Por EBERVAL GADELHA FIGUEIREDO JR.*
O Novo Regime Climático não faz distinção entre nações, e as ondas de choque de eventos climáticos extremos atravessam fronteiras geopolíticas com implacável indiferença
As mudanças climáticas representam um dos desafios mais urgentes e complexos para o século XXI. À medida que ao metabolismo tecno-socio-econômico dos coletivos humanos continua a liberar quantidades significativas de gases-estufa na atmosfera, os padrões climáticos globais alteram-se de modo a gerar profundos impactos não apenas em ecossistemas, mas também em economias e sociedades, em uma espiral dialética geoantrópica de escala planetária.
É evidente que problemas planetários exigem soluções planetárias. O Novo Regime Climático não faz distinção entre nações, e as ondas de choque de eventos climáticos extremos atravessam fronteiras geopolíticas com implacável indiferença. Em termos serresianos, os impactos das mudanças climáticas não seguem a lógica regrada, racional e contratual, característica da guerra, mas sim o modus operandi irracional e anômico da pura e simples violência, negação completa do Direito. Gaia não é signatária da Convenção de Genebra.
Tudo isso deveria ser extremamente óbvio, principalmente para aqueles que ainda vivem mergulhados em um paradigma modernista de aguda separação entre natureza e cultura/sociedade. Aparentemente, no entanto, não é esse o caso. A bem da verdade, projeções sobre os efeitos futuros das mudanças climáticas encontram-se frequentemente permeadas por algo que pode ser chamado de húbris primeiro-mundista, uma ilusão de que o chamado “Primeiro Mundo” estaria mais protegido dos efeitos das mudanças climáticas, em virtude de sua proeza técnica e riqueza material, mas também porque esses efeitos seriam supostamente menos agudos em regiões do Norte Global, algo que claramente não passa de wishful thinking.
Essa tendência deriva de uma arrogância e excesso de confiança de países desenvolvidos em relação às suas capacidades e privilégios, podendo ser observada nas projeções sobre os efeitos futuros das mudanças climáticas. As análises tendem a exagerar os impactos nas nações menos industrializadas do Sul Global, enquanto subestimam ou ignoram suas implicações em países desenvolvidos, cuja população, desde meados do século passado, desacostumou-se a passar por grandes dificuldades e riscos existenciais.
Não estou sugerindo aqui que os efeitos das mudanças climáticas não serão sentidos em países do Sul Global. De fato, muitos deles vêm enfrentando problemas graves dessa exata natureza. Exemplos particularmente dramáticos disso são as pequenas nações insulares, como Granada, Comores, Palau, entre várias outras, que em breve provavelmente estarão submersas conforme o nível do mar se eleva em todo o planeta (SADAT, 2012).
Populações cuja economia é pautada em atividades do setor primário, como a agricultura, encontram-se em uma situação similarmente precária, conforme as mudanças climáticas desestabilizam os ciclos naturais que regem seus calendários agrícolas. Esses são verdadeiros casos de injustiça poética, visto que esses povos, via de regra, são os menos responsáveis pelo atual cenário de crise.
O ocidente guatemalteco, por exemplo, uma região pouco urbanizada habitada por uma profusão de etnias indígenas montanhesas falantes de idiomas maias, é muito suscetível a oscilações climáticas, em virtude de sua localização no chamado Corredor Seco Centroamericano (PALENCIA, 2014). O Butão, um dos únicos países em todo o mundo cuja taxa de sequestro de carbono é maior que a taxa de emissão, vem sofrendo com terríveis enchentes ocasionadas pelo derretimento da neve nas montanhas próximas a lagos glaciais (WIGNARAJA, 2022).
Entretanto, a maioria dos problemas enfrentados por países em desenvolvimento no contexto da crise climática, além de não serem necessariamente apocalípticos em gravidade ou escala, costumam derivar em grande parte de fatores socioeconômicos e infraestruturais, e não puramente físicos-ambientais. Essa observação não é um insight novo e vanguardista. É algo que vem sendo falado há quase duas décadas (DERVIS, 2007). De qualquer forma, a húbris primeiro-mundista discutida aqui consiste justo em superestimar a magnitude bruta do fator-natureza, em se tratando dos desdobramentos da crise no Sul Global. Para compreender melhor esse fenômeno, faz-se necessário examinar as projeções climáticas para o futuro.
