Por LÚCIO FLÁVIO DE ALMEIDA*
Uma avaliação coletiva do que se pode esperar de campanhas eleitorais no atual contexto político brasileiro, determinações internacionais inclusas
O discurso político é fértil em hipérboles que adquirem ares de verdade e produzem efeitos de importância variável. O MPL (Movimento Passe Livre), ao suscitar as jornadas de junho de 2013, foi criticado por contribuir fortemente para as grandes manifestações da direita que culminaram na deposição de Dilma Rousseff. Por um tempo, ficou difícil para alguns ativos secundaristas.
Lembrei-me disso ao ver certas críticas à atuação de Guilherme Boulos no recente processo eleitoral. Teria faltado maior combatividade e discernimento político, uso mais produtivo dos recursos financeiros da campanha (os maiores desta eleição) e, no final, não se aprisionar pela ideologia do empreendedorismo nem contribuir para naturalizar a presença política do “coach”.
No conteúdo e intensidade, as críticas se distribuem desigualmente e é provável que eu mesmo me reconheça no repasse de algumas. Não faz sentido qualquer tentativa de desqualificar este ou aquele texto. Aqui o objetivo é outro: contribuir para uma avaliação coletiva do que se pode esperar de campanhas eleitorais no atual contexto político brasileiro, determinações internacionais inclusas.
Semiproletári@s nas ruas
A referência a meados de 2013, não é acidental. Justamente na noite em que se comemoraria a vitória contra o aumento das tarifas, manifestantes de direita desativaram, apesar da resistência, a passeata que seria conduzida por participantes do MPL e diversos ativistas da esquerda, inclusive do próprio PT.
O impacto foi forte e, numa reunião bastante plural de ativistas de esquerda, houve quase consenso de que a direita ganhou a disputa das ruas. Porém, um dos coordenadores da sessão, Guilherme Boulos, afirmou, de modo tranquilo, que o MTST, partindo de regiões periféricas, faria manifestações nas áreas centrais da cidade.
Não foi bravata.
Houve diversas marchas dirigidas pelo MTST em áreas burguesas e de alta classe média do município de São Paulo. Por exemplo, em outubro de 2017, houve caminhada até o palácio do governo estadual, onde foi feito um acordo sobre construção de moradias. Vitória, alguns detalhamentos, retirada alegre e tranquila.
Marchas do MTST foram importantes na resistência popular ao golpe de 2016, assim como às estratégicas reformas contra a previdência social e direitos trabalhistas. Expressões de vontade e organização políticas foram as caminhadas decididas e alegres puxadas por esse povo trabalhador em direção ao Alto de Pinheiros, local que muit@s apenas frequentavam individualmente e na condição de serviçais.
Também foi impressionante o modo combativo e civilizado com que, em junho de 2016 e fevereiro de 2017, ocuparam a Secretaria da Presidência da República, em São Paulo, esquina da Av. Paulista com a Bela Cintra. A pauta cresceu ao incluir a luta contra a lei do teto de gastos. Na segunda ocupação, instalaram-se barracas e cozinhas coletivas e houve inúmeras atividades culturais. No final, duas marchas convergiram para o local e a manifestação se avolumou com uma passeata na Paulista contra o estupro. Na sequência das duas ocupações, a repressão foi grande, o que pode ser verificado por uma rápida consulta à imprensa.
Muitos manifestantes observaram o contraste entre a violência da PM contra eles e a tolerância para com o pessoal que, por cerca de 70 dias, acampava na calçada da mesma Paulista, acolhido pela presidência da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), que bandeou para as forças golpistas. A diferença entre os dois tratamentos é quase um desenho da distinção althusserina – ainda um tanto descritiva – entre aparelho repressivo e aparelhos ideológicos de Estado. Um efeito de invisibilidade contribui para o forte contraste entre proximidade física e distância social. Por mais que insistam, sem-teto não existem; e, se insistem, é preciso apagá-los.
O MTST foi reprimido por se manifestar abertamente acerca de questões que vira e mexe voltam ao debate (quase) público. Quanta insistência sobre as relações entre teto de gastos e responsabilidade social. Políticas adotadas pelo governo Temer, acrescidas, no seguinte, pela pretensa autonomia do Banco Central, seguem elogiadíssimas por destacados intelectuais orgânicos dos dominantes, com acentuada proeminência dos que possuem vínculos mais diretos com o “mercado”. Não faltou quem se vangloriasse de, em nome do bem comum, ter ensinado a importância dessa autonomia a dignatários dos chamados três poderes.
