A tutela militar e seus limites

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Os nexos, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e relações com as classes populares em democracias liberais restritas

Dois aspectos adquirem enorme importância na atual crise política brasileira: uma forte expansão do neofascismo que até deixa saudades de quando, uns cinco anos atrás, discutimos sobre a existência de uma onda conservadora no Brasil;  o debate sobre a tutela militar quase cai na boca do povo.

Inevitável não é, mas, pelo que temos visto e vivido, é bastante provável que, especialmente no caso de uma intensificação das contradições internas à formação social brasileira e um aprofundamento da crise econômica mundial em um jogo geoestratégico complicadíssimo, este país constitua um cenário bastante favorável ao crescente entrelaçamento – e mesmo à fusão – da forte presença política dos militares com o avanço do neofascismo.

Este artigo, longe de abordar a questão em toda a sua complexidade, o que implicaria levar em conta, por exemplo, dimensões corporativas específicas das Forças Armadas, centra o foco, de modo ainda bastante genérico, nas relações, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e as classes populares em democracias liberais restritas.

Passado e presente da tutela militar

Segundo diversos estudiosos, a tutela militar se constituiu com a formação do Estado independente a partir de 1822-24 e jamais se foi. Até porque, apesar do debate, não temos um conceito suficientemente claro de tutela militar, deixo, neste momento, de discuti-la no interior de formações sociais pré-capitalistas e apenas registro uma dúvida teórica que, no Brasil atual, tem imediatas implicações políticas: a distinção qualitativa entre o Estado escravista moderno e o Estado burguês não deveria ser mais considerada ao falarmos de uma bicentenária tutela militar?

Creio que, se traçarmos esta linha de continuidade muito direta, corremos o risco de legitimar posições que, de um modo ou de outro, justificam a proeminência militar na política contemporânea com a referência a um passado mítico de um povo apático, inclusive em razão de determinações raciais, e, portanto, incapaz de se conduzir. Centro o foco no período marcado pela presença de um Estado nacional brasileiro cuja existência coincidiu com a da forma de governo republicana ao longo de 121 anos de História.

Mesmo assim, assinalo um problema: a questão da tutela militar no Brasil se escancara a céu aberto quando se trata de democracias liberais de massas, pois, em se tratando de ditaduras militares, corre-se o sério risco (não a inevitabilidade) de ficar a meio caminho do truísmo e da redundância. O que, ironicamente, não impede que, nas constituições ditatoriais brasileiras, artigos mais diretamente relacionados com o papel das Forças Armadas lhes atribuem um papel mais subalterno ao Executivo. Já as Cartas Magnas das duas democracias liberais de massas neste país, 1945-1964 e desde 1989, trazem o registro da tutela militar: artigos no.177 e 142 das Constituições de 1946 e 1988, respectivamente.

Estranho país no qual a simples aceitação da democracia é acompanhada do aviso constitucional de que as Forças Armadas estão de olho e prontas para agir. Neste texto, centro o foco em alguns aspectos das relações entre o ramo militar da burocracia do Estado brasileiro e a Presidência frente às lutas das classes populares.

Transição de capitalismo e lutas político-ideológicas

No período 1945-1964, militares atuavam em todas as frentes de disputa a respeito da política de Estado. O principal eixo da discórdia girava em torno da implementação de políticas necessárias ao desenvolvimento nacional brasileiro, o que, de tão genérico, beirava o consensual. Em termos objetivos, estava em disputa a continuidade da política de desenvolvimento capitalista industrial (dependente) implementada durante a Era Vargas (1930-45). Em torno desta é que se manifestavam interesses e variantes ideológicas contraditórios no interior da classe dominante, entre camadas da classe média e segmentos do aparelho estatal em um período marcado, do início ao fim, pela ascensão política das classes populares.

Comparados aos atuais 38 anos do regime atual, os 19 daquela democracia foram de prender o fôlego.

As contendas não se limitaram aos debates orais e escritos dentro e fora dos partidos políticos, no parlamento, na imprensa e, ao longo dos anos 1950, na intelectualizadíssima Revista do Clube Militar. Beiraram as vias de fato quando, na undécima hora, o general Lott liderou o famoso “golpe da legalidade” (11/11/1955) que assegurou a posse da dupla Kubitschek e Goulart, legitimamente eleita mas contestada pelos adversários civis (udenistas) e militares adeptos do candidato derrotado, general Távora.

