Por ERIK CHICONELLI GOMES*
A obra do historiador britânico representa uma verdadeira revolução metodológica nas ciências sociais
A influência de E. P. Thompson na historiografia ultrapassa os limites da história britânica, alcançando um contexto mais amplo nos estudos latino-americanos, incluindo a historiografia brasileira. Sua obra, especialmente sobre consciência de classe e economia moral, fornece um arcabouço teórico para compreender movimentos sociais e narrativas históricas no Brasil. Pesquisadores traçam paralelos entre as teorias de E. P. Thompson e o cenário sociopolítico brasileiro, especialmente ao analisar as dinâmicas de luta de classes e o papel dos movimentos populares na formação da história do país.
A obra do historiador britânico representa uma verdadeira revolução metodológica nas ciências sociais, particularmente na forma como compreendemos a formação das classes sociais e dos movimentos populares. No contexto brasileiro, sua influência é especialmente significativa porque oferece ferramentas teóricas que permitem analisar as peculiaridades de nossa formação social.
Quando observamos, por exemplo, as complexas relações entre senhores e escravos no período colonial, ou entre patrões e empregados no início da industrialização brasileira, os conceitos thompsonianos nos ajudam a compreender como essas relações não eram simplesmente determinadas por fatores econômicos, mas também por um intrincado sistema de valores, costumes e expectativas mútuas.
O conceito de economia moral de E. P. Thompson, que destaca os valores e normas compartilhados que regem o comportamento econômico dentro das comunidades, pode ser aplicado ao contexto histórico brasileiro, particularmente durante períodos de agitação social. Por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) incorpora os princípios da economia moral ao defender a reforma agrária com base em noções de justiça e equidade, refletindo um entendimento coletivo de direitos entre populações marginalizadas (Malamud, 2011; Higgins & Pereira, 2013). Esse movimento, semelhante às ações coletivas que Thompson estudou na Inglaterra do século XVIII, ilustra como estruturas culturais e morais influenciam a ação coletiva no Brasil (Waters, 2022; Calabrese, 2005).
A historiadora brasileira Silvia Lara, em seu livro Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808 (Paz e Terra, 1988), foi uma das pioneiras na aplicação do conceito de economia moral de Thompson ao contexto brasileiro. Em sua análise das relações escravistas, ela demonstra como as tensões entre senhores e escravos não se limitavam apenas às questões materiais da exploração do trabalho, mas envolviam todo um conjunto de expectativas mútuas, costumes e noções compartilhadas de direitos e deveres.
A aplicação do conceito de economia moral ao contexto brasileiro vai além do exemplo do MST, podendo ser observada em diversos momentos históricos. As revoltas populares do período colonial, como a Revolta do Malês ou a Cabanagem, podem ser melhor compreendidas quando analisadas sob a perspectiva da economia moral. Estes movimentos não eram simplesmente reações a privações materiais, mas expressavam um complexo entendimento sobre justiça, direitos e obrigações mútuas entre diferentes grupos sociais. Da mesma forma, os quebra-quebras urbanos do início do século XX, motivados por aumentos nos preços de alimentos ou tarifas de transporte, revelam a existência de noções compartilhadas sobre preços justos e direitos básicos da população.
Esta perspectiva desenvolvida por Silvia Lara foi fundamental para uma nova compreensão da escravidão no Brasil, influenciando toda uma geração de historiadores. Sua análise demonstra como o conceito de economia moral permite entender as complexas negociações cotidianas entre senhores e escravos, que incluíam não apenas aspectos econômicos, mas também morais e culturais. Por exemplo, ao analisar os castigos físicos aplicados aos escravos, Silvia Lara demonstra como havia um entendimento compartilhado sobre os limites aceitáveis da violência, e como a ultrapassagem desses limites podia gerar revoltas e resistências.
Além disso, a crítica de E. P. Thompson às abordagens estruturalistas ressoa com a historiografia brasileira, onde acadêmicos enfatizam a importância da agência individual e do contexto cultural na compreensão dos processos históricos. Essa perspectiva desafia visões deterministas da história que ignoram as complexidades das relações sociais e o papel ativo dos indivíduos na formação de suas circunstâncias (Stevenson, 2016; Burns, 2021). No Brasil, a interação de diversos movimentos sociais, incluindo aqueles que lutam pela igualdade racial e pela justiça ambiental, evidencia as diversas expressões de agência que E. P. Thompson destacou em sua obra (Fuchs, 2021; Stevenson, 2016).