Ao longo dos últimos anos, vários modelos vêm sendo feitos na tentativa de prever o futuro climático de nosso planeta, muitos deles bastante pessimistas (ou demasiado otimistas, dependendo de onde você vive). Um tema comum é a suposta maior intensidade dos efeitos da crise climática em regiões intertropicais (onde vive 85% da população global mais pobre (SHULMEISTER, 2020)). Há uma previsão para o ano de 2500, por exemplo, de acordo com a qual a Amazônia será uma paisagem estéril e tórrida, ao passo que o meio-oeste dos Estados Unidos será uma floresta quente e úmida, precisamente como a Amazônia de antanho (ROBITZSKI, 2021).
Desert é um polêmico texto anarquista e ecopessimista, cujo autor anônimo assumidamente mora em algum lugar do continente europeu (ANÔNIMO, 2011: 51). A residência do autor de Desert parece uma informação inútil, inconsequente, mas não é o caso, principalmente dadas as suas previsões para o Novo Regime Climático. Aqui, mais uma vez, os trópicos estão fadados a entrar em colapso, ao passo que os reflexos da crise em áreas temperadas serão menos naturais do que sociais, na forma de tensões causadas por um influxo de refugiados climáticos vindos dos malogrados países intertropicais (ANÔNIMO, 2011: 56).
Desert reproduz uma série de noções antiquadas de determinismo climático. Para o autor, civilizações não-europeias frequentemente colapsam após destruírem os frágeis ecossistemas ao seu redor, ao passo que o clima oceânico da Europa forneceu ao Ocidente uma maior margem de erro ambiental e, portanto, uma civilização mais robusta, a única a sobreviver no Novo Regime Climático (ANÔNIMO, 2011: 56). Tudo isso faria muito sentido, se não fosse pelo fato de que nosso anarquista anônimo é um grande palpiteiro, cujas noções de climatologia são rasas e folclóricas. Civilizações como as dos Andes e do Vale do México, por exemplo, surgiram em altiplanos com climas subtropicais análogos ao europeu.
Pouco parecem importar suas convicções político-ideológicas, sejam eles anarquistas ecopessimistas torcendo pela derrocada da civilização industrial, ou tecnocratas benevolentes que pensam que a vocação do Norte Global no Novo Regime Climático será a de anfitriões magnânimos para as pobres-coitadas massas de refugiados climáticos de tez amarronzada. O fato é que o imaginário ecológico primeiro-mundista é mesmo pautado em uma dicotomia modernista entre humanidade e natureza. Ao invés de fazê-los concluir que a natureza não-humana é indiferente à Divisão Internacional do Trabalho, no entanto, esse imaginário dicotômico os faz enxergarem a si mesmos como seres propriamente sociais, ao passo que os bilhões de habitantes dos trópicos não passam de joguetes dos elementos.
Ademais, ansiedades primeiro-mundistas relativas à imigração, alimentadas ainda mais pelos impactos da crise climática, frequentemente desembocam em discussões a respeito da aceitação ou rejeição de certos delírios malthusianos endêmicos ao Primeiro Mundo. Para eles, os favoritos de Gaia moram ao norte do Trópico de Câncer. Mas nós sabemos que Gaia não tem favoritos.
Para constatar a imparcialidade do Sistema-Terra, basta acompanhar o noticiário. As notícias vindas da Europa e da América do Norte não são muito boas. No Arizona, uma onda de calor causou hospitalizações em número comparável à época da pandemia de COVID-19 (SALAHIEH & STUDLEY, 2023). Dois anos antes, na Colúmbia Britânica, estima-se que outra onda de calor tenha espontaneamente cozido cerca de um bilhão de criaturas marinhas (SHIVARAM, 2021). Na Europa, o calor e a seca expuseram os leitos de rios como o Reno, o Pó (que passou a fazer jus ao nome) e o Danúbio (LIMB, 2022). Ainda na Europa, temos um notório caso de ironia dramática, com o aumento das temperaturas aumentando também o risco de contaminação por patógenos “tropicais”, como o vírus da dengue (OLSEN, 2023). Todas essas notícias fúnebres fazem a vida aqui nos trópicos soar bem mais suportável.
