Por Manuel Domingos Neto*
A administração do mundo está em mudança acelerada e pode encurtar a trágica aventura do partido militar que leva o nome de “governo Bolsonaro”
Eduardo Costa Pinto logo intuiu que o apoio a Bolsonaro poderia não ser afetado imediatamente pela demissão espetaculosa de Moro.
A pesquisa da XP realizada entre os dias 23 e 24, divulgada neste sábado, dia 25, confirmou sua hipótese. Os que alimentam expectativa boa, ótima e regular sobre o governo somam 44% dos entrevistados. Os que têm expectativa ruim e péssima chegam a 49%. Tendo em vista o desemprego, a penúria reinante e os descalabros governamentais, é um desempenho extraordinário.
A pesquisa registra que 77% dos entrevistados disseram ter conhecimento da saída de Moro. Pode não ter transcorrido ainda o tempo necessário para que a exploração do episódio mostre seus desdobramentos.
De toda forma, fica reafirmado: Bolsonaro corporifica politicamente expressiva tendência conservadora-radical de parcela numerosa da sociedade brasileira. É notável a ofensiva bolsonarista atacando Moro nas redes sociais. A turma tem consciência do impacto negativo da saída de Moro (67% das respostas), mas não se abate.
O afastamento de Bolsonaro, por renúncia forçada ou impeachment, hoje, dependeria basicamente de iniciativas institucionais, ou seja, de investigações criminais, judiciais e legislativas, não da mobilização popular contra desmandos governamentais. Instituições não entram em lances decisivos sem forte respaldo da opinião pública e… sem amparo militar.
Importantes elementos da grande mídia perderam as ilusões sobre a capacidade de o atual governo responder aos dramáticos problemas sanitários, sociais e econômicos. Empenham-se agora no afastamento de Bolsonaro, temendo a deterioração do quadro sócio-econômico. Refletem a inquietude dos homens do dinheiro. Mas quando suas denúncias lograrão calar fundo na consciência de muitos brasileiros e sensibilizar as corporações da força bruta ao ponto de respaldarem o afastamento do Presidente?
Bolsonaro tem ao seu lado o Partido Militar, que dispõe de um contingente de um milhão de homens da ativa e da reserva em militância ininterrupta e frenética para “salvar o Brasil” do comunismo e reforçar seus proventos.
Uma debandada de generais do governo seria devastadora. A política estaria, então, entregue aos políticos, mas isso é improvável. Onde já se viu militares entregando cargos públicos sem fortes constrangimentos por parte da opinião pública?
Por que os generais persistem amparando Bolsonaro?
Há diversas explicações possíveis, sendo a primeira delas a dificuldade de abandono da cria. Muitos ainda não admitem ou fingem não admitir, mas o candidato e o presidente Bolsonaro foram obras castrenses. Não existiriam sem a vontade e a mobilização da caserna.
A tentativa de atenuar a responsabilidade das corporações é manifesta nas insistentes referências a uma “ala militar”. Que “ala” é esta? Obviamente, não pode se resumir aos três generais que não arredam o pé da sala do capitão. (Heleno hoje parece ter pouco peso). Ramos, Braga e Fernando não ocupam postos relevantes por conta de exclusivos atributos pessoais. Atrás de cada um, há a teia de amparo, intrincada, profusa, capilar e radicalizada.
O que pretende, qual sua consistência, quem comanda a tal “ala militar”? Quem quiser acredite que tais homens representam a si mesmos.
A falácia da “ala militar” serve para atenuar a ideia de que o governo esteja sendo respaldado e conduzido por corporações. Permite também imaginar oficiais idealistas e articulados voluntariamente para lutar contra terraplanistas aloprados.
Apontar tal “ala” é também uma maneira de negar a estreita aproximação política e ideológica entre os múltiplos e variados condutores da máquina governamental; serve para negar o afinamento entre as cabeças que conduzem a administração pública. Ora, uma das razões do “sucesso” de Bolsonaro é justamente a coesão de sua equipe. As quedas de Mandetta e de Moro, que tanto animam os opositores, decorreram de veleidades eleitorais, não de discordância de princípios políticos, éticos ou administrativos.
É provável que nos próximos dias o noticiário ofereça fartos elementos (para os que quiserem entender) que Moro e Bolsonaro apresentam provêm da mesma cepa moral. Moro, menos vivaz, será duramente estigmatizado como transgressor da “omertà”.
Há, de fato, figuras no governo que, pelo exotismo de posturas e pela incapacidade administrativa, incomodam os militares. Mas no plano da percepção do processo político em curso, não há contraditórios notáveis na equipe governamental.
Predominam no conjunto a ojeriza à esquerda, o medo da China, o alinhamento automático a Washington, o conservadorismo nos costumes, o ódio ao sistema político representativo, a raiva e o medo da transformação social favorecedora dos mais pobres, a vontade de destruir o que foi construído com base do pacto de 1988.
Exemplos notórios da comunhão espiritual entre militares e terraplanistas aloprados: o silêncio frente às agressões de Olavo de Carvalho, as contemporizações com os ministros da Educação e do Exterior, próceres da abominável destruição de políticas públicas estratégicas. Observemos a concentração de militares na Educação e na Ciência e Tecnologia. Por que não reagem aos descalabros?
Bolsonaro é uma cria dos militares e seu governo representa a vontade das corporações politicamente ativas desde sempre, mas obedientes aos esquemas de aproximações progressivas e sustentadas, conforme explicou Mourão..
É intrigante que, até agora, a estreita associação entre o bolsonarismo e o partido militar não seja percebida pela “sociedade civil”. As tergiversações nesta matéria são lastreadas na falácia de que os militares persistem como o “lado” ajuizado ou racional do governo. Ora, não podem ter bom juízo os que escolheram o “Cavalão” como peça de apoio para retornar ao mando político e desenvolver tenebrosa agenda conservadora.
Analistas de todos os matizes, com razão, agitam-se acerca de supostas cisões entre os generais e o presidente. Há gente de esquerda, inclusive, torcendo discretamente para que isso ocorra. Alguns olham esperançosos para o vice-presidente. Um líder de esquerda disse até que o Brasil chegaria melhor em 2022 com o governo entregue ao general Mourão.
Iludida, aturdida e na defensiva, a oposição fala em governo de “salvação nacional”, em “frente ampla”… Se não consegue se entender minimamente, como a oposição lograria arrebatar o sentimento dos brasileiros?
A oposição sabe que não tem força e não pode pensar em levantar multidões. Evitando o combate de idéias no seio da população, os partidos voltam-se para práticas eleitorais carcomidas, mesmo sem a certeza de que o próximo pleito seja de fato assegurado. Quanto à saída para a crise, sonha com a prevalência de nossa tradição republicana: um grande acordo de cúpula que evite confrontos desestabilizadores de velhas estruturas. Um ponto indiscutível do acordo é o descarte definitivo de Lula.
O que pode fazer ruir o castelo de cartas que sustenta Bolsonaro, quem sabe, é a comoção decorrente da mortandade previsível pela incúria diante do avanço anunciado do covid-19.
Mas comoções populares em si não conduzem necessariamente a mudanças políticas. Provocam explosões de fôlego curto, contidas pelo aparelho repressor do Estado, o mesmo que criou e sustenta Bolsonaro.
Para não concluir de forma demasiado amarga, lembraria que, como quase tudo na vida, farsas políticas têm duração incerta. A administração do mundo está em mudança acelerada e pode encurtar a trágica aventura do partido militar que leva o nome de “governo Bolsonaro”.
Como observou Héctor Saint-Pierre, esta aventura tem tudo para ser as Malvinas dos militares brasileiros.
*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq