Doze dias

Paul Klee, Barcos a vela, 1927
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o romance de Tiago Feijó

Albert Camus disse, em sua obra O Mito de Sísifo, que só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Se a vida vale a pena ser vivida é, para o escritor argelino, questão advinda de uma reflexão sobre a falta de controle sobre o destino, sobre as engrenagens sociais que determinam e conformam vidas, sobre os grilhões éticos e morais que nos aprisionam.

O romance Doze dias, de Tiago Feijó, não trata de suicídio, mas em vários momentos traz à tona estas questões. Ao mergulhar no difícil reencontro entre um filho e um pai que não se veem há quinze anos, na UTI de um hospital, o autor nos envolve em um tempo-espaço sem contornos definidos, onde os dias variam de ordem e os fatos pouco a pouco vão revelando nuances sobre os personagens.

O que poderia resultar num drama sombrio e masoquista é contornado com habilidade por Tiago Feijó. Ao introduzir um casal de velhos na mesma antessala de UTI, que vai interagir com o pai e filho por alguns dias, ele coloca a possibilidade de vidas felizes, de esperança de cura, descrevendo o fervor simplório de quem acredita em milagres. Um luminoso contraponto ao cinzento horizonte em que se encontram os protagonistas.

Outros personagens saem da penumbra. A mãe, separada há muitos anos do senhor Raul, e que criou o filho Antônio praticamente sozinha (supomos). A meia irmã, que ele mal conhece, a segunda mulher do pai, que faz uma aparição fugaz. As enfermeiras, sempre eficientes e insuficientes. Em alguns momentos a narrativa sai do hospital e acompanha o filho que retorna à casa paterna agora vazia, em Lorena, para regar as plantas a pedido do pai.

O grande personagem de Doze dias é o narrador. Onisciente, dialoga com o leitor ora descrevendo o estado mental dos protagonistas, ora antecipando ações que só ocorrerão algumas páginas depois. Desnuda com detalhes a vida dissoluta do senhor Raul, revela as inseguranças do filho, não perde tempo em detalhes dos personagens secundários.

Tiago Feijó controla com maestria todos as camadas da narrativa, e entrega um belo romance onde o leitor vai compartilhar um drama que está presente na vida de milhões de pessoas que sentem na proximidade da morte uma natural compulsão a reavaliar seus laços familiares, suas relações afetivas, e também a sua própria vida. Sem a pretensão de dar lições, mas de fazer boa literatura.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência

Tiago Feijó. Doze Dias. São Paulo, Penalux, 2022, 186 págs.
https://amzn.to/45XRVl9


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES