Por LUIZ GONZAGA BELLUZZO & MANFRED BACK*
Por trás do discurso técnico que condena o investimento público, esconde-se uma ficção perigosa: a de que é possível gerar renda para todos sem que ninguém ouse gastar primeiro
“Eu vejo o futuro repetir o passado / Eu vejo um museu de grandes novidades / O tempo não para / Não para, não, não para” (Cazuza, O tempo não para).
“Frequentemente, a formulação de um problema é mais essencial do que a sua solução” (Albert Einstein).
1.
Nas décadas de 50 e 60 do século passado, existia uma série de grande sucesso de audiência chamada: Papai sabe tudo. O enredo do seriado, os três filhos viviam pedindo conselhos ao pai, afinal, papai sabe tudo. Nesses tempos de pensamento e solução únicas, somos obrigados a assistir a série Economista Sabe Tudo, mesmo que a audiência não entenda o que eles falam, mesmo com legendas e dublagem. E como diz a música, um museu de grandes novidades.
Na física o princípio da impenetrabilidade da matéria demonstra que dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Aos leigos: você pode ver com seus olhos todo o santo dia, numa estação de metrô, a multidão de pessoas tentando entrar e sair ao mesmo tempo do vagão do trem.
A física ciência que causa calafrios, insônias, depressões e, principalmente, inveja ao Economista Sabe Tudo. Como diria Caetano Veloso: Narciso acha feio o que não é espelho. Não se fizeram de rogados, criaram o princípio da impenetrabilidade da matéria na economia, o conceito de “Crowding Out”. Esse conceito (Hegel nos perdoe) afirma que dois gastos não podem ocupar o mesmo espaço numa economia, um expulsa o outro. Eles concorrem entre si. Num dos episódios mais recorrentes da série Crowding Out, na sua vigésima quinta temporada diz que o gasto público (política fiscal), concorre e expulsa o gasto privado.
Na realidade de ficção do Economista Sabe Tudo, é sempre efeito-substituição, em bom português, é isto ou aquilo. Não existe a possibilidade de complementariedade, isto e aquilo. Peço aqui a máxima vênia, para citar uma colocação de um Doutor por Yale. O sábio da Crematística afirma que o temido risco fiscal impõe ao banco central brasileiro ter de aumentar a taxa de juros básica. Entre as vítimas do Crowding Out afigura-se com aplomb o aumento da concessão de crédito pelo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), concessão maculada com taxa de juros inferior à praticada no Deus Mercado. Nossos sábios, discorrem sobre o tema com certezas dignas do absolutismo de Henrique VIII antes de decepar a cabeça de Ana Bolena. E convencem a mídia.
“Por fim, o Banco Central não é a única instituição pública que afeta o crédito. A carteira do BNDES passou de cerca de R$ 480 bilhões ao final de 2022 para R$ 600 bilhões hoje. Esse aumento no crédito do BNDES é como uma queda na taxa de juros para quem tem acesso a esses empréstimos. Quando o BNDES expande o crédito, o BC precisa aumentar os juros para compensar esse aumento”. (Bernardo Guimarães)
Assim pela lógica dos sabichões, para ajudar o banco central a baixar a taxa de juros, há que reduzir os empréstimos do BNDES ou extinguir o banco.
Invocamos o grande filosofo Baruch Spinoza: a medida, o tempo e o número são apenas modos de pensar, ou melhor, de imaginar.
Dados do Banco Central do Brasil mostram que o total de crédito na economia brasileira é cerca de 7 trilhões de reais. BNDES seria cerca de 8,5% do total. E desculpem os leitores, o estresse técnico. A missão do BNDES é financiar projetos, obras e serviços de interesse nacional, apoiando desde grandes empreendimentos de infraestrutura, até micro, pequenas e médias empresas. E, destaco em negrito, financiamento de longo prazo. Só faria competição aos bancos de investimentos. Qual banco comercial faz empréstimos a longo prazo?
“O mercado de crédito corporativo no Brasil movimenta, em média, R$ 418,95 bilhões por ano desde 2019 com títulos de dívida, segundo a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais
2.
Recorremos à história: a criação do Banco da Inglaterra em 1694 impulsionou a aceleração do capitalismo. Nos primórdios da escalada monetária, os bancos ganharam a prerrogativa de emitir notas para abastecer a circulação monetária. Com a evolução do sistema de crédito, os passivos bancários mudam de forma: a emissão de notas é substituída por depósitos à vista que podem ser mobilizados por seus titulares como meios de pagamento. “Se B deposita no banco o dinheiro recebido de A e o banqueiro entrega esse dinheiro a C como desconto de uma letra, C faz uma compra a D e este deposita no banco, que por sua vez empresta a E, que compra de F, teremos que o ritmo (da criação monetária) como meio de circulação se opera mediante várias operações de crédito.” (“O Capital”, vol. III, pag 489).
John Maynard Keynes definiu as conexões entre gasto e renda. Em carta encaminhada a Franklin Delano Roosevente “Nós produzimos a fim de vender. Em outras palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que nós possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-se de gastar. Então, como eu disse, a resposta é óbvia.
Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como, então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo? Esse pensamento desnorteia o público.
No entanto, um comportamento que pode fazer um único indivíduo pobre pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta, ele não afeta só a si mesmo, mas outros. A despesa é uma transação bilateral. Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.
Se você responder comprando algo que eu posso fazer para você, então minha renda também é aumentada. Assim, quando estamos a pensar na nação como um todo, devemos ter em conta os resultados como um todo. O resto da comunidade é enriquecido pela despesa de um indivíduo. Sua despesa é simplesmente uma adição à renda de todos os outros.
Há apenas um limite para que o rendimento de uma nação possa ser aumentado desta forma: o limite fixado pela capacidade física de produzir.”
No seriado Economista Sabe Tudo a ficção da criação de renda sem gasto tem a pretensão de modelar a realidade. “Crowding Out”, poderia ser nome de música, título de episódio, mas, é uma desconexão que macula o entendimento das economias monetário-financeiras capitalistas.
“Quem não quer pensar é um fanático, quem não pode pensar é um idiota, quem não ousa pensar é um covarde”. (Horace Walpole)
Perguntar não ofende: até quando o streaming vai passar a série Economista Sabe Tudo?
“Eu não vim pra explicar, eu vim pra confundir” (Chacrinha)
*Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, é Professor Emérito da Unicamp. Autor entre outros livros, de O tempo de Keynes nos tempos do capitalismo (Contracorrente). [https://amzn.to/45ZBh4D]
*Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.
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C O N T R I B U A




















