Por VALERIO ARCARY*
A acefalia do Partido Democrata e o domínio da extrema direita no Partido Republicano expressam um novo momento da crise do imperialismo norte-americano
“Quem brinca com fogo acaba por se queimar”
(provérbio popular português).
Se há uma esquerda no mundo que não deveria ter dúvidas que Donald Trump é um protofascista é a brasileira. O Brasil foi um laboratório da história. Depois de tudo que aconteceu durante os quatro anos de mandato, e após a semi-insurreição de 8 de janeiro de 2023, a conclusão é incontornável. O golpismo foi uma estratégia permanente.
Jair Bolsonaro cometeu vários crimes de responsabilidade e só foi poupado de impeachment, porque fez uma aliança com o Centrão que blindou seu mandato até o fim. Se o regime democrático-liberal não terminou subvertido foi porque Jair Bolsonaro não reuniu forças suficientes, e não quis correr os riscos. Não conseguiu consolidar uma relação política de forças suficiente.
As trajetórias de Jair Bolsonaro e Donald Trump são diferentes, mas ambos estão alinhados com o mesmo projeto político. São dois monstros, e têm que ser derrotados, não podem ser perdoados. Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.
O Partido Republicano de 2024 é uma máquina dominada, monoliticamente, pela extrema direita e liderada por Donald Trump. Aqueles que fazem a distinção entre dois tipos de extrema direita diferentes, qualitativamente, entre si estão equivocados. Quem “passa pano” para o neofascismo, diminuindo o perigo, comete um erro teórico infantil, um erro político irremediável e uma avaliação, moralmente, imperdoável.
Não há uma extrema direita que se estrutura como corrente, estritamente, eleitoral e respeita os limites dos regimes em que lutam para chegar ao poder, e uma corrente neofascista de combate com um pé na legalidade e um pé na contrarrevolução insurrecional. Como em qualquer corrente política há dissensões entre os mais moderados e os mais radicais, aliás, como até no partido de Hitler.
Mas todos abraçam a mesma estratégia. São um mesmo e único movimento com duas alas no seu interior, mas quem dirige são os neofascistas. Se Donald Trump vencer em novembro, a ultradireita mundial ganhará um impulso formidável, talvez imparável em alguns países. Resumo da ópera: Donald Trump fortalece Jair Bolsonaro.
Donald Trump pode perder as eleições para Kamala Harris, e ainda assim ser o próximo presidente. É uma aberração, mas essas são as regras. Há uma crise política do regime norte-americano. É uma anomalia arcaica e disfuncional um sistema eleitoral em que o partido que vence no sufrágio universal, mas pode perder as eleições no Colégio eleitoral – porque são os delegados dos Estados que fazem o segundo turno decisivo – e pior ainda, em função, unicamente, do resultado em seis estados pêndulos.
Absurdamente, antidemocrático e obsoleto sobreviveu, até hoje, por incríveis dois séculos. Não é mais compatível com a realidade da sociedade norte-americana, porque não corresponde mais sequer, em teoria, ao que seria uma análise lúcida dos interesses do imperialismo mais poderosos do mundo, porque um mínimo de legitimidade é necessário para preservar o discurso ideológico de que os EUA defendem a “democracia” e o mundo “livre”.
A renúncia tardia de Joe Biden foi um alívio. Mas, se o desfecho favorece a possibilidade de reverter o atual favoritismo de Donald Trump, a luta política interna à cúpula democrata foi um episódio desonesto, obscuro e lamentável. Afinal, se Joe Biden não tem condições cognitivas para ser candidato, tampouco pode assumir as responsabilidades da presidência até o fim do ano. Ou tem para as duas tarefas ou não tem para nenhuma.
A saúde física e mental de Joe Biden foi tratada como um tema tabu sem nenhuma transparência, o que alimenta preconceitos etaristas, uma forma cruel de opressão dos idosos. Barak Obama e Nancy Pelosi lideraram uma pressão subterrânea brutal para forçar a renúncia porque as pesquisas indicavam uma inevitável derrota, a arrecadação financeira estava ladeira abaixo, e os vexames na reunião da OTAN foram grotescos.
Os dois principais jornais que respondem à fração liberal do capitalismo yankee, The New York Times e Washington Post, lançaram editoriais exigindo a renúncia depois do fiasco do primeiro debate. A renúncia foi um fato raríssimo, inusitado. O lançamento de Kamala Harris é uma solução improvisada em um contexto de desespero.
Em 2020, Donald Trump perdeu para Joe Biden, não foi Joe Biden quem derrotou Donald Trump. Não é um trocadilho, um jogo de palavras. A sociedade está fraturada e Donald Trump permanece favorito, embalado pela sobrevivência ao atentado. As pesquisas recentes que indicam um empate técnico indicam, por enquanto, que o desenlace eleitoral é imprevisível.
Em cem dias muito pode acontecer. Mas é bom lembrar que, sem o desgaste do mandato de Donald Trump entre 2016/20 – o aumento da pobreza e da desigualdade, a saída desastrosa do Acordo de Paris, o protecionismo provocativo contra a China, maior portadora dos títulos da dívida pública, por exemplo – e, sobretudo, sem o Black Lives Matter, a maior onda de mobilização negra e antirracista, desde os anos sessenta, que levou milhões da população negra e latina a comparecer para derrotar Donald Trump, Joe Biden não teria vencido.
As variáveis econômicas entre 2020/24 evoluíram favoravelmente, mas não foram o bastante. O PIB cresceu 2,5%, acima da média europeia, o desemprego diminuiu e a inflação caiu para menos da metade, mas não alterou a decepção com Joe Biden, que tem baixa popularidade. Há uma furiosa luta política contra os imigrantes, uma disputa misógina manipulada pelo conservadorismo moral fundamentalista, um ressentimento social envenenado pelo racismo que defende a supremacia branca, uma suspeita ou até hostilidade às propostas de descarbonização acelerada diante do aquecimento global, um rancor individualista que defende o armamento geral irrestrito, e um nacionalismo exaltado que justifica um imperialismo militarista, além da desconfiança anti-intelectual contra o mundo da ciência, cultura e arte.
Donald Trump faz uma “guerra ideológica”, não quer somente vencer uma eleição. Se o nome destas posições não é neofascismo, preservado o respeito aos excessos de uma analogia histórica, qual é? Kamala Harris é uma mulher negra enérgica, o que pesa a seu favor, mas não parece haver disposição da liderança liberal de enfrentar o protofascismo como a gravidade do perigo exige.
Ninguém na esquerda mundial pode desconhecer que Kamala Harris defende o apoio à ofensiva sionista na Faixa de Gaza, mesmo com a condenação de Israel no Tribunal Internacional de Justiça da ONU. Defende também o apoio à ofensiva da OTAN, estendendo sua posição até à fronteira da Rússia, dissimulada como proteção do governo de extrema direita de Volodymyr Zelensky na Ucrânia. Defende a doutrina de segurança nacional que identifica a China como uma inimiga.
Trata-se de uma representante de uma fração do capitalismo americano. A acefalia do Partido Democrata e o domínio da extrema direita no Partido Republicano expressam um novo momento da crise do imperialismo norte-americano. A derrota de Donald Trump seria o melhor desenlace, em especial, para a esquerda brasileira que ainda está ameaçada pelo bolsonarismo. Donald Trump e Kamala Harris não são iguais. Mas o partido democrata, ou Kamala Harris, não merecem qualquer confiança.
*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc]
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