Eleições e política de classe

Imagem: Anselmo Pessoa
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Por OSVALDO COGGIOLA*

Um programa mínimo e básico de classe deveria ser defendido em sindicatos e movimentos sociais e, também, no terreno das eleições municipais

Assim como as eleições norte-americanas de novembro próximo têm um alcance diretamente internacional, no qual se joga boa parte do futuro político do Brasil, as eleições municipais brasileiras do mesmo mês transcendem seus marcos territoriais, para atingir um alcance federal. A tentativa de transformá-las em eleições plebiscitárias do governo fascistoide de Bolsonaro fracassou, pois o capitão reformado e seu clã de milicianos e ladrões carecem de aparelho político próprio, e intervêm nelas através de um disparatado sistema (ou anti-sistema) de alianças com as mais diversas cores e formações políticas. Para a classe trabalhadora e os setores populares combatentes, o terreno eleitoral é uma arena, que pode chegar a ser central, para favorecer o desenvolvimento de um programa e de uma organização política independentes, de classe, para separar à classe operária da burguesia e seus sucedâneos pequeno-burgueses, como fase preparatória para se transformar em alternativa política para todas as massas oprimidas e para o país.

Nesse quadro e com essa premissa, a imensa maioria da esquerda brasileira se situa por fora e contra esse objetivo, pois não apresenta um programa de classe (propõe, como máximo, um programa tributário) nem candidaturas independentes, pois se apresenta em coalizão com políticos e formações burguesas, às vezes declaradamente reacionárias, chegando ao cúmulo de se apresentar com candidaturas diretamente oriundas dos aparelhos repressivos do Estado, num país onde estes possuem fórum judicial próprio e onde a repressão social, étnica e até de orientação sexual atinge as raias do genocídio. O fortalecimento do PSOL em detrimento do PT, em especial nas duas maiores capitais do país, como desaguadouro “natural” do voto “de esquerda” (seria melhor dizer “progressista”, pois baseado mais na classe média e no movimento estudantil do que na classe operária). O minúsculo, mas ativo, PCB se encontra, em geral, atrelado à política do PSOL.

Dos partidos políticos com participação eleitoral, somente o PSTU foge, parcialmente, à norma exposta. Parcialmente, porque alardeia mais a origem étnica e de gênero de seus candidatos/as (propagandeia centralmente ser o partido com maior percentual de candidaturas negras e femininas) do que sua origem e atuação de classe, e um programa condizente com elas. Ou seja, faz concessões enormes às políticas anticlassistas conhecidas como “identitárias”, sem falar num programa que, embora definido como classista, faz concessões de peso ao populismo, defendendo que “os ricos” [uma categoria referida à renda, não à mais-valia obtida mediante a exploração capitalista], não o grande capital, “paguem pela crise”.

Ainda assim, o voto no PSTU no primeiro turno se justifica pela sua relação ativa (principalmente via CSP-Conlutas) com a vanguarda operária combatente, em que pesem suas limitações programáticas e políticas, algumas simplesmente enormes, como seu apoio de fato ao golpe militar parlamentar de 2016, e seu abstencionismo nos conflitos que opõem o imperialismo ao decadente nacionalismo latino-americano, em especial na Venezuela, conflito que repercute direta e geograficamente no Brasil, motivo pelo qual não pode ser considerado como uma questão de “política externa”, que só afetaria o país de modo indireto – o drama dos refugiados venezuelanos no norte-nordeste de nosso país está aí para provar o contrário. Relativos que sejam, os méritos classistas das candidaturas do PSTU estão lhe conferindo entre 2% e 3% das intenções de voto em São Paulo e Rio de Janeiro, bastante na frente de todas as candidaturas das “siglas de aluguel”, ou seja, que essas candidaturas conseguem ser um canal parcial do interesse e movimentação política da vanguarda operária e juvenil que luta.

Embora seja praticamente desnecessário, pois quase ignoto, cabe mencionar o PCO (que apresenta alguns esquálidos candidatos), formação política minúscula – o que seria de somenos importância – que é um satélite ridículo e reacionário do PT, cujas políticas passadas e presentes apoia além do que o próprio PT ousa enunciar, chegando ao cúmulo de definir os desgraçados e esfomeados refugiados venezuelanos, atacados de modo selvagem pelos bandos bolsonarianos nas regiões de fronteira, como “agentes do imperialismo” (porque fogem da miséria do regime de Maduro), o que revela um reacionarismo medular, lamentavelmente postulado em nome “da IV Internacional”, sem que isso movimente um músculo da cara dos outros membros da confraria que se abriga sob essa denominação, espalhados em diversos partidos e aparentemente dispostos a aceitar essas infâmias no seu mini-ágape, se pagar o devido ingresso. O combate em defesa da herança e do programa revolucionário legado por Leon Trotsky, o “programa de transição”, portanto, não é alheio aos debates políticos das questões eleitorais.

