ocorreu – e continua a ocorrer – na Ucrânia, depois da invasão russa em 24 de fevereiro de 2022.
Mstyslav Chernov e seus colegas da Associated Press, o fotógrafo Evgeniy Maloletka e a produtora Vasilisa Stepanenko, perceberam que o porto de Mariupol, a menos de 50 quilômetros da fronteira com a Rússia, seria objetivo prioritário das tropas de Vladimir Putin logo no início da guerra. No dia 25 de fevereiro, mísseis caíram em todo o país, inclusive em Mariupol – Mstyslav Chernov e equipe foram dos poucos que permaneceram no local.
Começa o diário de filmagens, narrados em voz off pelo diretor: civis desnorteados pelo choque das bombas, uma idosa histérica perambula numa área remota – ela reaparece mais tarde, viva, mas sua casa foi destruída.
A lei marcial é imposta e muitos optam por evacuar enquanto ainda é possível: poucos abrigos antiaéreos estão disponíveis, as pessoas amontoam-se em porões e mísseis devastam não apenas infraestruturas e postos militares, mas também objetivos civis. Eletricidade, telefone e acesso à Internet são cortados. Centenas de vítimas lotam os hospitais, já atingidos pelas bombas – e cadáveres começam a aparecer nas ruas, à espera de uma vala comum.
O que move o olhar de Mstyslav Chernov nessa espiral de morte é o desejo de reportar, para além do jornalismo: é uma pulsão de denúncia, validada o tempo todo por médicos, bombeiros e vítimas. Não é a primeira vez que esse tipo de jornalismo se destaca, reportando de zonas de conflito e captando relatos vívidos e angustiantes.
Nós, a audiência que consome avidamente essas imagens, vivemos o implacável ciclo efêmero das notícias, anestesiados pelo fetichismo recorrente das edições televisivas. Aqui, a novidade de 20 dias em Mariupol: o ciclo do consumo é quebrado, a permanência do produto documental permite – e, no caso, estimula – a reflexão, a vivência das imagens.
“Isso é doloroso de assistir. Mas tem de ser doloroso de assistir”, diz Mstyslav Chernov, deparando-se com o “vírus sádico de destruição”, o qual, a essa altura, esvazia a cidade. Sua angústia particular é fazer o upload das imagens, sair do cerco cibernético imposto pelo rolo compressor militar.
Mstyslav Chernov diz que filmou 30 horas em Mariupol, mas só conseguiu compartilhar 30 minutos de vídeo com seus editores – como enviar arquivos pesados, como acessar o WeTransfer para gigabytes de MP4 no meio de uma guerra? Uma mulher grávida é filmada em uma maca após o ataque russo à maternidade de Mariupol: “Seus ferimentos eram incompatíveis com a vida; fizemos tudo o que podíamos, uma criança morta foi extraída”, disse um médico. A mãe, segundo Mstyslav Chernov, sabia que a criança estava morte, e implorou: “Matem-me!”
A imagem circulou pelo mundo, e no dia seguinte o Kremlin negou que tivesse visado alvos civis. Sergey Lavrov, o ministro de Putin que pratica um discurso cínico e cruel digno dos tempos stalinistas, disse que aquilo era montagem e, portanto, “terrorismo de informação”. O tiro saiu pela culatra: ao contextualizar a imagem, gravada imediatamente após o ataque, 20 dias em Mariupol desconstrói e flagra a artimanha russa.
O cerco a Mariupol durou quase três meses – exatos 86 dias, quando a Ucrânia admitiu, em 17 de maio, ser impossível a retomada da cidade. A extensão do cerco deve-se sobretudo à resistência de soldados e civis entrincheirados na imensa siderúrgica Azovstal, construída na era soviética. Em abril, a estimativa era de que 95% das edificações da cidade já haviam sido total ou parcialmente destruídas pelos combates e bombardeios.
A contagem das vítimas ainda é nebulosa – seria 25 mil civis mortos e 10 mil soldados, de ambos os lados, abatidos. Da população original, 425 mil pessoas, pouco mais de um quarto permanece na cidade: muitos fugiram para outras áreas na Ucrânia, outros tantos foram deportados para a Rússia.
Mstyslav Chernov usou uma Sony Alpha 7 e uma lente simples para filmar. Não havia tempo para trocar de lente: zoom era a solução. O micro para captar o som também era o básico, mono, claro. A pós-produção do filme melhorou muita coisa, mas sem sons editados ou artificiais, explosões por exemplo. “Eu filmo, tenho que editar a matéria e enviar, quando os editores recebem já tem uma matéria quase pronta”.
20 dias em Mariupol não dramatiza a tensão que emana da guerra, apenas registra, como se o real fosse uma pulsão de desespero. A rejeição generalizada das reportagens de Mstyslav Chernov pelo Kremlin é a legitimação final do documentário.