Questionamento da vitória eleitoral, longe de invenção tucana, foi fortíssimo em relação a dois importantíssimos presidentes brasileiros: Vargas, em 1950, e Kubitschek em 1955, quando o general Lott deu o “golpe da legalidade”, sem falar no risco de confronto armado produzido pelo veto dos três ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart na esteira da renúncia de Jânio Quadros. Enfim, em todas as eleições presidenciais do período, houve sempre um militar (em 1945, dois) entre os candidatos mais votados.

Nestes breves 19 anos de vida, ocorreu formidável ascensão das lutas operárias e também, a partir de 1955, o ingresso promissor das ligas camponesas na luta política. E, no frigir dos ovos, esta ebulição sociopolítica desembocou na montagem de um capitalismo industrial dependente que deixou para traz o debate sobre a vocação agrária da economia brasileira. Neste processo, os conflitos no interior do ramo militar da burocracia de Estado foram decisivos. O que justifica o recurso à noção de tutela militar.

Lutas de trabalhadores e transição transada

A crise da ditadura militar foi marcada por uma extraordinária presença das lutas operárias e populares que até hoje deixam registros nos nomes de partidos, movimentos e entidades de representação corporativa de trabalhadores e segmentos da classe média, produção cultural, sem falar nas atividades que, perdidas na memória, requerem pesquisa. Houve momentos em que pessoas de classe média, ao encherem o carro de compras no supermercado, reservavam um pouco delas para doarem ao fundo de greve.

Todavia, essas lutas que encantaram boa parte do mundo não conseguiram dirigir o processo de transição. Um dos resultados da transição transada – expressão do saudoso Florestan Fernandes – é a Constituição Cidadã com este famoso artigo 142. Ela mal completou 35 dias e ocorreu forte intervenção do Exército na cidade de Volta Redonda para reprimir a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (o chamado Massacre de Volta Redonda). Cinco anos depois, a empresa foi privatizada. Tropas do Exército também atuaram contra a greve dos Petroleiros em maio de 1995 (governo FHC), com impactos importantíssimos para as lutas dos trabalhadores neste país. E, expressando a virada das relações sociais, as operações de GLO, estritamente de acordo com o famoso artigo 147, foram transmitidas de governo a governo. Ou seja, a atual democracia (restrita) brasileira nasceu com o selo da tutela militar.

A tutela e seus limites

Durante o interregno Temer, no bojo da reafirmação da hegemonia da grande finança, pari passu com as derrotas das classes populares, liquidou-se o que restava da “herança varguista” e,  em meio à crise do sistema partidário, a cena política foi inflada de agremiações reacionárias e conservadoras ligadas a setores da burguesia interna rural e urbana. E um grupo de generais passou a intervir ostensiva e simploriamente na implementação de políticas estatais, como a econômica, externa, cultural, de costumes e eleitoral.

Neste último caso, bloqueou a candidatura Lula e se envolveu diretamente na de Jair Bolsonaro. Estas políticas foram apresentadas como racionais, voltadas para a defesa da lei e da ordem e a regeneração nacional, o que implicaria profundo combate à corrupção. E, no geral, receberam apoio entusiástico do conjunto da classe dominante brasileira, amplos setores da classe média e todos os grandes meios de comunicação.

Com o mesmo apoio, então bem mais emocionado e com maior penetração nas classes populares, emergiu a candidatura vitoriosa de Jair Bolsonaro e se configurou uma relação entre militares e política que, salvo melhor juízo, não tem precedentes na história deste país.

Estabeleceu-se um governo fascista profundamente atentatório à democracia liberal, atrelado ao financismo, voltado para a exportação de bens primários e refratário a políticas de desenvolvimento industrial e de apoio à pequena produção rural e urbana. O modo de exercício da hegemonia do capital financeiro levou à defesa objetiva, sob o nome de responsabilidade fiscal, de uma política econômica de aspectos genocidas, atentados constantes à democracia liberal, política internacional desastrada e política sanitária catastrófica, sempre com o envolvimento do referido grupo predominante no interior das Forças Armadas.

O que seria uma simples disputa eleitoral abriu a espaço para, na ausência de qualquer inimigo real ou potencial, um surto de descoordenação nos (e entre os) diversos segmentos do ramo repressivo do Estado (Forças Armadas, Polícias Militares, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal). E o centro do palco foi ocupado personagens movidos à violência cega e formulações simplistas quase sempre expressadas por meio de escasso repertório de xingamentos idiotizastes. Aguardemos as pesquisas sobre a inserção social dos que vandalizaram a Praça dos Três Poderes.