Eleições nas travas de uma democracia burguesa restrita
A afirmação de que a campanha de Guilherme Boulos contou com mais recursos merece algumas ponderações.
Atente-se para a formidável capacidade de influência das chamadas redes sociais por onde circula tanta desinformação, que nos fazem pensar que inauguraram o metiê. E também circulam consideráveis recursos. É significativo que o candidato mais envolvido com este assunto tenha sido o mais insistente especialista nesta versão direitista de “recursos públicos não estatais” e o mais insistente na crítica a Guilherme Boulos por ser o principal beneficiário do fundo público de campanha.
Em geral, candidaturas antissistêmicas não têm muito dinheiro. A “americanização” da política, especialmente das eleições, exige dispendiosas operações de marketing conduzidas por especialistas na tarefa de enrolar o povo. Nesta campanha tão curta e chocha, os “grandes momentos” foram guardados para os debates na televisão, verdadeiros trituradores de candidaturas críticas ao status quo.
Quem acredita na seriedade de se atribuir, a cada quatro anos, a tarefa de explicar, em três minutos, como se resolverá o “problema” da “educação” ou da “moradia” ou da “saúde” ou da “segurança”? As configurações e percepções desses “problemas” serão as mesmas para todas as classes sociais? Ou se trata de padronizá-las segundo os interesses dos dominantes? Como explicar o estranho fenômeno de que, a cada ano, triênio, década etc., esses “problemas” se acumulam apesar da sapiência dos candidatos e candidatas do momento? Qual é mesmo a relação entre cheirar ou não determinado produto e dispor de condições políticas, econômicas e científico-tecnológicas para se dirigir o combate a intermináveis mazelas sociais?
Caminhando para quatro décadas da Constituição de 1988, qual região do Brasil teve seus “problemas” resolvidos pelos eleitos? Nem pelos eleitos nem pelos nomeados, pois as “soluções” independem de meras qualidades individuais, inclusive hábitos de consumo, e são produzidas no calor de profundas contradições sociais.
Nestas eleições municipais, Guilherme Boulos esteve na linha de frente da difícil tarefa de politizar a expressão dos interesses populares, inclusive do subproletariado urbano Para ir além do que foi, seria preciso outra composição da chapa, outra (des)organização dos debates e, muito provavelmente, nenhum compromisso com a vitória nas urnas.
Se os que dirigem os grandes meios de comunicação prezam tanto o debate, por que a presença de Pablo Marçal, com direito a expedientes totalmente reprováveis, como deboches infantis com nomes de candidatos, truculência, grave acusação com base em homônimo, confusão do eleitorado sobre o número da candidatura do Guilherme Boulos e atestado médico falsificado? Quando ele se referiu seriamente à prefeitura de São Paulo? Tudo incrível distração dos organizadores? Foi mesmo Guilherme Boulos quem deu projeção nacional ao “coach”?!
Chega o segundo turno, Ricardo Nunes não foi ao debate da CBN, Globo-Valor, sabatinaram o Boulos! Dois doces para quem se lembrar de questões relativas à direção da prefeitura de São Paulo. E até que Boulos insistiu.
A chave de ouro do processo eleitoral foi a declaração, feita pelo governador do Estado, já iniciado o processo de votação, de que uma “facção criminosa” teria orientado voto em Guilherme Boulos. Observe-se que a grande imprensa, sem questionar a veracidade, divulgou a “notícia” e nem imagino o furor causado nas redes sociais.
E, convenhamos, nós, intelectuais críticos, pouco ou nada fizemos para protestar contra a mais lamentável cobertura de eleições no Brasil pelos grandes meios de comunicação, desde o processo de canonização de Fernando Collor no ano da Graça de 1989. É provável que, mais uma vez, tenhamos reduzido a seriedade do processo de votação (o que é ótimo) com a do processo eleitoral. E mesmo com a chamada qualidade da democracia.
Sim, houve uma pesadíssima derrota eleitoral que suscita sérias preocupações com disputas de âmbito mais amplo nas quais as forças progressistas têm se saído menos mal. No entanto, por maior que tenha sido a importância da derrota em São Paulo (e até por isso mesmo), é preciso evitar a síndrome de 2013 e ampliar o foco da análise.