A crítica thompsoniana ao estruturalismo encontrou particular ressonância no Brasil devido à nossa própria experiência histórica de resistência e adaptação cultural. O sincretismo religioso brasileiro, por exemplo, demonstra como grupos subalternos não foram meros receptores passivos de imposições culturais, mas agentes ativos na criação de novas formas de expressão e resistência. Da mesma forma, a persistência de práticas culturais de origem africana, mesmo sob intensa repressão durante o período escravista, ilustra a capacidade de agência que E. P. Thompson tanto enfatizou em sua obra. Esta perspectiva tem sido fundamental para uma nova compreensão da história brasileira, que valoriza a capacidade de ação e resistência dos grupos subalternos.
Ademais, o exame das desigualdades de renda e das políticas sociais no Brasil pode ser enriquecido pelas contribuições de E. P. Thompson sobre as dinâmicas de classe. Os efeitos redistributivos das políticas tributárias e de gastos sociais brasileiras revelam as lutas contínuas entre diferentes classes sociais, ecoando a análise de E. P. Thompson sobre a formação de classes como um processo histórico e cultural (Higgins & Pereira, 2013; Nerì, 2021). Esse entendimento é crucial para abordar questões contemporâneas de desigualdade e justiça social no Brasil, pois destaca a necessidade de políticas que sejam não apenas economicamente viáveis, mas também culturalmente alinhadas com os valores das comunidades afetadas (Higgins & Pereira, 2013; Nerì, 2021).
A análise thompsoniana das desigualdades sociais brasileiras nos permite compreender como as políticas públicas interagem com as expectativas e valores culturais das comunidades. Por exemplo, o sucesso relativo de programas como o Bolsa Família não pode ser atribuído apenas à sua eficácia econômica, mas também à sua capacidade de respeitar e incorporar valores culturais importantes para as comunidades beneficiadas, como a autonomia das mulheres na gestão dos recursos familiares. Da mesma forma, a resistência a certas políticas públicas pode ser melhor compreendida quando consideramos não apenas seus aspectos econômicos, mas também sua relação com os valores e expectativas morais das comunidades afetadas.
A aplicação da metodologia thompsoniana à historiografia brasileira tem se mostrado particularmente frutífera no campo dos estudos sobre movimentos sociais urbanos contemporâneos. Por exemplo, ao analisarmos os movimentos de ocupação urbana nas grandes cidades brasileiras, podemos identificar elementos claros da economia moral thompsoniana: a ideia de direito à moradia não se baseia apenas em necessidades materiais, mas em um conjunto de valores morais compartilhados sobre o que constitui uma cidade justa. Da mesma forma, as manifestações contra aumentos de tarifas de transporte público não podem ser reduzidas a uma simples questão de capacidade de pagamento, mas envolvem noções complexas sobre direitos urbanos e cidadania.
Por fim, é importante ressaltar como os conceitos de E. P. Thompson têm contribuído para uma compreensão mais sofisticada das intersecções entre classe, raça e gênero na sociedade brasileira. A formação da classe trabalhadora no Brasil, por exemplo, não pode ser entendida sem considerar o legado da escravidão e as questões raciais que permeiam nossa sociedade. Da mesma forma, a participação das mulheres nos movimentos sociais brasileiros revela como as questões de gênero se entrelaçam com as lutas de classe, criando formas específicas de resistência e organização. Esta perspectiva interseccional, embora não explicitamente teorizada por Thompson, encontra em sua metodologia ferramentas valiosas para uma análise mais completa e nuançada da realidade social brasileira.
*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.
Referências
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Neri, Marcelo. A escalada da desigualdade: qual foi o impacto da crise sobre a distribuição de renda e a pobreza? Rio de Janeiro: FGV Social, 2021.
Stevenson, N. (2016). E. p. thompson and cultural sociology: questions of poetics, capitalism and the commons. Cultural Sociology, 11(1), 11-27. https://doi.org/10.1177/1749975516655462
Thompson, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
Waters, H. (2022). Building merit: the moral economy of the illegal wildlife trade in rural, post-socialist eastern mongolia. Comparative Studies in Society and History, 64(2), 422-445. https://doi.org/10.1017/s0010417522000081
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