Se, mesmo nos casos clássicos, a ascensão de fascismos passou pela impregnação (e posterior comando) do aparato repressivo do Estado, a ascensão do bolsonarismo, cujo líder já foi declarado nada afeito à carreira castrense, mas é admirado pela base da tropa, sinaliza o risco de preocupante mutação da tutela militar no Brasil.

*Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-SP.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jean Marc Von Der Weid Dênis de Moraes Flávio Aguiar Annateresa Fabris Daniel Brazil Chico Whitaker Dennis Oliveira Gilberto Lopes Bento Prado Jr. Chico Alencar Matheus Silveira de Souza Luis Felipe Miguel Eugênio Trivinho Antonino Infranca Lucas Fiaschetti Estevez Francisco Fernandes Ladeira Henri Acselrad Manuel Domingos Neto Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser Andrés del Río Julian Rodrigues Ronald León Núñez Michael Löwy Jean Pierre Chauvin Luís Fernando Vitagliano André Márcio Neves Soares Bruno Machado Celso Frederico Carla Teixeira Boaventura de Sousa Santos Rafael R. Ioris Elias Jabbour Eleonora Albano Kátia Gerab Baggio Paulo Martins Lincoln Secco José Raimundo Trindade Lorenzo Vitral Ricardo Fabbrini Vinício Carrilho Martinez Berenice Bento Jorge Branco Valerio Arcary Alexandre de Lima Castro Tranjan Marilia Pacheco Fiorillo Denilson Cordeiro Fernando Nogueira da Costa Otaviano Helene Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Capel Narvai Vladimir Safatle Luiz Werneck Vianna Rubens Pinto Lyra Armando Boito Samuel Kilsztajn Luiz Marques Bernardo Ricupero Daniel Costa Ronaldo Tadeu de Souza Benicio Viero Schmidt Leonardo Boff Marcelo Módolo Alexandre Aragão de Albuquerque Marilena Chauí Marcelo Guimarães Lima Luciano Nascimento João Carlos Loebens Plínio de Arruda Sampaio Jr. Anselm Jappe Yuri Martins-Fontes Fábio Konder Comparato José Costa Júnior Claudio Katz Tarso Genro Atilio A. Boron Francisco Pereira de Farias Eugênio Bucci João Carlos Salles Érico Andrade Gerson Almeida Vanderlei Tenório Slavoj Žižek Rodrigo de Faria Luiz Eduardo Soares Michel Goulart da Silva Igor Felippe Santos Tales Ab'Sáber Eleutério F. S. Prado Milton Pinheiro Valerio Arcary Antonio Martins Luiz Renato Martins Alexandre de Freitas Barbosa Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jorge Luiz Souto Maior Manchetômetro Walnice Nogueira Galvão Renato Dagnino José Luís Fiori Eliziário Andrade Maria Rita Kehl José Dirceu Heraldo Campos Carlos Tautz Osvaldo Coggiola Priscila Figueiredo Antônio Sales Rios Neto André Singer Afrânio Catani Ricardo Antunes Juarez Guimarães João Sette Whitaker Ferreira Gabriel Cohn Andrew Korybko Fernão Pessoa Ramos Ari Marcelo Solon João Paulo Ayub Fonseca Remy José Fontana Leonardo Sacramento Ronald Rocha Mariarosaria Fabris Marjorie C. Marona Sergio Amadeu da Silveira João Lanari Bo Marcos Aurélio da Silva Eduardo Borges Gilberto Maringoni Marcos Silva Paulo Sérgio Pinheiro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leda Maria Paulani Celso Favaretto Liszt Vieira José Geraldo Couto Flávio R. Kothe Henry Burnett Daniel Afonso da Silva Michael Roberts João Feres Júnior Francisco de Oliveira Barros Júnior Sandra Bitencourt Tadeu Valadares Ricardo Abramovay José Micaelson Lacerda Morais Caio Bugiato João Adolfo Hansen Mário Maestri Marcus Ianoni Luiz Carlos Bresser-Pereira Ladislau Dowbor Luiz Bernardo Pericás Leonardo Avritzer Thomas Piketty Ricardo Musse Luiz Roberto Alves Airton Paschoa Paulo Fernandes Silveira José Machado Moita Neto Alysson Leandro Mascaro

NOVAS PUBLICAÇÕES