Catando os cacos
Em primeiro lugar, os resultados das eleições em todas as capitais brasileiras, para nos limitarmos a estas, foi catastrófico para as forças democráticas. Restrinjo-me ao exemplo mais dramático, o de Porto Alegre, onde se reelegeu o prefeito cuja gestão guarda recentíssimos vínculos com a potencialização da tragédia climática.
No início do século, a cidade sediou os primeiros e mais intensos encontros do Fórum Social Mundial, cujo lema, “Um outro mundo é possível”, fazia contraposição direta ao vaticínio thatcheriano “Não existe alternativa”. Na abertura do primeiro deles, cerca de 70 mil pessoas fizeram a Marcha contra a ALCA e pela Paz. Foi a primeira vez que participei, no Brasil, de uma importante marcha internacionalista, nos objetivos e na impressionante composição. Tudo isso em meio a um sem número de passeios e conferências, com direito a João Pedro Stédile e o líder camponês José Bové irem à fazenda da Monsanto e arrancarem mudas de soja geneticamente modificada.
Ao longo do atual regime democrático (restrito) brasileiro, o histórico das eleições municipais não tem sido dos melhores, mesmo que levemos em conta apenas as capitais de Estado. Mas, durante o mesmo regime, o Partido dos Trabalhadores foi para o segundo turno da disputa pela presidência do país todas as oito vezes e delas saiu vitorioso em cinco. Com um detalhe: a derrota em 2018, sob a ofensiva golpista que depôs Dilma Rousseff e levou Lula à prisão, bloqueou um possível ciclo de vitórias em todas as presidenciais aqui já realizadas ao longo do século XXI.
Também neste caso, o tamanho da vitória em 2022 se contraiu ao ponto de o campo democrático ter sido o mais votado graças aos resultados das significativas maiorias nos onze estados do Nordeste, em três do Norte com pequeno acréscimo da pequena diferença em Minas Gerais.
Dois anos depois, com a extraordinária ofensiva para enquadrar o governo Lula e formidável participação da direita no repasse de verbas sem qualquer controle, o permanente trabalho dos grandes meios de comunicação para destruírem a imagem de Lula,a desconfortável posição no Congresso, expressões do espraiamento do conservadorismo (neofascismo incluso) e do declínio das mobilizações populares, inclusive da classe média intelectualizada, caberia examinar o que levou à candidatura de Guilherme Boulos com a missão de vencer.
Tempos difíceis
Finlândia, Suécia, Noruega! Em toda a paradisíaca vitrine do que restou do estado de bem-estar social, a extrema-direita chega ao (ou se aproxima do) governo. Até o momento, salvou-se a pequena Dinamarca. A Alemanha, sob a pressão dos EUA, entra em crise econômica gravíssima e disputa com a França, também em crise, a linha de frente de um embate europeu ocidental com a Rússia. Nas duas, cresce o neofascismo, com a diferença de que França as esquerdas se reconstituem. O Reino Unido segue à deriva e belicoso. Holanda e Bélgica entram na roda.
A extrema direita também cresce na Espanha, onde o PSOE ganhou as eleições por um triz e seu primeiro-ministro acolheu carinhosamente Edmundo González, o sanguinário recém-derrotado candidato a presidente da Venezuela, e acaba de ser fortemente vaiado, junto com o monarca, pela demora no socorro às vítimas de uma devastadora tragédia climática. Em Portugal, sob os destroços da simpática “geringonça”, o governo de centro-esquerda cedeu lugar ao de centro-direita; e a extrema-direita avança. Esta, abertamente fascista, se consolida no governo italiano e implanta uma novidade em matéria de transações internacionais: mediante pagamento à Albânia, exporta para este país imigrantes indesejáveis que foram produzidos por séculos de colonialismo e neocolonialismo do chamado Ocidente.
Em tempos de crise de um imperialismo nada ultra (perdão, Karl Kaustky) que ingressa em nova fase de delinquência, atente-se para as inovações, por exemplo, demográficas a serem produzidas pelo novo governo da democracia na América, incansável ao “observar” eleições e eleitos em todo o mundo. Inclusive para destruir democracias de base popular.
Caminhando para quatro décadas da Constituição de 1988, qual região do Brasil teve seus “problemas” resolvidos pelos eleitos? Nem pelos eleitos nem pelos escalados. Na origem e nas “soluções”, independem de meras qualidades individuais, inclusive hábitos de consumo, e são produzidos no calor de profundas contradições sociais. Mas, supondo que tais “problemas” sejam reais e solucionáveis em nossa sociedade, por que as coordenações dos debates não centraram o foco neles? Que dureza! Essas campanhas eleitorais estão cada vez mais parecidas com as dos Estados Unidos.
