Por FRANCISCO MESQUITA DE OLIVEIRA*
Prefácio ao livro recém-lançado de Aldo Vieira Ribeiro
As sociedades humanas, do final do século XX até o presente, vivem acelerado processo de transformação política, econômica, social e cultural. Esse processo tornou-se célere pela combinação de um duplo movimento de abrangência mundial, denominado globalização e revolução tecnológica. O primeiro, diz respeito a complexos processos de interdependências das economias nacionais que impactam a política e a cultura em âmbito global, e surgiu ainda na era das grandes navegações e descobrimentos marítimos (HIRST e THOMPSON, 1998), que se intensificou após a segunda guerra mundial e globalizou-se posterior os anos de 1970. O segundo movimento, condensa todas as mutações ocorridas por meio da técnica, arte de ofício, associado a ciência da informação com potencial de transmissão de trilhões de dados de forma online, via internet, por meio de supercomputadores mundialmente conectados em rede. No século XXI, a globalização e a tecnologia, sobretudo a tecnologia da informação, tornaram-se interdependentes e motor das mudanças nas sociedades contemporâneas, especialmente as alterações no mundo do trabalho, ou seja, o tipo e forma das tarefas a serem desempenhadas pelos indivíduos.
É nesse contexto de grandes mutações impulsionadas na tecnologia globalizada, que a presente obra oferece uma singular contribuição ao debate sobre o mercado de trabalho na atualidade. Para expressar a magnitude das transformações do sistema capitalista na vida dos trabalhadores, este livro toma em análise duas pontas do processo de desenvolvimento do capitalismo: o trabalho realizado em série, conhecido como padrão fordista/taylorista, que teve início ainda nos anos 20 e 30 do século passado, mas está em crise agonizando na atualidade; e inserção de outro padrão de acumulação capitalista, denominado por Harvey (2007) de acumulação flexível, ancorado num novo sistema de produção industrial capitalista, desenvolvido em empresas japonesas na década de 1990, conhecido por reestruturação produtiva, ou Toyotismo. A reestruturação produtiva, grosso modo, tem-se mostrado um processo de ressignificação do sistema capitalista com maior capacidade de concentração de renda nas mãos de setores de alta renda nas sociedades industrializadas e agora globalizadas.
Olhando de forma retrospectiva a realidade dos trabalhadores ao longo do regime de acumulação capitalista fordista é perceptível, por um lado, diversas vantagens, como: conquista de direitos trabalhistas e liberdade de organização sindical; e conquista de política de ajuste salarial, benefícios sociais e melhores condições de vida. Por outro, eles não exerciam gerência sobre o trabalho realizado, não havia processo de interatividade entre empregado e empregador e trabalhavam sob um rígido sistema de rotinas e execução de tarefas que lhes causava sérios problemas de saúde. Esse padrão rígido fortaleceu e dinamizou o sistema capitalista mundial, ampliou o antagonismo entre capital e trabalho, forjou a classe trabalhadora e as empresas competitivas transnacionais globalizadas, até se arrefecer nos anos de 1970, e ceder espaço à expansão de um novo padrão industrial produtivista, o Toyotismo.
O Toyotismo, padrão de produção industrial que teve início no Japão, aliou-se a tecnologia informacional computadorizada, inverteu as prerrogativas do mundo do trabalho fordista e dotou o trabalhador de uma nova visão sobre o trabalho no sistema capitalista. Nesse novo padrão de produção parte expressiva do trabalho é precarizado: direitos trabalhistas foram suprimidos, os salários são assentados em horas de trabalho e metas (tarefas) cumpridas, há alta exigência de qualificação do trabalhador, preferência por trabalhador versátil (multifuncional e desorganizado), processo de integração do homem à máquina no processo produtivo e busca incessante por eficiência e resultados. O Toyotismo é difusor de um discurso em que a escassez de emprego formal é consequência da baixa qualificação profissional do trabalhador. O desemprego, nesse caso, seria responsabilidade do próprio trabalhador, que não se qualifica para atender demandas cada vez mais especializadas e ofertadas no mercado de trabalho. Esse discurso, portanto, é constitutivo da ideologia da reestruturação produtiva, cuja estratégia é a reestruturação do sistema capitalista num sistema econômico neoliberal, concorrencial, de livre mercado e sujeito com espírito empreendedor, em que os custos do trabalho formal são impostos aos trabalhadores e se automatiza cada vez mais a produção de bens necessários e supérfluos à vida humana.
Em meio a este debate, o foco central desta obra é justamente a educação profissional técnica de nível médio de jovens trabalhadores, que buscam inserção no escasso mercado de trabalho, oferecida pelo Instituto Federal no interior do estado do Piauí. Desde os anos de 2008 os Institutos Federais constituem uma Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica que cobre praticamente todo o território nacional, oferecem diversos cursos na área do ensino profissional de nível médio e superior, executam uma estratégia de disponibilizar mão de obra mais qualificada ao mercado de trabalho e contribuir com a diminuição do desemprego, sobretudo na população jovem. Mas esse processo formativo não forje ao discurso da produção flexível do Toyotismo, ao contrário, absorve-o na formação profissional do jovem trabalhador empreendedor.
Essa ação governamental expõe o Estado brasileiro que, nas últimas décadas, assimilou a lógica da acumulação flexível em relação as políticas públicas de trabalho e aposta na educação (qualificação) profissional como possível solução para o problema do desemprego. Consciente (ou inconscientemente) o Estado brasileiro assume o discurso da acumulação flexível, cimentado nas teorias do neoliberalismo, em que o desemprego é consequência da baixa qualificação do trabalhador brasileiro e as vagas de trabalho formal não são ocupadas porque eles têm baixa qualificação. Esse discurso de responsabilização do trabalhador pelo seu desemprego isenta o Estado e o governo da responsabilidade com a criação e dinamização de políticas de trabalho e emprego com oportunidade para todos. Ao mesmo tempo, a reestruturação produtiva, com o avanço da automatização do trabalho, empurra milhões de trabalhadores para o trabalho informal onde eles ocupam seu tempo com trabalho de subsistência, degradado, precarizado e mal remunerado. A influência dessa ideologia, no Estado brasileiro, pode ser percebida na reforma trabalhista de 2017 e na extinção do Ministério do Trabalho, criado em 1930, no primeiro momento do governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019 …).
Desde as análises de Karl Marx (1989), no século XIX, sobre o sistema capitalista que está evidenciado a capacidade de o sistema capitalismo se regenerar e aumentar o dilema dos trabalhadores por meio da automatização e da extração de mais-valia absoluta e relativa. Nos tempos hodiernos de trabalhos automatizados, home office, de tempo online e da internet das coisas a mais-valia relativa atinge grau máximo e resulta de eficiente estratégia empresarial. A obra em tela, portanto, escrutina essa realidade, mostra a trajetória das políticas de educação e qualificação profissional utilizadas ao longo dos anos até aparecer o padrão de acumulação flexível e os distintos discursos em relação às políticas de trabalho e de emprego na contemporaneidade.
A obra ainda oferece importante contribuição aos estudos de casos no âmbito da sociologia do trabalho, apresenta as percepções de egressos dos cursos Técnicos Concomitantes/Subsequentes em Administração e Vestuário do Instituto Federal do Piauí (IFPI) – Campus da Cidade de Piripiri – localizado na região norte do estado e a inserção deles no mercado de trabalho local. Busca responder até que ponto os ex-alunos dos cursos de Administração e Vestuário daquela cidade, por meio de sua formação profissional, conseguem êxito no mercado de trabalho local. Nesse sentido, o livro investiga a oferta de trabalho em âmbito local e indica que a oferta depende da dinâmica e do funcionamento do mercado de trabalho local. Porém, o emprego em pequenas cidades do Piauí é quase sempre escasso, depende de nichos de desenvolvimento local e da capacidade de geração de empreendimentos fomentadores do trabalho formal.
Os limites da empregabilidade, no caso desta pesquisa, obrigam egressos de cursos profissionalizantes a trilharem outros percursos como a continuação da formação em nível superior, na esperança de quanto mais elevada a capacitação profissional maiores as chances de obter emprego, no rasto da ideológica da acumulação flexível. Grosso modo, ex-alunos dos cursos de qualificação profissional que não optam por especialização, como indica a obra, buscam saída no mundo do empreendedorismo, negócio individual, numa expectativa (quase ilusória) de construírem seu próprio negócio de sucesso e, quem sabe, tornar-se empresário bem-sucedido. O empreendedorismo, capacidade pessoal de pensar e realizar projetos de geração de renda, tem se constituído um discurso de conversão dos trabalhadores desempregados em empreendedores em busca de sucesso, para dali extrair uma renda, por mínima que seja. Esse discurso ganha espaço nos debates do mundo do trabalho e na realidade prática de milhares de trabalhadores brasileiros, que veem no empreendedorismo saída para ocupação do seu tempo e obtenção de renda financeira. Mas, na realidade, o empreendedorismo é mais um desafio para os trabalhadores, pois ao se tronarem microempreendedores farão parte de um mercado competitivo onde os maiores empreendedores são mais estruturados e os negócios sempre estão à frente do microempreendedor que, na maioria das vezes, seguem em desvantagem. Sem entrar no debate (por economia de espaço) do discurso vantajoso forçado de que o empreendedor é patrão de si, e, portanto, governo de si mesmo.
Por fim, os dilemas do trabalho aqui mencionados expõem a microdinâmica de sujeitos estreantes na corrida pela empregabilidade, por meio da qualificação profissional, num momento em que o mercado de trabalho brasileira e as políticas públicas de emprego pouco (ou nada) valorizam o trabalhador. Ao contrário, a luta entre capital e trabalho tem mostrado que o trabalho (o lado do trabalhador) está quase sempre em desvantagem, mas isso pode ser diferente, depende da capacidade de organização dos trabalhadores e da construção de um novo modelo de produção que, sem dúvida, implicará também numa nova proposta de educação profissional.
*Francisco Mesquita de Oliveira é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Referência
Aldo Vieira Ribeiro. Educação profissional no contexto da precarização do trabalho. São Paulo, Editora Dialética, 2021, 332 págs.