Economia da longevidade

Imagem: Staffan Hallström
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Por JORGE FÉLIX*

Apresentação do autor ao livro sobre o envelhecimento populacional

O debate público sobre o envelhecimento populacional no Brasil é intencionalmente confinado na questão da necessidade de solvência das contas do sistema de previdência social. Minha interpretação sempre foi a de que esse viés meramente fiscalista condenaria o tema a uma imagem de catástrofe determinista com resultados perversos para toda a seguridade social e, consequentemente, para a sociedade brasileira. Infelizmente, essa ainda é a acepção hegemônica na esfera pública, sobretudo entre os economistas. Esse exclusivismo apaga todo o contexto histórico da dinâmica demográfica que diferencia os países pobres e os países ricos, usando aqui uma definição, concordo, bastante simplificadora para designar o estágio de desenvolvimento econômico das nações.

Outras nomenclaturas, amplamente adotadas, como desenvolvidos, subdesenvolvidos, emergentes, países de renda média, etc., só ampliaram a nebulosidade sobre o que este livro pretende trazer à luz. O debate meramente fiscalista oculta o caráter adquirido pela dinâmica demográfica na concorrência global do século XXI. Ao lado das mudanças climáticas e do avanço tecnológico (a chamada 4ª Revolução Industrial, com a ascensão da inteligência artificial nos sistemas de produção), o envelhecimento populacional global, embora em ritmos distintos de uma nação para outra, é o fator determinante nosso século das possibilidades de desenvolvimento econômico. O mundo vive uma “corrida populacional”. Aqueles países com melhores habilidades para solucionar esse desafio, estará apto à manter ou alcançar um estágio satisfatório de desenvolvimento. Os perdedores ficarão para trás.

Um outro aspecto do envelhecimento populacional é seu potencial de fonte de riqueza. Em dois aspectos. O primeiro diz respeito à possibilidade de empresas financeiras e seguradoras de um país explorarem o mercado de poupança para a aposentadoria nos países alheios e isso explica muito o interesse de players globais em reformas redutoras dos sistemas de seguridade social, sobretudo previdência por repartição (pay-as-you-go) de países pobres, como o Brasil. Na concorrência global, a poupança feita alhures é vista como fonte de lucro para a solvência de um Estado do Bem-Estar Social sob ameaça nos países ricos.

O segundo aspecto é o potencial do envelhecimento da população de ser o propulsor de um novo segmento de industrialização altamente sofisticada. É o que chamei de “economia da longevidade”, em 2007, numa tradução do termo “silver economy” (ou “longevity economy”). Ainda insipiente no Brasil, a economia da longevidade baseia-se na mudança da estrutura de consumo das famílias (com mais idosos e menos crianças) para fazer emergir uma visão econômica repleta de possibilidades para os países na área industrial – seguindo uma visão schumpteriana e marxiana de defesa da industrialização como condição indispensável para o desenvolvimento econômico.

Em resumo, o envelhecimento jamais poderia ser visto apenas como custo, como “a bomba relógio”, como tem sido pelas políticas públicas no âmbito da Seguridade Social, mas como fonte de recursos se adotada uma estratégia mais produtiva e menos financista na economia. Os países ricos estão atentos para esta economia e, nos últimos anos, sobretudo depois da crise de 2008, passaram a destinar montanhas de recursos a pesquisa e desenvolvimento com o intuito de largar na frente nessa “corrida populacional” e serem os líderes globais em inúmeros produtos e serviços para o envelhecimento, quase todos de alta tecnologia.

Esses aspectos são praticamente ignorados no debate público sobre o envelhecimento populacional no Brasil, seja pelos policy makers seja pela imprensa ou mesmo boa parte do meio acadêmico. Esse desprezo tem um custo econômico, de um lado, e de outro, evidentemente – ou ao menos para quem tem cabelos brancos e deixou de acreditar em coincidências – um interesse econômico nada nacionalista. Na minha perspectiva, depois de muitos anos de pesquisa, está claro que a dinâmica demográfica global, pelos motivos acima, atua como vetor de uma nova colonização com canais na indústria financeira, na indústria de tecnologia e saúde e nos processos imigratórios.

Estes últimos com a condição de que sejam para o fornecimento de mão-de-obra barata, principalmente de mulheres, para os cuidados de longa duração de idosos. Como afirma a socióloga norte-americana Arlie Russel Hochschild, as mãos femininas para os cuidados são uma espécie de novos recursos naturais, como o foram o ouro, a borracha, o petróleo, que o mundo rico espoliou do mundo pobre nos séculos passados. Nesse “imperialismo emocional”, o produto é o amor e o carinho para os trabalhos de cuidados de crianças e idosos nos países ricos. É difícil para os economistas, mesmo os mais afeitos à matemática, quantificar no agregado o quantum de horas liberadas para o trabalho os familiares dos idosos dos países ricos punçam das imigrantes cuidadoras.

Mais do que esta assimetria entre os estágios desenvolvimento dos países ao envelhecerem, notadamente os pobres e os ricos, ou o “Ocidente” e o não-Ocidente, este livro pretende resgatar outro aspecto que considero importante no debate especificamente sobre a previdência social. É seu sentido social. Em conversas com muitos economistas em eventos, plateias ou alunos de diversos cursos de graduação e de pós-graduação percebi, ao longo dos anos, como o “significado” de um sistema de previdência social se perdeu completamente no emaranhado de números e tabelas do discurso fiscalista. A maioria dos economistas, arrisco afirmar, lida com a questão previdenciária alinhando-a com outras despesas ordinárias. É apagado o seu caráter original, de enorme carga política e social.

Os sistemas de previdência jamais surgiram por solidariedade, pena dos idosos ou preocupação com a desigualdade social, embora tenham desempenhado esse papel. Ele surgiu por medo da guerra, pela certeza de que, sem um mínimo de coesão social proporcionado pela redução do risco velhice, o capitalismo resulta em bombas e destruição. Embora os primeiros sistemas de previdência datem do século XIX, foi depois das duas guerras mundiais, é preciso lembrar, que o mundo chegou ao consenso em torno de sua necessidade e de seu caráter estatal. Esse livro pretende, portanto, resgatar esse sentido, esse significado para o debate atual.

Infelizmente, meu ponto de vista é um tanto pessimista. Não sobre as possibilidades particulares da velhice de cada, uma vez que o envelhecimento é heterogêneo em todas as sociedades. Os países pobres, como será visto, têm poucas chances de alcançar os países ricos no século XXI para disputarem com alguma chance essa corrida. O tempo nunca lhes foi favorável. Nem no passado. Nem agora. O envelhecimento populacional é surpreendentemente rápido.

Como sabemos, as populações envelhecem devido a uma grande vitória do capitalismo, o aumento da expectativa de vida, concomitante a uma derrota, no meu ponto de vista, a redução da taxa de fecundidade. Sempre insisto na questão: se estamos envelhecendo mais e melhor, por que o homem do século XXI decidiu legar essa fortuna a cada vez menos descendentes? Talvez a pobreza e a desigualdade social crescente expliquem esse fenômeno. É por isso que é chegada a hora de se pensar o envelhecimento populacional muito além da previdência.

*Jorge Félix é doutor em Ciências Sociais (PUC-SP) e professor de Economia no bacharelado em Gerontologia na Escola de Artes, Ciência e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP).

 

Referência


Jorge Félix. Economia da longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência. São Paulo, Editora 106 Ideias, 2019, 190 págs.

 

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