Gaza
Gaza, realizado em 2019 pelos irlandeses Garry Keane e Andrew McConnell, ganhou uma trágica e devastadora atualidade com a guerra na Faixa de Gaza. O termo “atualidade” não tem muito sentido nesse contexto – o presente, sofrimento e limiar de morte, é um estado constante para os moradores da Faixa: o passado é sempre atual e o futuro sem perspectivas. Trata-se de um território carregado de temporalidades que se superpõem, bíblicas e coloniais pós-século XIX: por isso mesmo, um território carregado de clivagens, de fragmentos que se dispersam e retornam, infinitamente.
A Bíblia associa Gaza principalmente aos filisteus. Deus deu a cidade a Judá, mas os israelitas falharam em obedecer a Deus para expulsar os antigos ocupantes de Canaã (Números 33:51-53). Por causa dessa desobediência, os filisteus e a cidade de Gaza permaneceram como uma pedra no sapato de Israel durante séculos (Juízes 2:3). Disse Deus (da tribo de Judá): “Lançareis fora todos os moradores da terra de diante de vós, e destruireis todas as suas pinturas; também destruireis todas as suas imagens de fundição, e desfareis todos os seus altos; E tomareis a terra em possessão, e nela habitareis; porquanto vos tenho dado esta terra, para possuí-la”.
Citar o texto bíblico não é um mero exercício retórico, ainda mais em se tratando de um filme como Gaza: a extrema direita israelense, que desempenha um papel crucial no conflito, tem como plataforma política substituir o direito secular moderno pela Torá. Torá: cinco primeiros tomos do livro sagrado da religião judaica, com origem no termo hebraico “Yará”, que significa ensinamento, instrução ou lei. A recente batalha política pelo esvaziamento da Suprema Corte em Israel tem esse pano-de-fundo.
A Faixa de Gaza e seus poucos mais de dois milhões de habitantes são o produto, entre outros, de um esforço regulatório em cima de uma situação territorial complexa, que começou com a criação do Estado de Israel pela ONU em 1947. Faltou combinar com os palestinos que ali residiam: seguiram-se guerras e a expulsão de centenas de milhares de pessoas que residiam nos territórios ocupados pelos israelenses para a faixa estreita ao sul, cercada por Israel, o Mediterrâneo e o Egito.
Gaza, o filme, organizou-se com o objetivo explícito de mostrar a vida naquele enclave de forma a evitar as imagens habituais veiculadas no tempo exíguo das news, ou seja: pobreza, tragédia e destruição, civis mortos e feridos (crianças sobretudo), soldados mascarados, jovens a atirar pedras e edifícios abandonados em ruínas fumegantes.
Comparecem com destaque e são entrevistados no documentário, entre outros: surfistas e pescadores; uma jovem celista de família abastada; um taxista de bom humor e sincero; e um pai de família muçulmano, com dezenas de filhos, confessando que desistiu da quarta esposa por conta do mundo trágico que acolheria a nova prole. Tampouco comentários sociológicos são enfatizados: poucas palavras sobre o alto contingente de jovens sem emprego, nem mesmo sobre a ascensão política do Hamas.
O desenho de uma prisão aberta e exposta ao sol, contudo, vai pouco a pouco contaminando esse olhar complacente europeu. O mar, fonte de alimentos e metáfora espacial dos limites existenciais, funciona também como recreação e suporte para imagens clichês de pôr do sol – e é olhando para o mar que a celista se queixa dos estrangeiros: “a única coisa que nos dão é simpatia”.
O velho pescador lembra ações perpetradas pelas patrulhas canhoneiras israelenses; jogam esgoto nos que se aventuram a pescar fora do limite permitido de 10 quilômetros de mar, quando não prendem os aventureiros (seu filho pegou dois anos de detenção por essa ousadia). Estamos, ao que parece, em uma zona de guerra vazia, plena de pequenas tensões e humilhações – e perigosamente instável.
As filmagens de Gaza aconteceram em maio de 2018 – em março daquele ano, teve lugar a primeira das manifestações conhecidas como Grande Marcha do Retorno, exigindo permissão para refugiados palestinos retornarem às terras de onde foram deslocados no que hoje é Israel. As manifestações ocorreram todas as sextas-feiras, até dezembro de 2019: o reconhecimento pelos Estados Unidos de Jerusalém como capital do Estado Judeu encorpou os protestos.
A princípio organizadas por ativistas independentes, foram logo endossadas pelo Hamas. No filme, a atmosfera rapidamente sobrecarregou-se, zumbidos cortaram o céu e a centelha da guerra reacendeu.
O princípio da realidade, o adiamento da gratificação dos que buscam evitar a dor, mais uma vez se impôs.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), autor de, entre outros livros, Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo).[https://amzn.to/45rHa9F]
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