Por FLÁVIO R. KOTHE*
Conto inédito.
Dona Maroquinha estava na postura típica que a tornava conhecida e temida em toda a vila e arredores: com os cotovelos apoiados num travesseiro que estava no peitoril da janela da sala, mirava para os dois lados da rua principal. Ela via tudo o que subia ou descia: gente, cachorro, burro, bicicleta. Como a casa que herdara dos pais e ficava no topo da coxilha, quem subia e quem descia tinha na figura da velhinha uma referência, seja para subir mais rápido, seja para descer tão rápido quanto pudesse. Todos a cumprimentavam, mais por temor que por amor.
Os cotovelos apoiados no travesseiro sustentavam na aba das mãos o queixo enrugado, os lábios céticos, o bigode entre nariz e boca. Os olhos escuros pareciam de gavião: nada lhes escapava. O que escapava, eles inventavam. Assim, cada vez mais acabavam inventando tudo, sem ver nada. Pessoas e bichos eram apenas pretexto para histórias que ela ia se contando, como se a vila fosse uma fonte constante de novelas que a televisão havia esquecido de filmar.
Quando alguém parava na calçada, debaixo da janela famosa, logo podia ouvir um capítulo das novelas que Dona Maroquinha ia se inventando, mas também podia saber das últimas novidades da vila. Todos lá se conheciam. Ninguém escapava de um fuxico.
Havia quem duvidasse do seu nome. Não era nome de batismo. Também não era Mariquinha, como alguns incautos ousaram pronunciar. Menos ainda Maruquinha, como quiseram inventar uns músicos, saudosos da antiga marcha de carnaval: “Vamos, Maruca, vamos!”
O apelido pegara tanto que nem a dona dele lembrava bem o próprio nome. Algo como Carmo, mas isso parecia nome de homem. Talvez fosse Maria do Carmo, mas quem se chamava Maria já nascia sem nome, de tanta Maria que então havia.
Maroquinha sabia da vida, doença e morte de todo o mundo. Todos se sentiam vivos enquanto estavam sob suas pálpebras, e se sentiam importantes quando seus nomes passavam por aquele par de lábios murchos. Temiam o futuro quando aquelas pálpebras despencavam sobre eles.
A rua principal tinha esse nome porque ficava no meio: havia ainda uma rua à sua esquerda e outra à direita. Daí a vila acabava, e não crescia. Nascia mais gente do que morria, mas quem podia ia embora, tentar a vida na capital ou numa cidade maior. Não havia um quartel ou agência do Banco do Brasil que trouxessem rapazes casadoiros para as donzelas da vila. A donzelice ainda era virtude, mas podia não valer nada por falta de procura. Os rapazes, quando tinham uns trocados, iam até a cidade de Vila Boa, onde havia um putedo afamado, com música ao vivo nas sextas e sábados à noite. Voltavam contando vantagem e invejados pelos adolescentes sem pila.
Enquanto Maroquinha era visível, podia ser temida, mas ainda não era tão terrível, como quando se recolhia para a solidão sombria do sofá, onde tecia enredos que não deviam ser contados. Mesmo assim, ela os contava quando topava alguém, como o entregador de leite ou o rapaz da padaria. Mais terrível ela se tornou quando ganhou no Natal um par de binóculos.
Assim descobriu que um grupo de adolescentes estava se reunindo num terreno baldio ladeira abaixo. Ficavam sentados em círculo, com as calças arriadas, inspirados por uma moça que dançava no meio, mostrando pedaços cada vez maiores das coxas. Com o binóculo, Maroquinha conseguiu identificar um por um os heróis da disputa por ejaculação à distância, mas não contou nada a ninguém. Se queriam ir para uma Olimpíada, problema deles.
Apenas chamou, um por um, os rapazes para uma conversa. Contou o que havia visto, quem estava lá e quem não estava. Assim, ela conseguiu serviçais, pelo resto da vida, para tudo o que precisasse. Eles ficaram com fama de serem bons rapazes, que cuidavam de senhoras idosas. Se arranjaram.
A moça se chamava Esmeralda e ficou tão afamada – pelo falatório dos alpinistas que não alcançaram o topo das coxas – que acabou dando nome à vila, onde nunca havia dado uma única esmeralda, mas teve essa Esmeralda que, diziam as más línguas, dava para todos, mesmo que não tenha dado para ninguém, pois logo se enojou do que via, se arrependeu dos pecados da carne e foi para um seminário de freiras. Lá mudou de nome: pensou adotar o nome de Carlinda, mas achou que seria vaidade chamar-se de linda, lembrar carne linda. Preferiu irmã Pureza. Esmeralda se foi.
Fez os votos, tornou-se noiva de Cristo. Menos que um deus não lhe servia. Caso quisesse aparecer na cela à meia-noite, teria de ver perfumado e barbeado, não travestido de pároco ou prior. Cristo estava comprometido com Maria de Magdala: que fosse solteirão fora inventado em Elvira, para que monges e monjas, padres e bispos, ficassem sem filhos e as heranças abarrotassem as burras da Igreja. O historiador da vila registrou apenas, num caderno que ninguém leu, que uma jovem tinha ido para o convento. Logo todos se esqueceram da história. O nome Esmeralda, porém, ficou. Passam os fatos, ficam os nomes.
Enquanto os rapazes iam se casando, ficou solteirão o comandante da tropa e capitão da equipe olímpica conhecido por Mão de Veludo. Quando virou quarentão, decidiu construir um observatório de estrelas no alto de um morro próximo. Construiu sozinho, sem ajuda de ninguém, tijolo por tijolo, uma torre, de onde no alto se via um cano grosso apontar para o céu. Nunca deixou ninguém entrar lá, mas no botequim falava de estrelas e constelações, que ele dizia ter observado com o telescópio, mas cujo nome aprendera num antigo almanaque.
Dona Maroquinha, já idosa, fez o que podia para descobrir o que se passava nesse observatório do céu. Arrastou-se, com muletas e binóculo, para perto da torre, e descobriu, para seu espanto, que o astrônomo não olhava as estrelas, mas dirigia o visor do telescópio para os chuveiros em que as moças e senhoras da vila iam tomar seu banho ao anoitecer. Se era Mão de Veludo, Mão de Veludo ficou, mesmo depois que a inventora do apelido já partira para o além.
*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc].
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