Mais uma vez, meu objetivo aqui não é sugerir que o Brasil e o resto do mundo intertropical seguirão ilesos. Por ora, no entanto, parece mesmo que estamos sendo poupados dessas consequências cinematográficas da crise climática que vêm acometendo o Hemisfério Norte. Isso ocorre porque regiões diferentes do planeta respondem de formas diferentes ao efeito estufa. Estimativas para o período de 2080-2100 sugerem um aumento de cerca de 1.6°C da temperatura média nos trópicos, ou, caso a taxa de emissões até lá seja maior, de cerca de 3.3°C. Para o mesmo período, o aumento de temperatura em regiões polares poderá ser cerca de duas vezes maior.
Em outras palavras, o aumento de temperatura nos trópicos, em termos absolutos, será menos, e não mais grave do que nas zonas polares e temperadas. Nesse cenário, áreas de latitude mais alta aquecem com maior rapidez, pois o excesso de calor no equador e nos trópicos cria um gradiente de temperatura e pressão que estimula o transporte de calor para latitudes mais altas através da circulação atmosférica (SHULMEISTER, 2020).
Por mais que os trópicos já sejam mais quentes, o aumento de temperatura previsto não é suficiente para tornar essas regiões inabitáveis, contrariando a catastrofismo sádico do Norte Global, que, por sua vez, terá que enfrentar aumentos de temperatura tanto absoluta quanto relativamente mais intensos. Por mais que enfrentemos aumentos de temperatura e mudanças no regime de chuvas, a habitabilidade de São Luís, Belém e Manaus será menos comprometida do que a de Nova Iorque, Vancouver e San Francisco.
É assim que opera a húbris primeiro-mundista. Suas consequências são potencialmente graves, podendo levar à minimização das ações necessárias para mitigar os impactos das mudanças climáticas. Ao confiar demais em soluções tecnológicas, na capacidade de adaptação, e também na pura sorte das sociedades do Norte Global, passa-se a ignorar a importância de medidas colaborativas e transformações profundas no sistema econômico a nível planetário.
Essa atitude perpetua a desigualdade, ao não reconhecer que as nações tidas como “mais afetadas” muitas vezes apenas possuem menos recursos para enfrentar os desafios climáticos. Trata-se de uma contingência socioeconômica, e não das consequências de algum determinismo geoclimático que privilegia as áreas temperadas às custas dos trópicos. Essa perspectiva distorce gravemente a compreensão da realidade global.
De fato, essa tendência de superestimar os efeitos brutos das mudanças climáticas no Sul Global reflete uma noção de que o Primeiro Mundo está imune às consequências mais graves, revelando um viés de privilégio e vantagem, ignorando as realidades complexas não apenas das nações em desenvolvimento, mas também das próprias nações desenvolvidas. Todos os países, à sua própria maneira, estão sujeitos aos efeitos das mudanças climáticas, independentemente de seu grau de desenvolvimento econômico. Quando se fala na maior vulnerabilidade das populações pobres do Sul Global, o que se quer dizer não é que elas estão condenadas em função da geografia física, mas que sua capacidade de resposta se encontra comprometida por fatores de geografia humana, isto é, uma combinação de infraestruturas inadequadas, pobreza generalizada e acesso limitado a recursos essenciais.
No Novo Regime Climático, não haverá beneficiários da húbris primeiro-mundista. A crença em uma suposta capacidade infinita de adaptação e controle pode ser o Calcanhar de Aquiles do Primeiro Mundo nesse cenário climático em rápida transformação. As projeções excessivamente otimistas para o Norte Global podem dar lugar a um futuro não apenas de instabilidade social e econômica, mas também ambiental stricto sensu.