Guilherme Boulos teve extraordinária paciência para lidar com esta situação sem fornecer elementos para que os grandes e medíocres meios de comunicação o apresentassem como politiqueiro ou mesmo dotado de algum pendor para o terrorismo, despreparado ou extremista.
Creio que Guilherme Boulos só teve tempo de se aproximar de amplos segmentos que sua candidatura pretendia mobilizar na última semana da campanha. Para quem pensa em transformação social e aprofundamento da participação popular na política, isto é imprescindível. Mas chegar a ela é dificílimo, ainda mais com uma campanha eleitoral qualitativamente distinta. Foi emocionante como se quebraram, mesmo que em mínimas partes, barreiras que tornam invisível a imensa maioria do povo pobre.
Pessoas desajeitadas, inteligentes, visivelmente articuladas, sem e com moradias, donas de casa, jovens, orgulhosas, puderam falar de seus tormentos, esperanças, disposição para participarem da resolução de seus próprios problemas ou simplesmente falarem e serem vistas e ouvidas. A campanha de Guilherme Boulos foi, nestas eleições paulistanas, a única a se aventurar por este rumo, Aliás, em nítido contraste com o toque escancaradamente hierárquico que marcou as incursões de forte aparência miliciana realizadas por outro candidato.
Mesmo assim, além do curtíssimo período, faltou na campanha de Guilherme Boulos maior destaque para a importância das lutas populares para a realização de política que, mesmo no interior de um sistema de dominação, podem resultar em vitórias significativas e pavimentar o caminho para empreitadas de maior alcance. Todavia, uma vez mais, isto era incompatível com a natureza das alianças em presença, a começar pela composição da chapa.
Se não se fala em luta dos dominados e explorados, resta ao candidato o discurso da competência que termina por se articular ao paternalismo.
Sem dúvida, Guilherme Boulos se mostrou muito mais conhecedor da realidade paulistana do que os demais candidatos e candidatas, incluindo o que disputava a reeleição. Mas, como não podia falar em lutas populares, questão que lhe é bastante familiar, insistiu em afirmar, por exemplo, que, durante sua gestão, não haveria ocupações de imóveis porque tod@s teriam acesso à moradia. Por maior que seja a competência de um prefeito, estas medidas não se resumem à vontade de um indivíduo, a situação é imprevisível e, muito provavelmente, mesmo que tudo corresse bem, demoraria mais tempo do que o de uma gestão de quatro anos.
Além disso, não cabe a uma liderança política decidir o que movimentos populares farão ou deixarão de fazer. E, por mais importantes que tenham sido gestões petistas em vários municípios do país, ocorreram diversas iniciativas de lideranças no sentido de abafar lutas de trabalhadores.
Sem dúvida, houve certa linha de continuidade com aspectos do discurso de Guilherme Boulos nas fases anteriores da campanha.
Como toda uma tradição de organizações envolvidas na luta contra a ordem vivenciou, os dispositivos de cooptação são extremamente eficazes para neutralizar a combatividade de quem atua na esfera institucional. É ainda pior nesta conjuntura de avanço do fascismo em todo o chamado mundo ocidental e extrema dificuldade do atual governo brasileiro para se desvencilhar do cerco em diversas frentes que lhe é imposto pelos setores mais retrógrados da formação social brasileira. Alianças não podem ser decalques de princípios estratégicos. Mas abrir mãos destes é o primeiro passo para a subordinação.
Para que não se perca totalmente o rumo e o ânimo de luta nesta situação profundamente adversa, diálogo e iniciativas práticas tornam-se imprescindíveis. Até porque nuvens preocupantes sobrevoam a conjuntura internacional e se dirigem para o sul.
Aqui, o chefe do governo, talvez o mais importante líder popular em atividade no planeta, tem sido empurrado para diversas capitulações. Amplia-se o risco de uma articulação de forças fascistas internas ativar o contato entre a direita liberal golpista (grandes meios de comunicação inclusos) e a que assume o governo na maior potência mundial, em perigosa decadência. Tempos de aprofundamento de uma crise imperialista de amplas dimensões.
Enfrentar as novas contradições que se anunciam requer diálogo franco e fraterno com todas as forças voltadas para unificar uma frente na qual as classes populares tenham voz e vez.
*Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-SP.
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