Sobre o PSOL, cabe aqui citar as palavras de Renata Souza, candidata do PSOL à prefeitura do Rio de Janeiro, onde o partido consumou sua mais escandalosa e reacionária aliança eleitoral: “Marcelo Freixo, com quem trabalhei durante quase 10 anos e cujo trabalho dei continuidade como deputada estadual na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia do Rio, sempre lembra que o campo da esquerda se esquivou de fazer debates centrais, como a questão da segurança pública, hoje amplamente dominada por setores conservadores… É tempo de lutar pelas instituições e não abandoná-las. A democracia está em risco e não vamos abrir mão dela. Nesse sentido, apostar na renovação dos quadros políticos, como mencionei, ajuda o Rio a ganhar pluralidade. Pluralidade é também apostar em um amplo processo de participação dos movimentos de base, fortalecer os conselhos e garantir voz para os setores historicamente marginalizados” (no Correio da Cidadania). Nem é preciso dizer que entre essas “instituições” que é preciso preservar conta-se nada menos do que a Polícia Militar (do RJ!), dotada legalmente de “licença para matar”, um de cujos comandantes é postulado como candidato a vice-prefeito do Rio pelo partido, ou seja, que embora apresentando (algumas) candidaturas oriundas de setores barbaramente oprimidos, o programa e a política do PSOL não podem sequer serem considerados consequentemente democráticos.

Em momentos em que, contra todas as dificuldades criadas pela pandemia de Covid-19, diversos setores de trabalhadores (Correios, Casa da Moeda, Embraer, trabalhadores da saúde, universidades, trabalhadores de telemarketing, entregadores de aplicativos) reagem contra as demissões e as políticas reacionárias, superexploradoras e privatizantes, contra a generalização do flagelo do desemprego, com métodos de classe (greves, manifestações de rua, ocupação de locais públicos, bloqueios), uma campanha eleitoral classista deveria ser o terreno político de projeção dessas lutas, e de outras em vias de preparação. Não é o que acontece com as campanhas da maioria e das maiores das formações “de esquerda” (PT e PSOL). E, também, para pôr em questão as políticas de conciliação de classes postas em prática pelas direções majoritárias do movimento dos trabalhadores, defendendo propostas políticas alternativas, como eixos da luta política geral.

Os conselheiros das centrais sindicais no Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) tiveram a iniciativa de apresentar uma proposta para a extensão do seguro-desemprego em duas parcelas, em caráter excepcional, para trabalhadores segurados demitidos no período de março deste ano até 31 de dezembro de 2020. As estimativas feitas pelo Dieese indicam que essa medida atenderia cerca de seis milhões de trabalhadores e teria custo de R$ 16 bilhões, considerando uma média de 1,27 salário mínimo por parcela.O desemprego já vinha atormentando a vida dos/as trabalhadores/as desde 2015, quando voltou a aumentar, atingindo em 2017 cerca de 13 milhões de pessoas.

A crise sanitária da Covid-19 tornou ainda mais dramático o problema do desemprego, pois lançou em março – de imediato – cerca de 12 milhões de pessoas na inatividade, 20 milhões foram afastadas do trabalho pelo isolamento social e pela paralisação das atividades produtivas, e mais de 8 milhões passaram a trabalhar em casa. A “proteção social” promovida pelo auxílio emergencial de R$ 600 atingiu 70 milhões de trabalhadores que não tinham proteção contra a desocupação. A política de “proteção dos salários”, suspensão do trabalho ou redução da jornada, abrangeu outros 15 milhões de trabalhadores. Mas essas políticas acabam em dezembro (depois das eleições). Devemos defender um imposto progressivo permanente sobre o grande capital, taxando, em primeiro lugar, e de modo expropriatório, os escandalosos lucros recorde do grande capital financeiro, desconhecendo a dívida pública com os tubarões do dinheiro, para garantir a sobrevivência e, mediante um vasto plano de obras públicas, imprescindíveis para reativar a economia nacional, trabalho digno e socialmente útil para todos os brasileiros, preservadas mediante controle popular às medidas destinadas a conter a pandemia na espera da vacina.

Pois a doença, que retomou seus patamares de contágio e de morte (mais de mil mortes por dia, num total que já se aproxima de 150 mil), é o outro flagelo a ser combatido com métodos de classe, pois a desigualdade social perante ela é cada vez mais patente. Um só exemplo: desde o início da pandemia de coronavírus em Goiás até agosto, 136 pessoas morreram na fila por um leito de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) exclusivo para a doença. Mais da metade desses óbitos ocorreu em julho. Entre os motivos estão a demora para o primeiro atendimento, a falta de leito com especialidade necessária, o agravamento do estado de saúde, que impossibilita o transporte do paciente, e o cancelamento da transferência por parte de familiares quando a primeira opção de vaga é para um hospital considerado muito distante. Chega de mortes desnecessárias, por ausência de médicos, locais de atendimento ou equipamentos básicos. Estatização e centralização democrática de todos os recursos sanitários do país, sob controle popular que evite a corrupção galopante, punição severa dessa corrupção (Witzel e comparsas deveriam estar presos sob segurança máxima, não procrastinando em tribunais as consequências de sua corrupção nojenta), contratação imediata e permanente de médicos e profissionais de saúde, formação gratuita e pública dos mesmos (em escolas e universidades públicas).

Esse é um programa mínimo e básico de classe, que deveria ser defendido em sindicatos e movimentos sociais e, também, no terreno das eleições municipais, pelas candidaturas classistas e as organizações de classe, com ou sem candidatos.

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Trotsky ontem e hoje (Nosso Tempo).

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