A complacência em relação às emissões de carbono e a insuficiência das ações para conter a crise climática podem resultar em um preço inimaginável a ser pago. Esperemos que as atuais calamidades ambientais no Norte Global provoquem um despertar para a retaliação brutal e indiscriminada das forças da natureza. À medida que os eventos climáticos extremos aumentam em frequência e intensidade, as nações desenvolvidas hão de descobrir que sua posição de vantagem (uma contingência histórica, e não uma inevitabilidade, convém sempre lembrar) não as isola das consequências mais diretas das mudanças climáticas. Assim como a Fortuna dos estoicos, Gaia revelar-se-á uma deusa caprichosa e inclemente.
The World Turned Upside Down é o título de uma canção folclórica inglesa da década de 1640. Sua letra, originalmente, era um protesto contra a decisão do Parlamento inglês de proibir festividades tradicionais natalinas, que seriam muito reminescentes do catolicismo e, portanto, inapropriadas para uma ocasião tão solene quanto o aniversário de Cristo. À luz do Novo Regime Climático, no entanto, o título da canção pode assumir um significado alternativo bem diferente.
Assim, da próxima vez que alguém anunciar o “inevitável” colapso da civilização humana nos trópicos e a consequente crise migratória no Primeiro Mundo, minha resposta será apenas cantar:
They count it sin, when poor people come in.
Hospitality it selfe is drown’d.
Yet let’s be content, and the times lament, you see the world turn’d upside down.
*Eberval Gadelha Figueiredo Jr. é bacharel em Direito pela USP.
Referências
ANÔNIMO. Desert. Online: 2001. Disponível em: https://theanarchistlibrary.org/library/anonymous-desert.pdf.
DERVIS, Kemal. Devastating For the World’s Poor: Climate Change Threatens The Development Gains Already Achieved. In: Green Our World! Vol. XLIV, No. 2. Online: 2007. Disponível em: https://www.un.org/en/chronicle/article/devastating-worlds-poor-climate-change-threatens-development-gains-already-achieved. Acesso em 08/08/2023.
LIMB, Lottie. Euronews: In pictures: Europe’s mighty rivers are drying up in the climate-driven draught. 2022. Disponível em: https://www.euronews.com/green/2022/08/11/in-pictures-europes-mighty-rivers-are-drying-up-in-the-climate-driven-drought.
OLSEN, Jan M. APNews: Climate change leads to growing risk of mosquito-borne viral diseases, EU agency says. 2023. Disponível em: https://apnews.com/article/climate-change-europe-mosquito-fever-ecdc-b1f0e0471ae645344c2ed3f9425d7a97.
PALENCIA, Gustavo. Scientific American: Drought Leaves up to 2.8 Million Hungry in Central America. 2014. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/drought-leaves-up-to-2-8-million-hungry-in-central-america/.
ROBITZSKI, Dan. Futurism: The climate projection for 500 years from now is unbelievably bad. 2021. Disponível em: https://futurism.com/the-byte/climate-projection-500-years.
SADAT, Nemat. Small Islands, Rising Seas. In: UN Chronicle, vol. 46, 4, Apr. 2012, pp. 10-15. Online. Disponível em: https://www.un.org/en/chronicle/article/small-islands-rising-seas.
SALAHIEH, Nouran. STUDLEY, Laura. CNN: Extreme heat in Arizona increased hospitalizations to pandemic levels at one medical center. 2023. Disponível em: https://edition.cnn.com/2023/07/17/weather/southwest-us-arizona-record-heat/index.html.
SHIVARAM, Deepa. NPR: Heat Wave Killed an Estimated 1 Billion Sea Creatures, And Scientists Fear Even Worse. 2021. Disponível em: https://www.npr.org/2021/07/09/1014564664/billion-sea-creatures-mussels-dead-canada-british-columbia-vancouver.
SHULMEISTER, James. Eco-Business: Will the tropics eventually become uninhabitable?. 2020. Dsiponível em: https://www.eco-business.com/opinion/will-the-tropics-eventually-become-uninhabitable/.
WIGNARAJA, Kanni. World Economic Forum: Why we need climate action to avert glacial lake outburst floods in Bhutan. 2022. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2022/11/cop27-climate-change-action-avert-glacial-melting-in-bhutan.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA