Por ADEMAR BOGO*
A mobilização contra o governo Bolsonaro deve ser permanente
O filósofo Nietzsche, em Genealogia da moral, nos diz que, “não nos é permitido enganar-nos nem encontrar a verdade por acaso”. A razão para este entendimento está, certamente, em mostrar que não devemos confiar demais nas evidências superficiais e nem considerarmos como verdadeiro apenas o fato depois de acontecido; os processos também são verdadeiros ou enganosos.
Esses ensinamentos servem para todos e para quaisquer circunstâncias. Para quem já viveu o suficiente para aprender que a classe dominante é sempre dominante enquanto existir, e que, além de ser proprietária do capital controla também o Estado capitalista, fazendo-o agir coercitivamente a seu favor, é de fundamental importância não confiar em verdades ocasionais, principalmente porque a História, nunca dá razão às posições conformistas continuadas e submissas perpetuamente à ordem estabelecida.
De posse desses entendimentos confirmamos que historicamente as forças de repressão são mantidas, treinadas e alimentadas, para estarem à disposição do poder centralizado, para agirem sempre que as forças de oposição se movimentarem contra a ordem, sustentada pelos interesses dominantes. Na ausência de ameaças iminentes, principalmente, as forças armadas, desaparecem dos noticiários e pouco se debate sobre qual é de fato o seu papel na estrutura do Estado.
Costumeiramente as Forças Armadas protegem o país dos inimigos externos e das possíveis ameaças contra a soberania nacional. Há séculos não ouvimos rumores de que algum país vizinho tenha demonstrado interesse de agir nessa direção. No entanto, as guerras não são travadas apenas contra Estados, elas também podem ser desencadeadas contra outras espécies e forças da natureza. Nesse momento temos a “invasão interna” de territórios indígenas e a devastação das florestas indefesas, sem que as forças de defesa se movam para proteger estes povos e as demais espécies de vida devoradas pelo desmatamento. Se isto não ameaça a nossa soberania territorial, enquanto nação, ameaça a nossa soberania moral e política, levando-nos a perder a admiração, o respeito e a autoridade frente às demais nações do mundo.
É nesse ponto que se torna um perigo a apatia política. Há poucos dias, o Ministro do Meio Ambiente, ao participar da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), na Escócia, escondeu a verdadeira realidade da devastação ambiental no Brasil, oferecendo dados amenos para fingir concordar e estar comprometido com as propostas lá afirmadas. No entanto, vergonhosamente escondeu que a taxa de crescimento do desmatamento da Amazônia, oficialmente, cresceu 22% entre agosto de 2020 e julho de 2021.
Há, evidentemente, após diversas derrotas, sem mudar a natureza, uma mudança de postura política do poder Executivo. Como exemplo, podemos citar a prioridade da vacinação e o uso de máscara; a anulação da implantação da “escola sem partido” que impunha a mordaça aos professores; a confirmação da urna eletrônica; o “desacovardamento” do Supremo Tribunal Federal que restituiu direitos e recompôs a ordem tradicional da política e, dentre outras, a perda de apoio popular do presidente da República.
A verdade de acaso vem à tona quando o comportamento do presidente da República transmuta-se, no sentido de enquadrar-se aos anseios da “velha política” por ele anteriormente rejeitada. Nessas práticas reina a arte dos negócios políticos, gerenciados pelo “Centrão”, cujo centro não leva a uma posição de equilíbrio entre as forças políticas, apenas reafirma o modo de politicar em torno dos próprios interesses. Essa articulação, além de amenizar as tensões entre os poderes, começou a render frutos e o governo passou a ter vitórias significativas no âmbito das aprovações de seus projetos; o principal deles é este que liberou o aumento dos gastos para o próximo ano, permitindo furar o teto tão contestado anteriormente pelos neoliberais, quando os limites orçamentários foram estabelecidos.
A inflexão comportamental para agir aparentemente dentro da ordem foi o suficiente para fazer sumir dos noticiários e também de muitos debates, o risco de golpe, a presença do banditismo político no governo, o papel dos militares na estrutura do Estado, e tantos outros temas que intimidavam e preocupavam as forças de esquerda e os progressistas – alinhadas tradicionalmente com a ordem capitalista.
Se Nietzsche tem razão ao dizer que “não nos é permitido enganar-nos”, o engano deixa de ser, para pessoas conscientes, um direito adquirido a se enganar; isto porque, aquilo que é proibido, o é, por não ser permitido. Ou seja, só é permitido enganar-se se não houver nenhuma proibição. Nós temos dezenas de proibições descritas por derrotas já experimentadas. Portanto, se “a verdade não se encontra por acaso”, esteja ela no caos ou no ascenso das soluções, é preciso encontrá-la e afirmá-la.
A suposta sensação de calmaria e a amenização das ameaças raivosas vindas do planalto central, (com licença da metáfora) foram noticiadas após o “cachorro louco” que, popularmente se expõe no mês de agosto, neste último mês de setembro aceitou a coleira e agora estaria amarrado. Mas a pergunta a ser feita é se ele deixou de ser louco? Se acreditarmos que sim, estaremos indo contra a verdade, pois a ciência atesta que raiva canina não tem cura.
Suponhamos que o cão esteja realmente amarrado, mas ele está vivo, e o tempo de espera joga a seu favor. Para retomar as ameaças precisam apenas de algumas habilidades para soltar-se, e aí sim atacará com maior violência. Não é demais alertar que as derrotas sofridas pelo governo, vieram da mobilização popular, aliás, foi com elas, quando estiveram a seu favor, mesmo em quantidade insuficiente, que ele tentou intimidar os outros poderes, e, também, quando as forças de esquerda e os movimentos sociais, impusemos a resistência e fizemos a conjuntura mudar de cor.
De outro modo, devemos perceber a intensa atividade da “ditadura da informação”, com a qual os milicianos tentam confundir as consciências ingênuas, religiosas e apáticas, de que a “mentira os libertará”. Dessa forma e neste lapso de tempo, o princípio da “paciência histórica”, validado pelas experiências revolucionárias do passado, de ir avançando aos poucos até chegar ao objetivo parcial, serve também para as forças de direita e, esta possível “calmaria” é muito favorável ao governo, que espera, com o “auxilio Brasil” recuperar a popularidade, quanto para a “terceira via” indefinida, mas que circula ao redor do cão amarrado, em busca de ocupar aquele território e usufruir daqueles votos.
O comodismo de nossa parte, como se “o já ganhou” justificasse o sofrimento da espera, que no momento nos separa por quase 14 meses, deve ser despertado pelo alerta de que “tudo pode acontecer” e, sem a mobilização permanente nas ruas, favorável à morte política do cão raivoso, a verdade do acaso, vigorará também, nas ideias distorcidas vagantes e enganosas vigentes em nossas fileiras.
O século XXI já demonstrou que a democracia saiu dos palácios e dos parlamentos e se tornou uma eficiente moradora de rua. Ali é o seu lugar. Quem quiser verdadeiramente encontrá-la, deve ir ao seu encontro e lá permanecer.
*Ademar Bogo é doutor em filosofia pela UFBA e professor universitário.